Nudez em foco
Em novo clipe, Tulipa Ruiz defende a nudez: "Sou uma mulher grande, mas entender meu corpo e falar sobre isso me ajudou a ficar gigante"
Provavelmente você já abriu o Instagram e se deparou com alguém nu no feed. Pode ser um ensaio sensual ou uma selfie para angariar uns likes extras, mas a verdade é que a nudez nunca esteve tão em pauta. E o novo clipe da Tulipa Ruiz, “Pedrinho”, é prova disso. A música, lançada originalmente no álbum Efêmera (2010) e regravada em Tu (2017), fala sobre um homem cortês, criativo, libertário, que não vê problemas em ficar nu, representado no vídeo pelo ator Kelner Macêdo. “A música dialoga muito com o meu trabalho, de explorar o corpo em sua liberdade e potência. Topei o convite quase que no escuro, porque não conhecia ninguém direito quando cheguei no set. Mas foi uma nudez natural, estar sem roupa não fez diferença na relação com ninguém”, lembra Kelner.
A postura dessa figura parece fazer ainda mais sentido nos dias de hoje. “Pedrinho é um estado de espírito, como a própria Tulipa diz. A regravação da música rolou mais ou menos na mesma época da gritaria em cima da performance do Wagner Schwartz, no MAM, em que criticaram e censuraram nudez e arte. E hoje, no contexto político que estamos vivendo, faz ainda mais sentido transformá-la em produção audiovisual”, reforça Pedro Henrique França, que assina a direção do clipe ao lado de Fábio Lamounier e Rodrigo Ladeira, autores do projeto Chicos, que retrata homens gays nus e conta suas histórias de aceitação — do corpo e da sexualidade.
Para desvendar quem é Pedrinho e falar sobre a relação com o corpo (nu ou não), batemos um papo com Tulipa. "A nudez era pra ser tão mais simples, né?", diz ela.
Tpm. Qual a história dessa música?
Tulipa Ruiz. É uma das minhas primeiras, em que uma pessoa fala de outra, por quem está apaixonada. E a descoberta dessa paixão vai rolando conforme a pessoa é descrita. Ela vai se apaixonando pela liberdade da outra, o que é muito bonito. Tu é um álbum de regravações e, num primeiro momento, “Pedrinho” não ia entrar. Mas decidi incluir, assim como “Desinibida”, outra faixa que tornou-se parte do álbum de última hora, por causa do momento obscuro e de conservadorismo que a gente vive hoje. Foi uma forma de resistência e também de proteção para mim. Tê-las no disco é quase como uma armadura para mim.
E quem é o Pedrinho? É um perfil, conheço muitos Pedrinhos. O Pedro Henrique França, que assina a direção do clipe, é meu grande amigo e contemporâneo de faculdade. Sempre me perguntaram se era ele o cara da música, então, quando decidimos filmar, sabia que ele tinha que dirigir. Para explicar ou confundir de uma vez [risos]. Antes de ser uma música, Pedrinho era um desenho: ele de costas, correndo pro infinito, pra onde ele quisesse. Isso é uma imagem muito forte na minha cabeça desde que compus. E eu só saquei durante o clipe que o Pedrinho foi ganhando rosto – antes, só conhecia ele de costas.
Na letra da música, você diz que Pedrinho “parece comigo, mas bem resolvido com a sua nudez”. Ficar nua já foi um problema para você?
A nudez era pra ser tão mais simples, né? Acho que cada vez mais a gente tem se aproximado e usado o nosso próprio corpo. É uma coisa que aprendi muito verbalizando essa letra. E também tem essa coisa de como o processo vai ensinando, mostrando coisas que a gente não premedita. Durante o meu caminho, cantar “Pedrinho” várias e várias vezes me ensinou a mudar essa relação com a nudez. Entendi minha liberdade a partir do momento que passei a falar sobre isso e ganhar coragem para me mostrar. Tanto que, para a regravação, mudei a letra. Agora, nessa parte, eu canto “Pedrinho parece comigo, também resolvido com a sua nudez”.
Qual é a importância da nudez no momento que a gente vive? Hoje em dia, a apropriação, a ocupação e a incorporação da nossa subjetividade por meio do nosso corpo é fundamental. Estar presente, ter ele como parceiro, na luta, ao nosso lado e a nosso favor. Meu corpo é o meu veículo, um lugar de muito poder. E quem tá comigo, tá na sombra ou na luz, no amor, nas afetividades, na conquista de direitos, no toque. Gravar esse clipe com aqueles meninos, ficar um dia inteiro se despindo — das roupas e também dos nossos medos — foi a coisa mais natural possível. Despir-se tem a ver com desapego, tirar essas camadas de informação todas. Foi muito balsâmico, eu me limpei. É como se eu tivesse me libertando dessas amarras, dessas roupas, dessas camadas de questões sobre o nu. Minha família passou pelo set, meu pai, meu irmão… Todo mundo ali saiu impactado poeticamente. É uma coisa muito sensível e que não tem nada de sexualizado. Não passa pelo clichê que as pessoas estão acostumadas a direcionar essa impressão sobre a nudez.
Como a nudez pode ser positiva para cada um de nós? Essa coisa de se empoderar é um lugar para você chegar e fincar sua bandeirinha. E estar nessa luta junto com outras mulheres é como ganhar um cajado para ajudar na nossa difícil caminhada. É ter apoio. Com isso, consigo comandar um exército de mulheres, de Pedrinhos. Nunca vi nada tão apocalíptico quanto o nosso entorno político. Achava que o termo “nova era”, quando ouvia dos meus pais, fosse uma coisa muito utópica. E fico olhando esse exército vindo com esse cajado, o empoderamento das mulheres, o empoderamento negro, o empoderamento LGBT. Esse entendimento de si e do outro é pra mim o que vejo de nova era no mundo contemporâneo. Então, apesar desse clima barra pesada, olha esse renascimento que tá rolando! Isso é muito valioso. É a primeira vez que a nossa geração está vivendo isso, discutindo isso coletivamente e individualmente. Ao mesmo tempo que o momento é assustador, falar disso com pessoas e na mídia só me enche de coragem.
Essa onda da nudez nas redes sociais é positiva para as mulheres?
Quanto mais rígida e conservadora a atmosfera que a gente vive, mais essas questões ficam latejantes e borbulhando. É muito sintomático ver as pessoas querendo fazer isso juntas. É muito catártico e fortalece demais. Num momento de tanta confusão midiática, tanta confusão nas narrativas, a arte é um lugar onde a gente consegue se pautar sem medo nenhum. E, naturalmente, é um movimento que ganha mais força entre as minorias. Com o nosso clipe, a gente espera que impactar poeticamente pessoas que fazem parte dessas bolhas de resistência e deixar todo mundo mais livre e mais a fim de viver seus corpos.
Teve algum momento decisivo para mudar o jeito que você via seu corpo? Foi bem antes do Tu. Mudei a letra há algum tempo. Nós, mulheres, temos avançado no nosso entendimento sobre o que é ser mulher. Sou uma mulher grande, mas falar sobre isso e entender meu corpo foi me ajudando a ficar gigante. O processo me ensinou isso, e eu tenho o maior orgulho dessa trajetória. Assim como muitas, assim como todas nós.
Créditos
Imagem principal: Iza Campos/Divulgação