À espera de Tonico
Guimarães: "violentar o design do mistério dá sensação de poder"
Quando a Trip #219 estiver nas bancas, meu neto já estará no quarto dele - todo azul. Graças à tecnologia, já sabemos o sexo do Bebê antes dele nascer. Antigamente o que havia era mistério, torcida e crendice
Caro Paulo,
Pode deixar que te dou notícias assim que a Shubi der à luz o meu neto Tonico. Com certeza, quando esta edição Barriga da nossa Trip estiver nas bancas, o Tonico já estará no quarto dele, que foi preparado para receber um menino. Tudo azul, desde o começo da gravidez, porque, graças à tecnologia, atualmente a gente fica sabendo o que se passa na barriga da mãe. A “luz” chega ao menino antes de ele chegar à luz.
Eu disse “com certeza”? Pois é, antigamente eu diria “se Deus quiser”. Na época em que meus filhos nasceram a gente sabia que não sabia. Não se tinha noção do sexo da criança até que ela nascesse. O que a gente tinha era torcida. E mistério. E apostas. E crendices: barriga pontuda, menino! Redonda, menina! Mas, principalmente, a incerteza nos inspirava cuidado e cautela. Por exemplo, uma banalidade: a gente convivia com dois nomes durante nove meses, um para menino e outro para menina.
Eu acho genial entrar na barriga da mãe e descobrir tudo o que a natureza esconde by design. Com essas informações salvamos vidas, curamos doenças, planejamos, criamos condição de maior controle e comando do processo. Mas justamente nessa hora de maior conhecimento e certeza começa a minha inquietação.
Violentar o design do mistério dá sensação de poder. A sensação de poder leva à arrogância. E a arrogância leva ao risco e à derrota. Esse roteiro é velho conhecido de nosso cotidiano.
Outro dia, um amigo de meus filhos, desses amigos tão queridos há tanto tempo que também são filhos, grávido de 14 semanas, passava o feriado prolongado com sua mulher fora da cidade. A futura mamãe teve um sangramento suspeito no primeiro dia e outro no segundo dia. Nas duas vezes o médico disse que não era preocupante, que era para tomar um remédio e tudo bem. No terceiro dia, outro sangramento e o médico não mudou de atitude. O pai, preocupado, ligou para um amigo médico que mandou voltar urgentemente para São Paulo, onde perderam o bebê.
Sabe do que essa criança morreu? De arrogância! Arrogância da autoridade médica em achar que sabe tudo e por isso tem o comando e o controle da situação. Ilusão! Mesmo que não saiba tudo, o doutor acha que tem uma margem de segurança para correr riscos em nome do que sabe. Esse cara não sabe que não sabe o que não sabe e põe a vida em risco.
Luz que cega
Todo dia vemos autoridades arrogantes, públicas e privadas, negando risco em função das probabilidades conhecidas, quando o perigo está justamente naquilo que não sabemos que não sabemos. Vide crises financeiras, ambientais e epidemias de saúde. O conhecimento é luz que ilumina, mas também cega porque nos desumaniza, nos ilude com a sensação de um poder que nós, humanos, não temos nem somos capazes de ter. A gente foi feito para saber que não sabe o que não sabe. Aí mora a humildade. E a vida.
Não somos condutores nem atores principais desse drama. Somos humildes coadjuvantes e, enquanto não entendermos isso, o conhecimento será instrumento de desgraça, e não de graça.
Legal poder observar algo tão cotidiano e banal como uma misteriosa barriga cheia de criança e segredos para reconhecer que um segredo revelado é apenas a evidência do imenso mistério que é a vida.
O Tonico está bem, graças a Deus. E o casal amigo vai ter mais filhos, se Deus quiser, e se trocarem de médico. Não estou transferindo para Deus uma tarefa que é nossa. Na verdade, nem sei se ele existe. O que sei é que não sei se ele existe.
Fica com o abraço do avô do Tonico, da Tetê e do Joca. Que essas crianças saibam que não sabem o que não sabem para poder usufruir dessa imensa e generosa barriga cheia de gente e mistério que chamamos de planeta Terra.
*Ricardo Guimarães, 64, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus