À flor da pele
Há algo em hospitais e aeroportos que faz com que as pessoas se dispam de suas armaduras e deixem suas emoções aflorar
Existem, e como sempre posso estar enganado, dois lugares onde os códigos e as convenções do dia-a-dia desaparecem como fumaça de cigarro com filtro no ar e fazem com que o ser humano se apresente de uma forma mais perto da original. Digamos em estado puro. Os aeroportos e os hospitais.
São, fi sicamente, dois espaços imponentes, que se interpõem na vida de qualquer um, seja no sentido prático (o hospital), seja, digamos, no prático-metafórico (o aeroporto). Casas de passagem com ritos diferentes, mas que, pelas circunstâncias em que o ser humano tem de freqüentar ambos, fazem com que as pessoas se dispam de suas armaduras e escudos e deixem as emoções escorrer por pequenas peneiras que se abrem no coração.
Em um aeroporto as pessoas choram, seja nas despedidas ou nas chegadas. Um choro que pode ser de alegria, de tristeza ou das duas coisas juntas, porque sempre uma das duas partes (pode ser a que vai, pode ser a que fica) divide com a outra as emoções do momento. Em um hospital se repete o mesmo fenômeno.
A incerteza que surge quando se confronta com a doença, a morte, a possibilidade da vida faz com que tudo se relativize e que volte à tona no mar do dia-a-dia o que parece se confi gurar claramente como as prioridades da vida. É como se ao entrar nesses dois lugares as pessoas tivessem os olhos da alma (da emoção, do coração) iluminados, clareados,por um instante, de uma maneira em que desse para visualizar, para focar, o que realmente é importante na vida.
Mãe e fi lha com os olhos vermelhos, em silêncio, no elevador do hospital, a criança que chora na despedida de seu pai no aeroporto, o homem que fuma, encostado em um carro no estacionamento, com o olhar perdido e o corpo cansado de uma noite maldormida, a mulher que chora falando ao celular, o grandalhão que espera uma resposta no pronto-socorro, a mulher gostosa que olha o painel com informação dos vôos atrasados.
TOUREAR O DESTINO
Nesses territórios os códigos que regem o bom gosto das emoções são esquecidos, e todos voltam a ser o que sempre foram: seres frágeis que têm como única missão tourear as vontades do destino. O canalha, o justo, o ladrão, o ignorante e o sem-vergonha estão lado a lado do inocente, do desinformado. O pobre ao lado do rico. Todos impotentes diante dos planos que o destino reserva para cada um e que freqüentemente, como se sabe, não coincidem com a esperança que se tem do futuro.
Isso não quer dizer que as pessoas, quando se distanciam fi sicamente desses dois lugares, qualquer que tenha sido a experiência neles, voltem a vestir as armaduras que defendem o sentimentos e, ao mesmo tempo, aprisionam as emoções. Deve ser nisso que consiste o jogo da vida.
*J.R.DURAN, 55, fotógrafo e escritor, anda por aí sem armadura emocional porque passa metade de seu tempo em aeroportos. Seu e-mail é studio@jrduran.com.br