É nóis na ficha
Popeye largou a rotina de professor de física para virar jogador de pôquer profissional
O relógio marca uma da manhã. Pausa de 15 min. O torneio começou às 16h30 e Popeye está na mesa final. De 40 jogadores, agora restam nove. Antes de começar a última rodada, ele caminha até a varanda do hotel para fumar. Observa o silêncio da pequena cidade da Grande São Paulo, com o horizonte à frente. "Sabe o que é mais louco?", pergunta à repórter. "Não consigo imaginar outra profissão que propicie tanta liberdade. Posso jogar em vários lugares do mundo. Não tenho chefe!", comemora. "Ter dinheiro é bom quando você não tem de pensar nele."
Em poucos meses, Popeye, 34, como o jogador é conhecido, planeja arrumar as malas e ir para a Europa. Por enquanto, sua bagagem está no quarto de um hotel três estrelas, onde costuma passar cinco noites por semana, sem pagar hospedagem. Acorda normalmente às quatro da tarde, liga seu laptop e digita todos os ganhos – ou perdas – da noite anterior. Sobe para a cobertura, cumprimenta os funcionários pelo nome e se acomoda em uma das mesas de pôquer. "O que vai querer, Popeye?", o garçom indaga. "Um suco de laranja, por favor."
Após tomar seu café da manhã, caminha até a sala principal do espaço, fechada com janelas de vidro espelhado. É ali que ele costuma passar as noites em claro, na companhia de outros caras, ao redor de uma mesa. Lá é preciso ter, pelo menos, R$ 1 mil em fichas para entrar. "Mas não apostamos tudo de uma vez", explica. "Além disso, o valor com o qual entro na mesa costuma ser 5% do mínimo que preciso ter disponível. Se perder essa quantia, OK."
"Prometi jogar só três vezes por semana, mas é difícil." Outro diz; "Há quanto tempo a gente não vê uma mulher, Popeye?". "Nossa, nem sei"
No fim de tarde no salão de jogos, cerca de dez jogadores estão no local. Aos poucos, mais começam a chegar. Todos se conhecem, alguns até jogam golfe com Popeye, uma vez por semana. Às quartas e sábados, as apostas cedem espaço para os torneios, que por sua vez atraem a molecada da região, executivos e curiosos. Poucos seguem o estilo de vida de Popeye. Ex-aluno da Poli, a faculdade de engenharia da USP, largou o curso antes do fim. Deu aulas de física num cursinho por seis anos. Enquanto isso, pegava as manhas do pôquer na internet. Em 2006, passou a ganhar alguma grana em clubes. Conforme o rendimento aumentava, a tentação de viver do jogo se tornava mais forte. "Estudei livros sobre probabilidade e estatística, além de psicologia. Perdi muito menos dinheiro do que ganhei." Mas a mudança não ocorreu da noite para o dia. "Tive uma vida dupla até o momento em que passei a ganhar três vezes mais do que meu salário. No ano passado, mudei de profissão."
"Não é comum encontrar alguém que largou o trabalho para jogar pôquer como ele, exceto os caras que têm patrocínio para participar de grandes torneios. Ele é inteligente", avalia um frequentador do hotel. O Texas Hold’em, modalidade de pôquer em voga, não virou apenas a profissão de Popeye. Torneios profissionais como o Brazilian Series of Poker ou World Series of Poker são transmitidos nas redes de TV. Patrocínios de sites de pôquer como PokerStars.com ou Full Tilt são comuns, e por conta disso há brasileiros competindo inclusive em Las Vegas, onde cobra-se até US$ 10 mil de inscrição. Muitos começaram na internet, em clubes ou em torneios menores, como esse que a Trip presenciou na virada de um sábado para domingo e que durou nove horas.
Jogador na sarjeta
Nos torneios, a lógica é diferente dos jogos a dinheiro. As fichas possuem valor simbólico e ganha quem ficar com todas no fim. No hotel em que a reportagem se hospedou, os competidores pagaram R$ 150 de inscrição, com direito a duas recompras – rebuys, no pôquer todos os termos são em inglês – de R$ 150 cada para continuar na brincadeira. Foram 40 inscritos: o primeiro lugar receberia R$ 6.300 mais uma viagem para o torneio Conrad Punta Del Este, no Uruguai; o segundo, R$ 3 mil; e o terceiro, R$ 1.400. Houve premiação até o sétimo lugar, de R$ 300. Nas partidas de Texas Hold’em, cinco cartas "comunitárias" são abertas na mesa, e cada jogador recebe mais duas para decidir, dentre as sete, com quais cinco vai – ou não – jogar.
Embora o chope seja servido à vontade desde o almoço, com churrasco, maionese e arroz, poucos bebem pra valer. "Para jogar várias horas seguidas é preciso raciocínio", explica Popeye. Na verdade, ele não é muito chegado a torneios. "Levando em consideração o tempo de jogo, o custo-benefício é menor." O japonês Marky, outro habitué, discorda. "Segui o caminho inverso do dele. Gostava de apostar, agora só jogo em torneios. Ser campeão é diferente", diz ele, que já arrebatou alguns prêmios. "Ganhar é a melhor sensação. Você conhece a pessoa na mesa de pôquer. Se há rixa, resolve-se ali mesmo. Antes, minha mulher achava que eu entrava num açougue, abria um alçapão e dava de cara com gente usando viseira e charuto na boca, e que poderia sair morte."
Pergunto a ele se já perdeu muito dinheiro ou viu alguém se dar mal. "Já perdi R$ 13 mil e tive de vender uma BMW para pagar a dívida. Uma vez, encontrei um senhor na sarjeta, chorando." Contudo, tem-se a impressão de que grana não é problema ali. Entre os jogadores do torneio, encontramos o proprietário de uma rede de restaurantes, parte da família que mantém uma conceituada editora de livros didáticos e o dono de um grande número de franquias de uma loja de móveis popular.
Bêbado e fungando o nariz
Lá pelas tantas da madrugada, um chinês magrinho grita lá do outro lado: "Vai aparecer na revista, Popeye?". O povo ri. "Você sabe que ele é narcisista, né?", outro diz. Ele continua quieto. Durante o jogo, Popeye quase não fala, tampouco se movimenta. De óculos escuros, segura as cartas na mão e mantém um jogo contido. Entra na mão geralmente quando há chances de ganhar. "O jogo dele é manjado!", debocha o chinês. Mas ele não liga. Olha para o senhor ao lado, chip leader do torneio – aquele que possui mais fichas no momento –, e fala: "Seu Luís, com essa muralha aí, o senhor não precisa fazer mais nada. Vai pra mesa final fácil". Seu Luís não comenta. Blefa a torto e a direito, mas continua impondo respeito. Suas olheiras escancaram o cansaço.
Tumulto na outra mesa. Outro senhor chama o organizador. "Ele largou as cartas na mesa e saiu!", reclama, em relação a um moleque que chegou atrasado, fungando o nariz, e encheu a cara de vodca. De repente, o chapado volta e grita: "Vai, Curíntia!". O senhor olha para cima e respira fundo. A crupiê desacredita. Dirige-se ao menino. "Senhor, sua vez. Senhooor, sua vez." O amigo pega as fichas por ele e joga. Daí ele aposta sem ver as cartas que tem em mãos. Quando passa a ganhar, grita de novo: "Vai tomar no cu!". "Olha a boca!", todos o repreendem. "Desculpa, desculpa", ele pede, tentando se recompor. Logo, perde tudo.
Poucos admitem, mas não se iluda, é matemático: para cada real ganho por Popeye e seus amigos, há um real perdido por outro jogador
Os jogadores vão sendo desclassificados. Meia dúzia se reúne na salinha, pra continuar jogando. Dos 40, há apenas uma mulher no torneio. Ao ser abordada pela Trip, responde: "Sou tímida, fale com meu namorado". Suas mãos, bonitas, tremem enquanto joga. Ela termina na 14ª posição. Sai da mesa, constrangida, e recebe olhares de escanteio. Enfim, chega outra mulher. É a esposa de Marky, aquela que não aceitava a atividade do marido. Durante uma hora, permanece a seu lado, jogando pôquer no celular. Então levanta, resignada, e vai embora.
"Prometi à minha namorada que vou jogar apenas três vezes por semana, durante quatro horas", revela outro jogador. E, aí, está cumprindo? Ele ri. "Está difícil." Outro sujeito comenta: "Há quanto tempo a gente não vê uma mulher, hein, Popeye?". "Nossa, nem sei", nosso amigo responde.
À medida que o tempo passa, o silêncio e a tensão aumentam. Ouve-se apenas o barulho das fichas trotando na mesa, espécie de mantra do torneio. Durante outro break, um dos finalistas desamarra a cara e topa falar. "A gente não pode perder a cabeça no jogo. Às vezes, um cara bêbado ou um problema pessoal põe tudo a perder. Uma vez, tive um tilt e perdi R$ 18 mil. Jurei que isso não voltaria a acontecer", conta. "Comecei a estudar a matemática do negócio e o pôquer virou minha segunda profissão. Encaro como um complemento da renda. Só não largo meu trabalho porque vão achar loucura, tipo questão de sorte ou azar."
Rambo e seu Luís
Várias pesquisas têm sido publicadas mundo afora para provar que o pôquer é um jogo de habilidade, ou seja, não depende somente da sorte. "O Comitê Olímpico Internacional está avaliando uma série de laudos e dossiês que pretendem incluir o pôquer no rol dos Mind Sports, ou seja, nos jogos de intelecto, como xadrez e gamão", afirma o advogado Daniel Homem de Carvalho, professor de direito constitucional da Universidade Cândido Mendes, ex-presidente da Loterj. "No Brasil, a Lei de Contravenções Penais proíbe a prática dos jogos de azar, mas, segundo classificações internacionais, o pôquer não é jogo de azar." Em outras palavras, embora não seja regulamentado no país, não é proibido.
Alguns lugares conseguem licença para operar, baseados em laudos sobre a questão da habilidade e ausência de máquinas e roletas. Mais: nosso Código Civil prevê os jogos de apostas como um "contrato civil entre maiores", segundo o advogado. "Está escrito: dívida de jogo não pode ser cobrada na justiça. Convenhamos: a prática é cultural."
Pergunte a um jogador de pôquer se ele já perdeu muito dinheiro: raramente você ouvirá "sim". Provavelmente, será algo como "já perdi, mas recuperei tudo depois – e ganhei muito mais". O problema é que se todos estiverem falando a verdade, a conta não fecha. Não se iluda, é matemático: para cada real ganho por Popeye e seus amigos, há um real perdido por outro jogador; para cada 10 mil reais ganhos, seja em uma noite, seja em um mês, 10 mil foram perdidos por alguém. E por aí vai.
Depois do último cigarro, Popeye retoma o jogo. Mas não fica até o fim. Perde suas fichas e cai na nona posição. Recebe uma salva de palmas. Todos os jogadores da mesa final são aplaudidos ao sair. "Quando percebo que joguei mal, fico triste. Neste caso, não recebi muitas cartas boas, beleza. O pôquer é um jogo que não pode ser levado a sério em curto prazo. Um dia não quer dizer nada."
Quando sobram quatro jogadores, pergunto ao organizador se aquele resultado o surpreende. "De maneira nenhuma. Todos jogam constantemente e costumam ganhar", afirma. Às três da manhã, são apenas dois: Rambo e seu Luís. Com um par de damas na mão, Rambo vence. Seu Luís nem se abala. "E aí, Rambo, vai para o Uruguai? Você tem direito a um acompanhante", alguém diz. "Não sei, minha mulher tem pânico de avião." Seu Luís, até então completamente mudo, finalmente abre a boca: "Leva a filial!". Depois de pensar por algum tempo, Rambo decide com quem irá. Com Popeye.
*Os nomes reais dos personagens, assim como o local do torneio, foram preservados a pedido deles.