Seres humanos, hiperatividade e as latas de ervilha nas prateleiras do supermercado

A facilidade de acesso à informação acarreta em rotular pessoas saudáveis como doentes?

por Mariana Perroni em

Crédito: marblesthebrainstore

Quando comecei a estudar psiquiatria, no quarto ano da faculdade, um comentário recorrente na cantina, durante o indispensável café no intervalo entre as aulas, era o quanto era terrível estudar tantas doenças psiquiátricas. Porque a gente sempre acabava se enquadrando em uma. No mínimo.

Lembrei disso pois hoje me deparei com uma excelente reportagem na Trip sobre a popularização do diagnóstico (e do tratamento) do transtorno de hiperatividade, tema que me preocupa e incomoda há tempos. Satisfeitíssima pela escolha de uma pauta tão relevante, aproveito o timing para dividir com vocês um texto que escrevi há pouco tempo sobre esse mesmo assunto:

Um estudo realizado pelos Departamentos de Psiquiatria e Neurologia da USP e da UNICAMP em conjunto com o Albert Einstein College of Medicine, dos EUA, demonstrou que quase 75% das crianças e adolescentes diagnosticados (e recebendo tratamento medicamentoso) para o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), na realidade, não tinham sido adequadamente diagnosticados. A pesquisa se baseou na análise de dados de 5.961 jovens, de 4 a 18 anos, em 16 Estados do Brasil.

Quando se considera que o tratamento do TDAH é baseado primordialmente no uso da Ritalina (metilfenidato), uma droga do grupo das anfetaminas, isso se torna mais preocupante ainda. O uso desnecessário ou inadvertido da substância pode causar uma singela listinha de problemas como perda do apetite, arritmias cardíacas, náuseas, alterações na pressão e na visão, dor abdominal, anemia, palpitações e até mesmo surtos psicóticos, em indivíduos com predisposição.

Mesmo que crianças e adolescentes raramente façam parte do meu escopo de atendimento (uma vez que sou intensivista de adultos), foi inevitável que esse estudo chamasse minha atenção, pois permitiu duas considerações:

A primeira é que existem doutores prescrevendo uma droga que não estão habituados a usar para tratar um transtorno cujo diagnóstico não dominam. Uma coisa totalmente “La garantía soy yo! “. Nada errado com não dominar o diagnóstico de TDAH. Não existem exames de laboratório ou imagem que permitam o diagnóstico. A condição não é algo simples e com decisão terapêutica baseada em um valor de glicose ou colesterol numa amostra de sangue, por exemplo. O diagnóstico é essencialmente clínico e, desta forma, difícil mesmo. Só que a situação começa a me dar coceira quando indivíduos são inadvertidamente expostos a efeitos colaterais limitantes à vida cotidiana (e até perigosos) antes de serem encaminhados a um especialista.

A segunda e, possivelmente, mais preocupante, é a prepotência e isenção de responsabilidade que isso denota por parte da sociedade. Será que a disponibilidade à informação literalmente na palma da mão tornou mais fácil simplesmente ticar um checklist e rotular seres humanos como “doentes” que precisam de remédios do que conversar e entender suas peculiaridades e necessidades? Ter excesso de energia, correr e se interessar por várias coisas em curto espaço de tempo significa ser criança ou ter TDAH? E isso pode até ser extrapolado para inúmeras outras condições: flutuar entre tristeza e alegria te torna bipolar ou simplesmente um ser humano mais sensível (e, quem sabe, até com aptidão para a arte)? Quem é mais reservado e quieto é tímido ou tem depressão?

Não considero natural, por exemplo, que os EUA correspondam a 5% da população mundial e consumam 90% de toda a ritalina produzida no globo. Não me levem a mal. Não questiono a existência de transtornos psiquiátricos. Inclusive sou prova de que quando todos esses transtornos são adequadamente diagnosticados e tratados, o ganho em qualidade de vida por parte dos pacientes é imensurável. Entretanto, as pessoas precisam parar de ser rotuladas como latas de ervilha em prateleira de supermercado. É preciso que comece a ficar claro o quão tênue é a linha entre traços de personalidade e doenças da DSM IV.

De qualquer forma, acho que o vídeo abaixo resume perfeitamente minha opinião.

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