Leo Jaime: Fui cancelado por minha forma física
Ele já atuou com Marília Pêra, cantou com Chico Buarque e entrevistou Roberto Carlos. Viu as portas se fecharem por causa da gordofobia, mas aprendeu na porrada: "Soube me levantar"
Leo Jaime foi cancelado antes mesmo do cancelamento ter nome. "Nunca quis ser galã, mas me colocaram lá e em seguida fecharam as portas para mim porque eu estava engordando e com ar decadente com trinta e poucos anos", conta o músico, ator e jornalista, que aos 20 anos já tinha sucessos tocando nas rádios de todo o Brasil, mas viu tudo desaparecer quando começou a ganhar peso. “Minha personalidade deve ser maravilhosa, porque as pessoas só falam da minha forma física. Eu não conseguia marcar uma reunião, ninguém me convidava para nada, nenhum empresário aceitava me empresariar. Que a situação é essa? Completamente cancelado”.
Foi só quando surgiram os blogs e as primeiras redes sociais – lembra do Orkut? – que Leo restabeleceu contato com seu público e conseguiu recuperar espaço na mídia e no showbiz. "Foi o que me salvou", conta. Mas ele aprendeu, na porrada, que respeito e tolerância não são negociáveis. "Nenhuma razão te dá o direito de ser cruel, escroto ou mesquinho sem razão nenhuma", diz. "O Big Brother espelha isso porque o que você vê são as pessoas linchando os linchadores".
No papo com a Trip, Leo Jaime fala sobre gordofobia, sucesso, zona de conforto – "o que é isso? é de passar no cabelo?" – e a falta de grana que enfrentou no começo da carreira. "Eu batia na porta do Cazuza quando estava sem comer", conta. "Foi muito duro".
Trip. A gente está vendo esse Big Brother exacerbando esse negócio de fama, de influenciadores e cancelamentos. O que é essa fama? Por que as pessoas perseguem esse bicho?
Leo Jaime. Pois é, parece uma tara. Eu entendo que há uma coisa, e aí é bom a gente falar dos nossos próprios demônios. Em algum momento eu percebi que a aprovação alheia era, para mim, mais do que um reconhecimento do meu próprio valor, uma necessidade de aceitação, de endosso, como se a aprovação do outro me legitimasse. Eu acho que em parte, especialmente quando você está querendo despontar, sair do anonimato e criar uma voz, criar um público, ser admirado pelo seu trabalho, tem toda uma coisa de vaidade que fica mexida nisso. Você de certa forma pode ficar refém. Hoje a gente percebe que as pessoas que vão se propor a uma carreira diante do público fazem mídia training, se preparam para isso. A gente não tinha a menor noção de como se fazia. Eu lembro que no auge do sucesso a meta era comprar um XR3. Não é que ficava rico, se saía da merda, só. Hoje é diferente, os caras compram um avião no primeiro ano e aí tem que lidar com fortuna, com popularidade, com o julgamento do outro, etc. Eu me lembro que, depois de ter lançado um disco que fez muito sucesso, no seguinte eu sentia que as músicas que eu escrevia eram como se tivessem 100 mil pessoas olhando por cima do meu ombro para ver cada frase que eu falei. Aí virou uma coisa de autoconsciência, de se levar muito a sério, que é muito desagradável. Acreditar no personagem também é muito bobo.
Respondendo à sua primeira pergunta, eu faço muita coisa. Usando a frase do meu amigo Xico Sá, “o sapo não pula por boniteza, ele pula por necessidade”. Eu tive momentos de altos e baixos, tanto na minha carreira de jornalista quanto a minha carreira de músico e na minha carreira de ator. Nunca foi muito fácil, nunca foi muito simples, nunca foi contínuo, a não ser durante alguns anos que eu trabalhei no GNT. Eu vejo que a vida me deu boas oportunidades. Eu acho que devo ter acertado mais do que errei, mas errei muito. Soube me levantar e tive resiliência, e sobretudo não levei o personagem para cama.
Revendo um pouco a sua história eu vi uma passagem que eu não tinha no meu radar, que numa época você não tinha grana para comer. Que época foi essa? Eu comecei a dar certo muito cedo, porque eu tinha 20 anos e tinha música tocando no rádio. Mas o que isso rendia de dinheiro não pagava as minhas contas e eu estava num momento em que eu já achava que não devia mais trabalhar como vendedor de loja de roupa ou ser barman. Eu achava que iria ficar numa coisa artística, mas tinha que dar aula de violão para ver se fazia o dinheiro que pagava as contas. Da hora em que eu cheguei no Rio até quando eu pude comprar minha primeira guitarra foram oito anos. E nesses oito anos a coisa foi complicada porque nem sempre eu tinha o que precisava. E ao mesmo tempo eu tinha quebrado o pau com a família, perdi o suporte familiar porque eu tinha largado de estudar para seguir a carreira artística sem plano B. Uma coisa que eu não gostaria que meu filho fizesse.
Eu lembro do Ney Matogrosso, que conheci nessa época, falar: "Tem algumas pessoas que pagam o ingresso antes de ver o filme e é o que está acontecendo com você. Você tá pagando ingresso caro, provavelmente o show vai ser muito bom". De certa forma isso me serviu como guia durante esse processo todo. Eu acho que eu paguei para assistir, foi muito duro. Eu batia na porta do Cazuza quando estava sem comer. É curioso que ele ficava puto por ter alguém das relações dele passando por esse tipo de situação. Foi uma época.
Você mencionou essa sua ruptura com a família. Como é a sua família? Quem são? Onde estão? De que se alimentam? O meu nascimento marca a separação dos meus pais, então foram dois mundos muito separados. Na minha primeira infância morei na casa da minha mãe. Hoje quando eu vejo jogos do Atlético Goianiense, em Goiânia, o estádio do time se chama Antônio Accioly, que é o nome do meu avô, pai da minha mãe. Então ela vinha de uma família boa, família de meios, vamos dizer assim. E o meu pai veio de uma outra origem, do interior de Goiânia. Eles casaram-se muitos jovens, mas o casamento foi curto. Eu era o terceiro filho, eles tinham 21 anos. Meu pai foi logo em seguida para São Paulo. Uma certa altura ele me levou para morar com ele, e aí uma parte da infância morei em Goiânia com minha mãe e outra parte em São Paulo com meu pai. Na adolescência eu voltei a Goiânia e fui para Brasília e de lá para o Rio de Janeiro. Saí de casa cedo, com 16 anos, porque era uma estrutura familiar de pessoas que estavam amadurecendo, arrumando seu lugar no mundo e tiveram filhos muito cedo. Eu acho que foi um momento difícil para todos nós. Mas meu pai era um cara muito estudioso, bacana, uma figura que foi emblemática para mim. Apesar de termos tido essas rusgas na hora de decidir os caminhos, também ganhei a admiração dele por acreditar em mim, apostar no meu sonho e vingar.
Dá pra ver que você tem uma base muito sólida. Não é qualquer um que consegue fazer poesia, escrever música, ser colunista de jornal, fazer roteiro de filme. Tudo isso exige um preparo, uma dedicação ao mundo intelectual, digamos assim. Como é que você fez para reunir esse repertório? Eu lia muito quando era adolescente. O fato de ler muito, de estudar muito também, de partir do princípio que eu não sabia o suficiente, sempre me fez querer aprender. Então eu estudei teatro, música, depois eu fui estudar jornalismo porque queria escrever. Eu lembro, por exemplo, as conversas com o Renato Russo. Ele planejava ser diretor de cinema e a gente tinha um grupo chamado Amantes da Sétima Arte. A gente se encontrava para ver filmes e debater os filmes. A ideia de ser cineasta me interessava porque me agradava contar histórias. Em algum momento a música parecia ser o melhor instrumento para a gente contar histórias, música pop, porque era o que estava acontecendo. Eu achava que o Cazuza seria escritor porque, no início, quando a gente se reunia eu mostrava as músicas, ele mostrava coisas que ele escrevia. O meu primeiro flerte com as artes aconteceu no primeiro filme com atores que eu assisti, foi Help, dos Beatles. Eu queria fazer isso, era cinema, era música, era uma coisa que incluía tudo. Eu fui estudar tudo: estudei dança na adolescência, fiz Conservatório de Música. Eu aprendi a ler partitura numa escola pública em São Paulo, no Brooklin, que tinha uma banda marcial e eu fui tocar na banda. Primeiro trompete, depois passei para bateria. É um caminho todo de experimentações. De certa forma também por não contar com as coisas garantidas. Eu ouço muitas pessoas falando em zona de conforto, mas eu não faço a menor ideia do que é isso. Onde fica? É de passar no cabelo?
Tem um outro tema que eu acho que é bem interessante a gente abordar. Eu acho que você talvez tenha sido uma das primeiras pessoas famosas, de visibilidade pública, a encarar gordofobia. Por mais que já tenha falado desse tema, acho que ele é extremamente educativo. Como você lidou com essa violência? Boa parte da população não tem o corpo que a sociedade dita como sendo o corpo padrão. A gente tem que ter esse debate. Ter o abdômen de tanquinho não existe, a natureza não oferece isso a ninguém, isso é uma construção, que depende de gastos, de tempo de dedicação e de química no corpo. Ninguém precisa disso, não há necessidade, não há uma lei, Darwin não estabeleceu que o ser humano ter tanquinho é melhor. Os preconceitos e as estruturas de julgamento existem, inclusive para fazer com que as pessoas sofram com seus próprios corpos e queiram gastar mais, consumindo produtos, suplementos, ginástica, ao invés vez de buscar ser feliz com o próprio corpo. Foi algo que eu tive que aprender na porrada.
Eu diria para você com toda certeza que foi por isso eu me afastei da indústria de disco. Nunca quis ser galã, mas me colocaram lá e em seguida fecharam as portas para mim porque eu estava engordando e com ar decadente com trinta e poucos anos. Eu não sou modelo, nem que fosse, hoje a gente sabe que para ser modelo não precisa ter o corpo de atleta olímpico. Eu era cantor e queria que a minha música fosse ouvida. Ninguém ouvia uma fita demo, não queriam saber. E a explicação era: "você tem que emagrecer, é pro seu bem" ou "você não está se cuidando". E o subtexto é: "é muita falta de força de vontade", "a pessoa é muito desleixada". As pessoas queriam me humilhar para o meu bem. Me paravam na rua, me chamavam de chupeta de baleia, falavam "toma vergonha na sua cara", "vai fazer exercício". E eu entendia que isso era muito mais valioso do que ter sido parceiro da Marília Pêra em um ano de temporada no teatro, ter feito a maior entrevista do Roberto Carlos até então, ser chamado para cantar com o Chico Buarque no especial de fim de ano dele... Então eu fui colecionando algumas vitórias pessoais e pensando: engraçado, elas são tão pouco importantes pra essas pessoas, tão menos importantes do que meu shape. Resolvi então que não devia prestar atenção nessas pessoas.
Está rolando a edição 2021 do Big Brother Brasil e teve até panelaço pedindo a expulsão da Karol Conká. Você acabou de falar sobre um tipo de cancelamento, o precursor do cancelamento. Essa forma odiosa de suspender a pessoa, tirar a pessoa de circulação. Algo que eu acho que vale a gente comentar é essa coisa pendular da sociedade: ou ela é muito racista ou ela problematiza demais. Sempre uma coisa de extremos, que é um pouco do que está acontecendo no BBB nesse momento. Eu acho muito interessante porque tem uma coisa que está por trás disso tudo que está acontecendo que é o linchamento. A barbárie não é negociável, é linchamento. Em nenhuma circunstância é aceitável que sejamos absolutamente intolerantes com os outros. Só que aí todo mundo quer linchar. E aí vamos ver gente falando da Karol Conká, que ela tem atitudes deploráveis. Então cancele as atitudes, e não autora da atitude, ela não é uma coisa só. Ela não é só um ato, só uma fala, ela é uma miríade de atitudes e por isso ela chegou onde ela chegou. Mas aí volto pra mim. Ah, eu fiz isso, fiz aquilo, mas eu era barrigudo. E aí eu não conseguia marcar uma reunião, nenhuma gravadora, não tinha nenhum contrato na televisão, ninguém me convidava para nada, nenhum empresário aceitava me empresariar. Que a situação é essa? Completamente cancelado. Eu fiz alguma cagada? Eu traí alguém? Eu fui violento? Era uma coisa curiosa. Minha personalidade deve ser maravilhosa porque as pessoas só falam da minha forma física. Só me cancelam por causa da minha forma física. Fato é que eu consegui dar a volta por cima, criando um blog, o primeiro do Brasil. E comecei a ter uma comunicação direta com o público, e horizontal. Fui primeira pessoa do Orkut a ter mais de mil amigos. Comecei a ser chamado por empresas de comunicação para ser o piloto de novas ferramentas. Eu também fui um dos primeiros a ter 5 mil pessoas no perfil do Facebook. Então esse estabelecimento de uma comunicação direta com o público, de igual para igual, foi o que me salvou. Aí a mídia percebeu. Comecei a tocar em outros bares, comecei a ser chamado para tocar na televisão. Voltei para a mídia e para o showbiz, mas depois de alguns anos sem portas abertas. Então sei o que é o cancelamento. É uma coisa horrorosa. Porque há um julgamento, não tem que ouvir o outro lado. Essa história de linchamento é o que está em questão.
Você pode ser intolerante com determinadas coisas, mas tem limites. A tolerância só serve para quem você de fato detesta, ser tolerante com a pessoa que você gosta não existe. Com quem você gosta tem que ser afetuoso. A tolerância se dá. As pessoas acreditam naquilo que é a verdade delas e a sua verdade não é maior, desde que elas não queiram cancelar, linchar, te impedir de ser quem você é, ter a sua sexualidade, sua religião, sua crença, sua ideologia. E aí vem o que eu acho que é fundamental: respeito e tolerância. O respeito é a única forma que a gente tem para conviver no mundo que tem 7 bilhões de pessoas. E a gente não pode estabelecer que violência, brutalidade e linchamento sejam o melhor meio de negociar as coisas. Eu acho que a educação, diplomacia e respeito são questões fundamentais para debater hoje em dia. O Big Brother espelha isso porque o que você vê são as pessoas linchando os linchadores. Os canceladores se achando o último biscoito do pacote e metendo o pau em todo mundo. E aí como eu estou cheio de razão eu tenho direito de ser cruel, escroto, tenho direito de ser mesquinho sem razão nenhuma. Nenhuma razão te dá esse direito, mas acho que só as pessoas tomando muita porrada elas vão aprender.
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Imagem principal: Tielle Mello / Divulgação