Neide Santos transformou luto em luta
No Trip Transformadores, a atriz Bárbara Paz bate um papo com a fundadora do projeto Vida Corrida, que mudou a realidade de mulheres e crianças do Capão Redondo através do esporte
A maratonista baiana Marineide Santos Silva entende como ninguém o significado de correr atrás de sonhos. Baiana radicada no Capão Redondo, bairro mais violento da cidade de São Paulo, ela viu dois amores morrerem de forma abrupta na vizinhança – seu marido, em 1979, e seu filho mais velho, Mark, em 2000. Mas, graças ao seu talento para transformar luto em luta, foi também ali que uma porção de histórias de superação floresceram.
Homenageada pelo prêmio Trip Transformadores 20/21, Neide Santos é a fundadora do projeto Vida Corrida, que já mudou a realidade de mais de 4 mil mulheres e crianças da comunidade através do esporte. "A corrida me deu esperança de um mundo melhor, como acontece com muitos atletas periféricos", diz. "Decidi atender crianças no Capão Redondo quando enterrei meu filho. Ele foi abordado por um menino e reagiu. Se houvesse um projeto social que acolhesse aquela criança de 14 anos, políticas públicas de verdade, talvez ela não teria um motivo para puxar um gatilho”.
No programa Trip Transformadores, que vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura, a fundadora do Vida Corrida bateu um papo com a atriz Bárbara Paz sobre o direito à felicidade e dividiu sua trajetória de coragem quando tudo parecia perdido – mas estava apenas começando.
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Bárbara Paz. Estou arrepiada de te conhecer porque você é uma lutadora, me identifico com a sua história. O asfalto começou muito antes do projeto Vida Corrida, quando você era menininha, né?
Neide Santos. Fico muito emocionada de compartilhar essa história. Realmente tudo começou no asfalto, na frente da escola, quando comecei a estudar. Dois anos depois, conheci a atividade física, e um professor muito apaixonado por esportes me incentivou a continuar treinando. Aos 14 anos, ganhei uma medalha numa prova de revezamento e, pela primeira vez, foi algo que conquistei. Até então, tudo o que ganhava ou que eu tinha era usado, havia sido de alguém. Naquele tempo não existia a palavra “empoderar”, mas hoje digo que aquela medalha me empoderou de tal maneira que comecei a acreditar que a felicidade um dia ia chegar, que eu seria uma atleta olímpica no futuro.
“A corrida me deu esperança de um mundo melhor, como acontece com muitos atletas periféricos”
Neide Santos, fundadora do projeto Vida Corrida
Qual foi a importância da corrida na sua vida? A corrida me deu esperança de um mundo melhor, como acontece com muitos atletas periféricos. A gente vê no esporte uma oportunidade de sair daquela pobreza extrema. Além de tudo isso, o esporte me dá a sensação de liberdade, porque quando eu corro, é como se o resto do mundo não existisse. Esqueço de todas as mazelas e ali, naquele meu momento, o mundo é perfeito.
Como começou o seu projeto e porque você escolheu ensinar só mulheres a correr? Em 1990, fui a primeira mulher do Capão Redondo a praticar a corrida de rua. E aí eu apareci na televisão correndo em uma São Silvestre. No dia seguinte, quando voltei para casa, todas as mulheres do bairro começaram a falar que me viram na TV, e muitas perguntaram como era correr. Foi quando Maria Gonçalves, de 60 anos, falou: “Neide, quero correr com você”. Contra tudo e contra todos, Maria começou a correr comigo – enquanto as pessoas diziam que ela era velha demais pra isso. Eu sempre respondi que o corpo nasceu pro movimento, não nascemos para ficarmos estáticos. Correr é só um passo seguinte do andar. Na época, eu já com quase 40 anos, despertei também uma curiosidade naquelas mulheres – e Maria as inspirou. Até porque as mulheres não praticavam esportes por aqui. Só existiam os campinhos de futebol de terra, usados por homens que deixavam suas mulheres com os afazeres domésticos para se exercitar. Foi assim que começou um grande trabalho na comunidade. Eu era a maluquinha que tinha um pelotão de mulheres correndo comigo.
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Foi no Capão Redondo que começou esse projeto tão importante e foi também no Capão que você teve as maiores perdas da sua vida, não? Seu marido e seu filho. O natural seria você querer sair do lugar que te trazia tantas lembranças, mas você quis ficar e transformar esse lugar. De onde tirou forças para ficar e transformar tudo isso? Encontrei forças porque vi que tinham pessoas que precisavam de mim. E por mais que eu fugisse, aquela dor iria comigo a qualquer lugar que eu fosse. Quando você enterra seus amores, é uma dor inexplicável. Mas a vida não é como um filme que se consegue rebobinar. Quando enterrei meu filho, pensei comigo: “Tenho que reescrever minha história, tenho direito de ser feliz”. Sou tão teimosa quanto a esperança. Foi aí que tomei a grande decisão de atender crianças no Capão Redondo. Porque se a criança que puxou o gatilho tivesse acesso a um projeto social que a acolhesse, talvez ela não teria motivo para puxar o gatilho.
“Quando enterrei meu filho, pensei comigo: tenho que reescrever minha história, tenho direito de ser feliz”
Neide Santos, fundadora do projeto Vida Corrida
Você transforma o luto porque é necessário. Como foi a partida do seu filho? Ele era meu primogênito, adorava esportes. Como todo menino de periferia, sonhava em ser jogador de futebol. No dia 6 de setembro, ele veio celebrar uma festa de aniversário da minha mãe e se despediu de mim. Antes de sair, falou: “Mãe, vamos tirar uma foto todos juntos pra você guardar pra eternidade?”. Ele não tinha o hábito de dizer “eu te amo”, mas nos abraçou e fez uma declaração pra mim, minha mãe e o irmão dele, prometendo que no dia seguinte almoçaria com a gente. Quando eu estava fazendo o almoço, chegou uma pessoa na porta de casa e já perguntei: “Aconteceu alguma coisa com o Mark, né?”. Ninguém precisou dizer nada. Quando ele estava vindo almoçar comigo, foi abordado por uma criança e reagiu. No apavoro, o menino puxou o gatilho. Tenho outros dois filhos e eu tinha que estar viva, engolir o choro e cuidar de outras pessoas.
“Feminismo é acompanhar a outra até o hospital, até a delegacia, lutar pra que esse tipo de manchete de jornal desapareça num futuro próximo”
Neide Santos, fundadora do projeto Vida Corrida
Ia te perguntar como você superou o luto, mas está claro. Pra mim, o luto é luta. A força que você trouxe se agarrando ao esporte dentro de um bairro como o Capão Redondo é fundamental. Como você não teve medo? A força que encontrei no Capão Redondo foi de mulheres como eu, que queriam mudar essa realidade. Queriam sonhar junto, ajudar a montar um grande trabalho na comunidade. Desde 1999, elas continuam no Vida Corrida. Há duas décadas, nos unimos. Em 2019, fomos estampadas na capa do jornal Folha de S.Paulo, porque nosso bairro é o que mais machuca mulheres na cidade. O Vida Corrida existe para que as mulheres encontrem no esporte motivos para viver e se encorajem, porque não podemos ficar isoladas – uma tem que ajudar a outra. Quando falamos de feminismo, é sobre isso. Não adianta falar de feminismo para ganhar like nas redes sociais. Feminismo é acompanhar a outra até o hospital, até a delegacia, lutar pra que esse tipo de manchete de jornal desapareça num futuro não muito distante.
Mais de 4 mil pessoas já passaram pelo seu projeto, como o corredor Jonathan Rocha – que tem potencial olímpico – e o atleta paralímpico Júlio César Agripino. Além disso, você promoveu transformações físicas no bairro, como foi o caso da rua Arroio do Engenho, que virou pista de atletismo. Quais foram as maiores conquistas nesses anos de Vida Corrida? As pessoas me chamam de Forrest Neide, uma contadora de histórias da vida real. Há muito tempo, vi que a Avenida Paulista era usada aos domingos e feriados para o lazer da população. Pensei: “Pô, por que não posso transformar uma rua do Capão Redondo numa rua de brincar?”. Quando era criança, sonhava em ter uma rua de brincar e adorava aquela música “Se essa rua, se essa rua fosse minha...”. E consegui, junto com o Poder Público, fazer a rua que não tive na infância. Não coloquei pedrinhas de brilhante, mas fiz uma pista de atletismo nela. E desse asfalto que pintei, um menino que começou a brincar de correr nele. Júlio César Agripino chegou à tão sonhada Olimpíada Rio 2016. Eu estava no estádio do Engenhão, onde milhares de pessoas gritavam o nome do meu menino, a quem ensinei a brincadeira de correr. Foi meu sonho de criança realizado também: não me tornei atleta olímpica, mas conduzi a tocha na Olimpíada. Realizei meus sonhos e cumpri meu papel como cidadã. Se morresse naquele dia, morreria a pessoa mais feliz do mundo.
“Todo mundo pode fazer do mundo um lugar melhor”
Neide Santos, fundadora do projeto Vida Corrida
O que você diria a alguém que queira começar um projeto de transformação como o seu? E o que faria para transformar esse mundo? Meu mundo melhor começa com o esporte. Seu mundo melhor pode começar com cultura, com arte, com educação. Imagine eu, sem nenhum poder aquisitivo ou formação, consegui fazer esse movimento dentro do Capão. Todo mundo pode fazer do mundo um lugar melhor.
Créditos
Imagem principal: Tomás Arthuzzi