A batalha invisível pelo mercado de Cannabis medicinal
O pesadelo de ativistas, pacientes e associações virou verdade: a indústria quer a verdinha só pra ela, e ironicamente não é pra apertar um baseado
Quem acompanha minimamente as reviravoltas da Cannabis medicinal no Brasil sabe que a coisa é digna de novela. Na última semana tivemos um capítulo novo, mas nem de todo inesperado, envolvendo a associação das indústrias farmacêuticas nacionais. Em linha com os "pesadelos" da maior parte dos ativistas, pacientes e associações, aparentemente a indústria de fato resolveu proteger a sua participação nesse mercado com unhas e dentes.
Eu já me sentei literalmente com todas as diretorias das indústrias nacionais na "arrancada" deste processo, ainda antes de existirem as regulamentações. Naquela época, estávamos à frente do mercado, e posso dizer como testemunha viva que todas achavam "interessante", mas raros casos tinham compreensão do que viria pela frente. Achavam que era coisa de maconheiro. E era, claro, mas não só.
O potencial terapêutico da Cannabis medicinal hoje em dia só é questionado pelos que continuam atestando ignorância e preferem passar vergonha do que revisitar seus preconceitos. O processo já é bastante concreto, tanto que já impacta diretamente mais de meio milhão de brasileiros, que realizam tratamento com produtos derivados de Cannabis sob prescrição médica.
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Estima-se que quase metade deste número, ou seja, cerca de 250 mil brasileiros, realizem seus tratamentos com produtos importados, via uma resolução específica criada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para importação de CBD e afins. Uma particularidade desse mecanismo é que ele não define quais produtos são "adequados" para as determinadas indicações clínicas. Esse papel fica a cargo da relação médico-paciente, que se responsabiliza diretamente por tal. É um processo bastante flexível, abrangente e inclusivo, pois atende a gregos e troianos.
Vale dizer que a importação direta de produtos médicos não registrados no Brasil não é algo exclusivo para o CBD, mas se trata de um mecanismo mais geral que atende essa necessidade de pacientes há mais de uma década, e para finalidades diversas. Claro que diversas empresas participam desse mercado facilitando os processos de importação como representantes comerciais, e aí que vira "mercado".
A disputa com a indústria de larga escala começa quando a produção nacional é autorizada via outra RDC, ou Resolução da Diretoria Colegiada, que é um tipo de regulamentação técnica proposta pela ANVISA. A RDC327 procura trazer um crivo farmacêutico à importação e foi elaborada em caráter provisório, como um grau intermediário entre o rigoroso processo de comprovação de eficácia e qualidade, e a "libertinagem" de trazer produtos sem qualquer averiguação pela agência.
Em princípio parece bom, só que, na prática, as empresas estão somente importando extratos já prontos do exterior e engarrafando no Brasil. Isso quando muito, pois a maioria só importa com rótulo traduzido, armazena e distribui. Que "bonito" hein, muito a cara do nosso país.
Lá em 2019, a RDC327 fez o Brasil dar os primeiros passos no mercado de cannabis medicinal, permitindo que algumas empresas produzissem medicamentos à base de cannabis aqui mesmo. Parece avanço, mas foi mais um "caminho seguro" e exclusivo para que algumas poucas farmacêuticas se sobressaíssem. Engraçado que, como comentei, pouco tempo atrás a indústria parecia não entender ou ter pouco interesse. Agora, subitamente despertou e "quer tudo pra si", como parece ficar claro no pedido da sua principal entidade de classe para que a ANVISA revogue o mecanismo de importação direta pelo paciente.
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Será que é mesmo a segurança do paciente que preocupa ou a intenção de gerar uma reserva de mercado? Afinal, quanto menos competição, mais controle. Parece que essa briga está só começando e o "pesadelo" dos maconheiros virou verdade: a indústria quer a verdinha só pra ela, e ironicamente não é pra apertar um baseado.
Minha provocação para a indústria é essa: se temos tantos recursos financeiros e poder à disposição, que tal usá-los para avançar o campo, ao invés de tentar criar barreiras invisíveis ao acesso?
Se me perguntarem, tem algo que praticamente só a indústria tem condição de fazer: desenvolvimento clínico com pesquisas científicas consistentes. Há muito espaço para consolidar e aprender sobre os usos que já se conhece "anedoticamente" e talvez um espaço ainda maior para explorar novas indicações e formas de uso que ainda parecem controversos aos olhos médicos mais tradicionais.
Exemplos: prevenção de osteoporose, aceleração da cicatrização de fraturas, redução da rejeição de órgãos em transplantados, modulação da microbiota intestinal, dermatites geradas por doenças autoimunes, e por aí vai. Tudo isso já com alguns indícios na literatura científica, mas precisando de um empurrãozinho e injeção de grana pra fazer acontecer. Como curiosidade, sabia que o Brasil é um dos países relevantes na publicação científica em canabinoides em âmbito internacional? Imagina se nossos pesquisadores tivessem incentivo.
Precisamos desse impulso para quebrar a barreira da visão atrasada do conselho de medicina de que a única substância terapêutica da Cannabis é o CBD, e que ele só funciona para epilepsia refratária e que de certa maneira é contemplada da RDC327.
Enquanto isso, temos um projeto de lei parado há quase 10 anos no Congresso (PL399/2015) que poderia dar uma solução robusta pra essa questão, com a tentativa de regulamentar toda a cadeia de produção e venda de cannabis no país, facilitando cultivo, distribuição e acesso de uma vez por todas. Mas, como sempre, o Brasil fica indeciso e trava no meio do caminho. Parece até que preferem esse cenário instável — quanto mais nebuloso o sistema, melhor para quem já conhece os atalhos.
A novela continua, mas quem dita o próximo capítulo?
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