Procura-se doadora de óvulos - US$1.500
Viver na Big Apple como bolsista não era fácil, e por isso vivíamos procurando essas oportunidades de servir de “cobaias”, ou de “controles normais”
"Procura-se doadora de óvulos – US$1.500…", dizia o anuncio no jornalzinho interno do Hospital Mount Sinai de Nova Iorque, onde eu era estudante de doutorado, 1990. Viver na Big Apple como bolsista não era fácil, e por isso vivíamos procurando essas oportunidades de servir de “cobaias”, ou de “controles normais” para as pesquisas desenvolvidas no hospital. No semestre anterior eu havia topado fazer uma broncoscopia por US$200. Quando me vi com um tubo enfiado no nariz (ok, podia ser em algum lugar pior), jogando um líquido em meus pulmões, pensei “Caramba, meu pai teria me pagado US$300 para eu NAO fazer isso!” – tarde demais, tive que encarar…
Depois teve o episodio no Departamento de Psiquiatria – eles procuravam mulheres para serem controles normais em uma pesquisa sobre tensão pré-menstrual. Nem me lembro quanto pagavam, mas devia valer a pena pois lá fui eu toda feliz para a entrevista com uma psiquiatra. A conversa ia muito bem, ela so anotando minhas respostas, mal olhando para mim, até que perguntou: “Você já fez terapia?”. Eu, que devo minha sobrevivência à adolescência a 5 anos de análise, respondi traquilamente que sim. Ela congelou, levantou a cabeça pela primeira vez e perguntou bem devagar me olhando nos olhos: “Por quanto tempo?”. “Cinco anos”. Mais devagar ainda, deixando as anotações de lado: “Por que você fez terapia?”. E ai me dei conta de que ela estava imaginando que eu havia sido abusada sexualmente pelos meus pais, ou algo assim, que justificasse tanto tempo no diva. “Por nenhuma razão muito séria, porque ser adolescente era difícil”, respondi. Ela voltou ao questionário, e no final disse que entrariam em contato comigo. Alguns dias depois recebi um telefonema dizendo que infelizmente eu não tinha sido aceita no estudo – ou seja, por causa de 5 anos de Freud eu fui reprovada como controle normal, que tal?!
Mas agora a proposta era especial: US$1.500 era muito dinheiro para nós pobres pós-graduandos, e mais uma vez lá fui eu ver do que se tratava. Minha primeira surpresa foi saber que os óvulos doados não seriam usados para pesquisa, mas sim para que outras mulheres, que não conseguiam ovular, tivessem filhos. Eu sabia que doação de esperma para reprodução era uma coisa comum, mas nunca tinha ouvido falar de mulheres terem filhos com óvulos de outras mulheres – aos meus 23 aninhos, foi um choque! “Mas a criança será minha filha!”, eu exclamei. “Não é bem assim…”, disse a entrevistadora, e começou uma argumentação etérea sobre o significado de maternidade. Não me convenceu, afinal eu estava fazendo um Ph.D. no assunto, e a criança seria geneticamente minha filha sim, poderia ter a minha cara!”. Me afligiu a ideia de mais tarde andar pela cidade encarando bebezinhos e tentando me identificar em algum deles. Outra ideia estranha, daquelas que você não escolhe, também me veio à mente “E se eu não gostar de algum filho que eu vier a ter? Será que não vou ficar pensando naqueles que eu poderia ter tido com os óvulos doados?”.
Fui para casa confusa, mas de repente pensei no sofrimento dessas mulheres na batalha para ter filhos, e que dependem da doação de óvulos para vence-la. E comecei a sentir que devia isso a elas, como uma forma de solidariedade feminina. Voltei à clinica para mais uma conversa.
Na segunda entrevista, já como uma potencial doadora, avaliaram o meu “valor” como reprodutora. Olhos verdes, cabelo “curly” (o que nos EUA das louras de cabelo liso escorrido tem seu valor), qual é o seu QI? (não sei, mas deve ser bom porque estou fazendo um doutorado aqui). A essas alturas eu já estava me sentindo como um produto de supermercado, uma lata de sopa Campbels sendo analisada pelo cliente. Perguntaram ainda sobre todos os meus parentes de primeiro grau, se alguém tinha alguma doença genética, alcoolismo, depressão, doença cardíaca, câncer – nada, saúde perfeita (ou quase).
Em seguida me explicaram todo o procedimento: eu receberia injeções diárias de hormônios para produzir o maior numero possível de óvulos, e seria monitorada com ultrassom para verem quando esses estivessem prontos para serem coletados. No dia D, eu seria internada, sedada, e meus óvulos coletados por uma “punção intra-vaginal” – sim, um procedimento invasivo, mas com risco mínimo, basicamente o mesmo que passa uma mulher para fazer fertilização in vitro.
Até aí eu ainda estava animada – inclusive a ideia de ser sedada era interessante para relaxar um pouco das tensões do doutorado. Mas então veio uma ultima informação, um pequeno detalhe: “Ah, as injeções de hormônio podem fazer você acumular um pouco de agua e ganhar algum peso.”. Aquilo caiu como uma bomba para mim, e, pasmem, por causa disso desisti do programa (me perdoem, repito, tinha 23 aninhos).
Doação de óvulos é um assunto muito serio, e há uma grande demanda por essas células tão especiais, tanto para reprodução quanto para pesquisa. Atualmente, as compensações pelo tempo e desconforto das doadoras (não pela venda dos óvulos, ok?) vão de US$5mil a US$10mil nos EUA. Já no Reino Unido, a lei só permite que se pague £750 pela doação. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina diz que a “doação [de óvulos ou espermatozoides] nunca terá caráter lucrativo ou comercial”. Fato é que existe um grande debate sobre os aspectos éticos de se pagar pela doação de óvulos e o risco da comercialização de órgãos humanos.
Curioso pensar que enquanto isso homens doam esperma há décadas sem grandes questionamentos ou polemicas, e por meros US$100. É verdade que a “coleta” de espermatozoides é sem duvida bem menos incomoda do que a de óvulos – como anuncia um banco de esperma Australiano “… É mais divertido do que doar sangue!”.
*Lygia da Veiga Pereira trocou Ipanema pela Universidade de São Paulo. É professora Titular de Genética Humana e chefe do Laboratório Nacional de Células Tronco Embrionárias da USP e referência nacional em pesquisas com células tronco. Escreve às quintas na Tpm e também no http://leiaasmeninas.com.br/