A Tortura e os traumas deixados

por Luiz Alberto Mendes em

 

Tortura e Vida

 

Às vezes dói tanto como fosse agora. E foi há tanto tempo... Ano que vem fará quatro décadas. Os criadores da psicanálise dariam o nome de trauma ao que ficou. Mas é pouco. Pouco para quem viveu por mais de 100 longuíssimos dias nas mãos cruéis e insanas de torturadores. Pouco para quem teve suas unhas dos pés e das mãos arrancadas a golpes de palmatórias de ferro. Pouco para quem teve seus órgãos genitais queimados por eletrochoques. Pouco para quem foi queimado por charutos e cigarros ali, amordaçado, manietado e pendurado no pau-de-arara. Pouco para quem teve as pontas dos nervos dos pés praticamente destruídos a golpes de palmatórias e cassetetes. Pouco para quem teve a cabeça rachada em múltiplos lugares, a ponto de parecer um mapa das trilhas do inferno. Pouco para quem foi espancado, humilhado e espezinhado diariamente durante todo esse período. Pouquíssimo para quem passou depois, os próximos 31 anos e 10 meses preso. Pouco para quem foi preso aos 19, após anos submetido à cultura do crime nos estabelecimentos para menores de idade do Estado, e solto aos 51 anos.

Vivi em febre, com o teto há ruir o tempo todo sobre minha cabeça. Meus parceiros enlouqueceram com o tempo. Um deles fez a maior das loucuras. O desespero quebrava a vida em cristais tão finos que só de olhar, já espetava. Afiou um osso da coxa de galinha e ficou no aguardo. O primeiro desavisado que dormiu, acordou com o osso fincado dentro de sua orelha, a sapatadas. A finalidade era ser autuado em flagrante de homicídio e ser removido para a Casa de Detenção. Bala imaginava parar com a tortura com esse gesto extremo. Passou a noite suportando a ira, a sanha e o sadismo dos policiais. Depois de algum tempo na prisão, acabaria por se enforcar em uma cela-forte. Lembro ainda sua voz magra e seu inclinar aflito, quando éramos levados para a tortura.

Os outros dois chaparam com o tempo e saíram da prisão completamente abobalhados. E eu? Bem, não dá para saber até onde tudo isso me afetou. Tento transformar em texto, quando dói muito, como hoje. Crônicas, contos, romances, textos, ensaios, saem dessa dura substância das coisas existidas. Às vezes sinto a alma frouxa, vazia de significado e essas reminiscências passam na mente como um sopro incandescente. É como um relâmpago atirado pela fúria da mão.

Às vezes chego a invejar as plantas, as árvores em geral. Estou como que pronto e acabado. Minha vida é um sólido conjunto de segmentos doloridos. E qualquer planta sempre tem um novo inverno e uma nova primavera em que acrescem camadas sobre camadas. Não estão prontas e muito menos acabadas. Como certos animais, vão crescer e se desenvolver até a morte.   

Tem horas que a vida chega a ser quase nada. Mas me dê uma caneta ou um teclado que de repente eu posso transformá-la em quase tudo.

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Luiz Mendes

10/08/2011.

 

 

 

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