Veronica Oliveira: Nossas conquistas ofendem a elite
Faxineira, palestrante, escritora e dona do canal Faxina Boa, ela fala aos mais de 300 mil seguidores sobre os preconceitos em torno da profissão: "Eu não sou burra porque estou lavando privada"
Veronica Oliveira não cresceu com uma vida difícil, mas, em 2015, a empresa de telemarketing onde trabalhava fechou e ela se viu desempregada com dois filhos dividindo espaço com outras 40 pessoas num cortiço. Foi aí que ela descobriu sua vocação na faxina e conquistou os clientes na internet com montagens cheias de referências pop, parodiando cartazes de filmes como Kill Bill. Mas não demorou para que ela entendesse que a faxina não era vista como um trabalho como qualquer outro. "As pessoas olham com pena e, quando percebem que eu tenho conhecimento, que falo inglês, um pouco de japonês, dizem: 'Se você é inteligente por que trabalha com faxina?', conta.
Para falar sobre os preconceitos e estereótipos que cercam a profissão – a sua e de outros prestadores de serviço –, ela criou o canal no Instagram Faxina Boa. “O cara não é burro porque está dirigindo o carro por aplicativo, eu não sou burra porque estou lavando privada. A pessoa que está fazendo qualquer trampo, se você precisa dele, não é inferior nem não tem capacidade de fazer outra coisa”, diz. Hoje ela tem mais de 300 mil seguidores, é palestrante, criadora de conteúdo, comentarista na televisão e autora do livro "Minha vida passada a limpo: Eu não terminei como faxineira, eu comecei". "À medida que eu fui conquistando coisas, percebi que as pessoas mais privilegiadas se sentiam ofendidas. Eu escutava muito: 'Eu gostava de você antes'. Antes do quê? Quando eu estava muito ferrada, é isso? Qual é o problema da elite que não consegue ver uma pessoa progredir?”
No papo com o Trip FM, Veronica fala sobre a sua trajetória, como é ser mãe de uma criança com espectro autista e a necessidade de reformular a visão da elite brasileira sobre os trabalhadores essenciais. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.
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Trip. Eu fiquei intrigado com a sua biografia. Me conta um pouco da sua origem, sua infância? Você era pobre, era rica, era remediada? Como era sua vida?
Veronica Oliveira. Até o começo da vida adulta, se eu paro para pensar, falar que em remediado é até maldade com meus pais. Nós éramos cinco e morávamos na região da Vila Buarque [em São Paulo], eu estudei em um colégio tradicional de Higienópolis. Agora que eu sou mãe e sei o que é bancar as criaturinhas, eu fico imaginando que sustentar cinco filhos e dar as oportunidades que a gente teve não é para qualquer um. Então não dá nem pra falar remediado. Nunca faltou nada, era uma uma vida de classe média muito tranquila. Quando eu engravidei, aos 17 anos, no final da minha da minha adolescência, foi o mesmo período em que os meus pais se divorciaram e cada um foi para seu canto. A gente acabou indo morar na periferia e fui conhecer uma outra realidade. Ao mesmo tempo a gente não estava, de jeito nenhum, passando nenhum tipo de perrengue, ficamos até surpresos com tanta coisa que dava para fazer porque o custo de vida era bem menor.
Quando eu resolvi morar sozinha, e as coisas foram dependendo só de mim, já estava velha e não tinha estudado. E eu comecei a ver que era muito mais complicado. Então eu comecei a trabalhar já tinha 28 anos de idade. Aí a pessoa já tá quase com 30 anos, não tem faculdade, não sabe nada, nunca trabalhou, então fui para o call center e telemarketing. Ainda assim eu consegui crescer dentro das empresas em que eu trabalhei, ganhava super bem. Eu já estava com dois filhos, pagando aluguel, tinha as minhas responsabilidades, e a empresa declarou falência. Foi uma loucura. A gente não sabia quando ia receber, não tinha nenhum direito trabalhista, foram três anos na justiça até conseguir isso.
Eu gosto muito quando tenho a oportunidade de contar minha história para as pessoas, de frisar que às vezes a gente acha que está com a vida garantida – porque nasceu numa família de classe média, porque estudou na escola tal, porque teve isso, teve aquilo –, mas a gente não tem garantia de nada. A vida pode passar rasteira na gente. A gente não sabe o que vai acontecer e tem que estar super preparado para aguentar a porrada no futuro. Eu descobri que a vida adulta era muito mais difícil.
Logo você começou a ganhar uma grana boa com a história da faxina. Deu para melhorar de grana mais rápido que no telemarketing? Eu entrei em outro call center, onde eu ganhava um salário mínimo, pagava de plano de saúde e no final do mês recebia 680 reais. O aluguel do quartinho onde a gente morava era 500 reais. Então que passar o mês com uma média de 80 reais, para remédio, para produto de limpeza, para comida, para tudo. A gente não tinha certeza do dia que ia comer e do dia que não ia. Era uma coisa muito absurda. Na hora em que eu vi que fazendo faxina eu recebia o dinheiro na hora todos os dias… Primeiro que eu cometi todos os erros possíveis porque eu não sabia administrar. Mas com o tempo fui aprendendo e fui lidando com isso.
Eu até brinco que a primeira coisa que eu comprei com a grana da faxina foi um celular bom, o que gerou também uma baita discussão quando eu chegava para trabalhar. Porque aí as pessoas falavam: “Nossa, você é faxineira e tem esse celular?”. Era insuportável. Eu sou neta de empregada doméstica, a minha avó foi empregada na região dos Jardins por 33 anos, de uma família que tem seis sobrenomes, aquela coisa toda. E eu ouvia dizerem que ela era uma parte importante da família, mas ela comia na área de serviço, a comida dela era outra. Qual a parte importante da família que ela é? Nem a mesma comida ela come. Eu só fui me dar conta disso quando eu já estava grande, porque eu frequentava a casa e visitava minha avó.
Quando eu passei a trabalhar como faxineira, eu pensei: "Bom, isso ficou para trás, coisa dos anos 90". E eu vi que as pessoas não entravam no mesmo elevador que eu, me davam comida velha, pegavam coisas que literalmente eram lixo e falavam: “Olha, separei umas coisinhas para você”. Gente, é a mesma coisa, não mudou nada! As pessoas olham com pena e, quando percebem que eu tenho conhecimento, que falo inglês, um pouco de japonês, dizem: “Se você é inteligente por que trabalha com faxina?”.
Aí eu resolvi usar a internet para falar sobre isso, porque as pessoas não precisam julgar nem colocar esses estereótipos ridículos. Eu não falo só da limpeza, qualquer prestação de serviço! O cara que está dirigindo o carro por aplicativo não é burro porque ele está fazendo isso, eu não sou burra porque estou lavando privada, e a pessoa que está fazendo qualquer trampo, se você precisa dele, não é inferior nem não tem capacidade de fazer outra coisa. Se todo mundo quiser ser presidente da empresa, quem vai trabalhar nela? Não dá para todo mundo ser o top do top.
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No ano passado, o nosso digníssimo ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o dólar alto era bom para todo mundo porque “a empregada doméstica estava indo para a Disney fazendo uma festa danada”. Obviamente há esse preconceito, uma coisa de "tem gente que pode", "tem gente que não pode", que nega a possibilidade de ascensão, de mobilidade social. Você, que frequenta as quebradas dos apartamentos de Higienópolis, do Jardim Europa, acha que esse povo está piorando ou melhorando? A pandemia está ajudando a perceberem a existência do outro ou os caras só estão aumentando o tamanho do muro e dando uma reblindada no carro? O Paulo Guedes conseguiu fazer eu ter uma vontade doida de ir para a Disney. Sempre tive vontade de conhecer todos os lugares, nunca a Disney, mas agora eu quero, só por causa dele. E a sua fala me lembra duas notícias recentes: uma sobre a questão da insegurança alimentar da população brasileira, que agora voltou a atingir milhões de pessoas, um patamar que não alcançávamos há 17 anos; e a notícia de que entraram não me lembro quantos bilionários brasileiros da lista da Forbes. E aí eu fico pensando, olha como as coisas são!
Levando isso pra dentro da minha realidade, eu fui atender uma cliente em um condomínio de luxo no Itaim Bibi e ouvi uma conversa entre dois moradores no elevador dizendo que o filho do zelador tinha comprado um carro igual ao de um deles. Aí ele falou assim: “Como é que eu vou andar com o mesmo carro?”. Eu me segurei muito pra não falar: "Você no seu e ele no dele". À medida que eu fui conquistando coisas, percebi que as pessoas mais privilegiadas se sentiam ofendidas. Eu escutava muito: “Eu gostava de você antes”. Antes do quê? Antes, quando eu estava muito ferrada, é isso? Você não pode trabalhar e progredir, conquistar coisas. Quando eu comprei um carro, cheguei para fazer uma faxina, a moça me recebeu e falou: “Eu não quero você na minha casa porque seu carro é melhor que o meu, você não precisa trabalhar”.
Acho que se eu estivesse na periferia, reclamando que eu estou com fome, as pessoas se sentiriam confortáveis. Isso é muito horrível. Eu penso: qual é o problema da gente? Qual é o problema da elite, que não consegue ver uma pessoa progredir? E eu odeio o papo de meritocracia. Eu frequento um bocado de eventos e sempre converso com quem está limpando os lugares. Eu vou arrotar um discurso meritocrático na frente de uma pessoa que está trabalhando das 8 da manhã às 10 da noite para ganhar 45 reais? Não dá!
O que eu estou vivendo não é a regra, não vai ser a regra. Então o que eu posso fazer é mostrar para essas pessoas que isso está errado, que ela está sendo explorada, que o trabalho dela tem um baita de um valor! Porque se ela não tivesse limpado aquele evento, ele não estava acontecendo, ia ser uma zona, com milhares de pessoas num pavilhão e sem ninguém pra limpar. Quando as pessoas começam a ter essa noção, eu entendo a importância do meu trabalho nas redes sociais, mas é difícil para caramba!
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