A falta que um tacape faz

Se os tupinambás soubessem o que fazem com nossas praias, resolveriam a questão no porrete

por André Caramuru Aubert em

A caravela portuguesa está a todo pano, tem vento bom e mesmo assim não consegue se distanciar de seus inimigos, que por três longas horas atiram flechas e a perseguem furiosamente, em direção ao alto-mar, a bordo de sete canoas de guerra, cada uma levando entre 30 e 40 guerreiros. Esse fato foi relatado pelo padre Leonardo Nunes, um apavorado jesuíta que escapou por pouco de virar churrasco, em 1551, numa festa tupinambá no litoral norte paulista. Sim, essa praia – sobre cuja areia você se deita, lambuzado de suor, ouvindo a axé music do quiosque mais próximo e desviando dos papéis de sorvete, dos copos plásticos e dos canudinhos – já foi, por cerca de um milênio, o lar de uma poderosa nação, que resistiu aos invasores portugueses por quase 100 anos, devastou a capitania do Espírito Santo e, em mais de uma ocasião, quase varreu do mapa as então jovens vilas do Rio de Janeiro, de São Vicente e de São Paulo.

Os tupinambás eram numerosos, somando perto de 1 milhão de pessoas (mais ou menos a população de Portugal na época), espalhados por centenas de aldeias ao longo da costa brasileira, algumas das quais, como a de Ubatuba, com populações entre 3 mil e 6 mil indivíduos. Em operações militares, nas quais várias aldeias se uniam, eles com frequência juntavam mais de 10 mil guerreiros. Mais bem alimentados, eram mais altos e mais fortes que os portugueses, excelentes arqueiros e hábeis usuários do tacape (grande porrete usado para abrir ao meio a cabeça do inimigo); as mulheres, muito mais bonitas, mais bronzeadas e sem o bigode das portuguesas, se vestiam mais ou menos como as meninas se vestem hoje na praia, talvez apenas com um pouco mais de roupa. E, se alguém falar em “sociedade de subsistência”, basta dizer que, nos primeiros anos, quando ainda acreditavam nas boas intenções dos invasores, eram eles que gentilmente cediam os alimentos de seus estoques, à base de farinha de mandioca torrada e tainha seca, para alimentar as grandes frotas portuguesas e espanholas que partiam de volta rumo à Europa.

TURBA BESUNTADA
Mas, se eram tudo isso, como perderam a guerra e acabaram exterminados? Claro, não há um único fator, mas, por mais que os livros de história destaquem uma suposta superioridade tecnológica dos europeus e os méritos dos jesuítas em embromá-los e dividi-los, o fator decisivo na derrota tupinambá atendia pelos nomes de gripe, sarampo e coqueluche, que dizimavam, em dias, aldeias inteiras. Se não fosse isso, eles teriam resistido muito mais e talvez até chegado a algum tipo de composição com os portugueses. Os tupinambás viraram mito na Europa e foram os grandes inspiradores de Thomas Morus para escrever a Utopia e de iluministas como Jean-Jacques “o bom selvagem” Rousseau. Mas a verdade é que nem tudo eram flores na vida deles.

Apesar da fama de “sustentáveis”, eles tiveram impacto ecológico considerável sobre a mata atlântica durante os cerca de mil anos em que viveram no litoral, a ponto de se desconfiar que, quando os portugueses aqui chegaram, havia muito poucos focos de floresta primária original na planície litorânea, constantemente submetida a queimadas para o cultivo rotativo da mandioca. Além disso, praticantes de canibalismo e obcecados pela guerra, viviam se matando uns aos outros, bem longe daquela visão idílica de índios vivendo sossegados, em comunhão com a natureza, pescando e caçando, sem pressa pra nada. De qualquer forma, mesmo sabendo que nenhuma sociedade é perfeita, enquanto você anda pela orla com cheiro de esgoto, tropeça no lixo e enfrenta a turba besuntada em bronzeador que todos os verões desce a serra e congestiona tudo, fica difícil não pensar que a praia dos tupinambás era melhor que a sua. E, principalmente, na falta que faz não saber usar um tacape.

*André Caramuru Aubert, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

 

 

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