Amor, só incondicional
Dores morais são as mais difíceis de passar, humilhação
é duro de esquecer
Amei muitas pessoas, nem sei se dá para contar. Porque amei amigos, mulheres, crianças, homossexuais, bandidos, coitadinhos, doentes e presos. Amei, amei como pude e sempre que pude. Ainda quero amar mais pessoas, quantas mais puder e agora mais devotadamente. E esses foram relacionamentos que às vezes me causaram decepções (profundas), desassossego e dor. Fico aqui imaginando quanto sofrimento causei, quanta tristeza, angústias e decepções provoquei. Lembro-me hoje, aos 66 anos, de algumas que cometi há 20, 30, 50 anos. Doem mais do que aquelas das quais fui vítima; essas, são passado, traumatizaram e não foram esquecidas. Apenas não doem como antes. As dores morais são as mais difíceis de passar, humilhação é duro de esquecer.
Pensar e sentir que fui eu quem feri e fiz sofrer é sempre um dado de infelicidade. Somente quem viveu bastante entenderá o que digo: foram estes erros que me causaram mais sofrimento, mais do que aqueles que tenham ocorrido contra mim.
As consequências têm sido as piores possíveis. Fiquei mais de 30 anos preso, tive dois cânceres e fui obrigado a fazer transplante de fígado para continuar vivo. Terei de tomar remédio e ser monitorado pelo resto da vida. Fora o preconceito que me bloqueia em meu trabalho, em meus relacionamentos e em toda minha vida, preconceitos de todas as formas.
Outro dia, um vizinho aqui de casa, ao tirarmos os carros, comentou que era policial aposentado e me perguntou se eu era aposentado também. Entendi na hora: ele e a esposa ficam o dia todo cuidando da minha vida, imaginando o que eu faço para viver. Talvez eu fosse polícia, bandido, qualquer coisa assim. Respondi que sou escritor. “Sim, o povo aqui comenta isso. Mas, e para viver, o que você faz?”. Senti um gelo na coluna: espera aí, eu já tinha visto, lido, ou ouvido em algum lugar aquilo. A vida era um teatro? Tem ensaio ou várias sessões? Fiquei matutando, impressionadíssimo com aquilo. O que farão quando souberem quem fui? Sim, porque, para eles, “bandido bom é bandido morto”. Tomara que parem por aí.
Amor ao redor
Em contrapartida, tenho lembrado das pessoas que me trouxeram as maiores alegrias e felicidades que tive. Ficou muito claro para mim que tive companheiras maravilhosas. Pessoas incríveis que me ensinaram muito. Casei enquanto estava preso e meus filhos foram concebidos quando eu estava no cárcere. Um já se formou, é um programador de computadores, trabalha desde os 16 anos (começou na Trip), tem seu carro, uma namorada e já ganha duas ou três vezes mais do que eu. O outro ainda é uma dúvida, mas é um bom rapaz e vai seguindo a vida ao ritmo dele.
A algumas mulheres talvez eu tenha me dedicado mais, mas as amei sempre igualmente; não é possível amar ou ser diferente do que se é. O que mais posso dizer delas, duas são até falecidas, é que as mulheres me ensinaram muito, principalmente uma qualidade ímpar: devoção. Uma mulher devotada a seu companheiro é vermelha de paixão, torna-se uma Anita Garibaldi, uma Maria Bonita e tantas outras heroínas que criam nossos filhos e dão sentido à nossa vida. Amigas as tive e tenho aos montes. Tenho muito mais amigas do que amigos, mas estes também formam um contingente de alto nível que fazem face ao que vier, penso eu. Tenho amigas que me apresentaram amigas e conheci amigos, maridos e parceiros de longo curso. Um dos meus maiores amigos encontra-se preso há cerca de 38 anos, ou mais. Alguns moram longe/perto – acessíveis ao computador – e se preocupam comigo, outros nem sabem da gravidade disso tudo.
Sempre pensei que a gente primeiro admira as pessoas para depois amá-las. Hoje, refletindo mais profundamente sobre o assunto, percebo que não podemos amar somente porque admiramos, exatamente porque as pessoas são passíveis de erros e essa é uma característica da natureza humana. Admiração não é para sempre, nós todos decepcionamos quem espera atitudes perfeitas de nós. Se o amor que sentimos por alguém estiver ancorado somente na admiração, estará fadado ao fracasso. O amor só tem continuidade se for incondicional. É preciso que esteja vinculado à pessoa e não somente às qualidades ou a qualquer valor que ela manifeste.