Sidarta Ribeiro: sonho, memória e maconha

Fundador do Instituto Cérebro, o neurocientista fala sobre o uso de canabinoides no tratamento de doenças como o câncer, a importância do sono e como o excesso de telas está nos deixando mais burros

por Redação em

Uma breve apresentação mal dá conta de enumerar todos os títulos de Sidarta Ribeiro. Fundador e vice-diretor do Instituto Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde cuida do laboratório Sonho, Sono e Memória, o neurocientista é mestre em biofísica, doutor em comportamento animal, pós-doutor em neurofisiologia e, bem, pra longe da ciência, contramestre de capoeira, discípulo de Mestre Caxias e Paulinho Sabiá.

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Ele já publicou mais de uma centenas de artigos, mas foi seu livro, O Oráculo da Noite, que levou a história e a ciência dos sonhos para a cabeceira de milhares de pessoas que nunca folhearam um periódico científico. Para além de sua extensa pesquisa sobre nosso sono, Sidarta também é um dos maiores nomes do país quando se fala em substâncias psicoativas, em especial a maconha. O neurocientista defende que a cannabis é a grande revolução da medicina do século 21, assim como os antibióticos foram no século passado. "O Brasil ainda não conseguiu regulamentar coisas básicas como o direito ao cultivo em casa ou em associações e cooperativas, a disponibilidade de canabinoides para pesquisa, e continua agredindo a população por comercializar remédios", diz. "É preciso regulamentar o uso medicinal da maconha imediatamente, porque a população sofre muito".

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No papo com o Trip FM, Sidarta fala sobre o avanço dos estudos que mostram os efeitos de canabinoides no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson e até mesmo no controle de tumores de câncer, as consequências do uso excessivo de telas em crianças e adolescentes e a importância do sono de qualidade em nossa vida. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.

Trip. Quais são as novidades sobre os efeitos terapêuticos das substâncias que vêm da planta cannabis?

Sidarta Ribeiro. A cannabis não é uma planta que é um só remédio, ela é muitos remédios diferentes, porque ela tem diversas genéticas. Existem também diferentes maneiras de prepará-la, de curá-la, de fazer extratos e aquecimentos a diferentes temperaturas que vão permitir a utilização de mais de 400 compostos de interesse terapêutico, que a gente chama de canabinoides, terpernos, flavonoides. Então a cannabis veio para ficar. É importante que as pessoas entendam: a medicina do século 21 é uma medicina canábica. A cannabis é muito importante na neurologia, por exemplo, no controle de epilepsias, para mitigar e potencialmente reverter os danos cognitivos no Mal de Alzheimer ou para diminuir tremores no Mal de Parkinson. Também para controle de dores neuropáticas e crônicas, e, na clínica do câncer, não só pela mitigação dos efeitos colaterais de radioterapia e quimioterapia, mas também porque existem combinações de canabinoides que são antitumorais, em particular para gliobastoma. Mas é muito importante que a intervenção seja feita cedo, bem no início, e essa evidência da capacidade antitumoral dos canabinoides está crescendo muito rápido.

“A maconha está para o século XXI assim como os antibióticos estão para o século XX”
Sidarta Ribeiro, neurocientista

Eu tenho falado que a maconha está para a medicina do século 21 assim como os antibióticos para o século 20. Não dá para tapar o sol com a peneira. Existem muitos negacionistas da maconha medicinal no Brasil, mas isso está mudando porque os pacientes e seus familiares estão exigindo serem tratados com o que tem de melhor. Muitas vezes o que tem de melhor não é o canabinoide puro, que é caro, mas um extrato de amplo espectro de uma planta que é muito mais barata e que tem potencialidades terapêuticas do que a gente chama de efeito comitiva, que é um efeito sinérgico, de cooperação química entre diferentes canabinoides. Por exemplo, a combinação de THC com CBD é extremamente terapêutica. O CBD reduz alguns dos efeitos adversos do THC e permite que os efeitos benignos estejam presentes. E é muito interessante porque são duas moléculas praticamente idênticas, a diferença é uma ligação. Essa uma ligação faz com que ela se torne fisiologicamente quase que opostas, então uma equilibra a outra. Então existe uma química fina sendo feita hoje em países como Israel, Alemanha, Estados Unidos, mas o Brasil está muito atrasado nessa história toda. O país ainda não conseguiu regulamentar coisas básicas como o direito ao cultivo em casa ou em associações e cooperativas, a disponibilidade de canabinoides para pesquisa, e continua agredindo a população por comercializar remédios. Então é preciso realmente legalizar, regulamentar o uso medicinal da maconha imediatamente porque a população sofre muito. Inclusive em relação à Covid houve um aumento muito grande do consumo de maconha – não só aqui, mas em diferentes países do mundo –, só que em um ambiente de proibição, então com muitos danos farmatológicos e sociais aos usuários. Isso precisa mudar. 

Sidarta Ribeiro, na formatura da Rockefeller University, em 2001 - Crédito: Arquivo pessoal

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O uso de dispositivos eletrônicos também aumentou significativamente. 65% das crianças e adolescentes estão viciados em dispositivos e são incapazes de manter distância deles mesmo que por 30 minutos. As crianças estão completamente dependentes e os adultos também. Me fale um pouco dessa desgraça. Eu concordo contigo, é uma desgraça. Tenho um filho de 10 e outro de 3. Os dois são superdependentes de tela e eu limitei em duas horas, no máximo, para o mais velho, e o menor estou tentando que seja menos ou nada. Mas é uma guerra, uma dependência gigantesca, uma grande irresponsabilidade que a gente já cometeu com nossos filhos, netos e conosco também. Estamos também afetados por isso. É uma grande pandemia de celulares, de tablets, de laptops, de estarmos todos online o tempo todo, muita ansiedade. Tem um livro importante feito por um neurocientista francês, Michel Desmurget, que se chama A Fábrica de Cretinos. Ele argumenta que o uso excessivo de telas é a explicação para o fato de que essa geração mais jovem, com 15 anos ou menos, tem um QI menor do que seus pais. Isso nunca tinha acontecido desde que o QI foi inventado. A cada geração o QI aumentava, e agora caiu.

Isso tem a ver com um achatamento de uma experiência que era muito rica: você brincava, conversava, estudava mais, lia mais. As crianças e adolescentes do passado faziam uma diversidade de estimulações sensoriais e motoras que tinham pouca tela, no máximo uma televisão com dois ou três canais. Agora não, é uma coisa infinita. As crianças estão completamente dependentes e os pais, não conseguindo lidar com os filhos dentro de casa, entregam eles para as telas e, muitas vezes, também se entregam para as telas. Então você tem situações em que há quatro, cinco, seis pessoas na casa, cada um com uma tela diferente, às vezes com volume alto ao mesmo tempo, uma cacofonia. É uma fábrica de doidos, provavelmente uma fábrica de cretinos. Eu estou tentando convencer meu filho mais velho a entender a necessidade de regrar, de moderar e buscar um caminho do meio. A tela não é ruim. O excesso de tela, sim.

Sidarta Ribeiro, neurocientista e professor, vencedor da categoria "Sono" do premio TRIP Transformadores de 2007 - Crédito: Divulgação

Há 15 anos a Trip fez uma espécie de statement, uma declaração das coisas que ela achava mais importante na vida, e uma delas é o sono. Desde lá a gente sabia que havia muito significado na ideia de dormir com qualidade, com tempo, com profundidade. Sidarta, o que é o sono e o que é o sonho? Ambos são extremamente importantes. O sono é fundamental. Sem ele, a vida humana não é possível. Um animal privado completamente do sono não sobrevive. O sono é superimportante para a formação de proteínas, então tanto para a pessoa que está querendo aprender muito quanto para a pessoa que está querendo fazer muito músculo. Aí se aproximam o intelectual do marombeiro, entendeu? O sono é fundamental para regulação hormonal, para a desintoxicação do cérebro, para limpar uma série de toxinas produzidas pelo próprio cérebro. Então são vários níveis de funções diferentes e, no topo do bolo, tem uma cereja que é o sonho. O sonho já é um processamento de mais alta ordem, mais complexo que diz respeito à simulação de situações, de comportamentos, de cenas, de imagens, de dilemas, de problemas. Eles dizem respeito à navegação do mundo complexo das cascatas de símbolos que a gente gera todos os dias. Todos esses níveis dizem respeito à saúde física e mental das pessoas. A pessoa que consegue ter um sono de boa qualidade – que começa não muito tarde, termina não muito cedo, não é fragmentado e que, ainda por cima, permite a lembrança do sonho – está muito bem na fita, está muito bem posicionada para ter saúde persistente do corpo e da mente.

Créditos

Imagem principal: Fernando Martins

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