Ronaldo Fraga
Estilista critica a sociedade de consumo e dispara: “A moda brasileira pode muito mais”
O estilista Ronaldo Fraga nada contra a corrente, critica a sociedade de consumo, se retira do maior palco de moda do país, o SPFW, planeja novos projetos sociais e dispara: “A moda brasileira pode muito mais”
Ronaldo Fraga não é do tipo acomodado. A fala mansa do mineiro de 45 anos poderia confundir um desavisado, mas, assim que começa a explicar por que se afastou do São Paulo Fashion Week, percebe-se que o jeito calmo só serve para esconder um discurso tão afiado quanto as linhas da alfaiataria que tornam suas peças mais democráticas às formas de mulheres e homens comuns.
O exímio desenhista, que sabe dizer a composição de um tecido pelo cheiro que exala ao ser cortado, foi responsável por alguns dos desfiles mais emocionantes da Bienal, todos eles inspirados em figuras importantes – e às vezes pouco difundidas – da história brasileira, como a estilista e ativista política Zuzu Angel, Mário de Andrade e Athos Bulcão, para citar algumas. Mesmo assim, decidiu há dois meses que era hora de parar e repensar sua trajetória.
Enquanto o mundinho (anônimo) da moda tentou enquadrá-lo, via Twitter, em categorias pequenas, como a de estilista conceitual falido ou de regional engraçadinho sem patrocinador, Ronaldo se preocupa em conseguir tempo para compilar seus desenhos, que pretende editar num livro que vai contar a história de suas coleções, e ilustrar outras duas publicações infantis. Além dos livros, um convite irrecusável do museu londrino Victoria and Albert – para falar justamente do regionalismo rechaçado pelos colegas de profissão – também terá que caber na planilha semestral, assim como a Bienal de Design, a ser apresentada ainda em 2012, em sua Belo Horizonte natal.
Coração de galinha
Foi lá que Ronaldo cresceu, órfão de pai e de mãe desde os 11 anos. Ele e seus quatro irmãos (Roney, Robson, Rosilene, mais velhos, e Rodrigo, o caçula, que também é estilista) acabaram criados com a ajuda distante de familiares e vizinhos, o que acredita ter sido essencial para sua formação. “Acho esse rombo social que a gente vive hoje, em que o filho da empregada não encontra mais o filho do gerente do banco, muito nocivo para uma sociedade”, alfineta. Apesar da infância difícil, Ronaldo aprendeu cedo que a educação seria seu passe para o mundo. Se inscreveu em todos os cursos de desenho que pôde e acabou chegando à moda, primeiro no Senac e depois na UFMG, antes de ganhar um curso na Parsons School of Design, em Nova York. Mais quatro anos em Londres e Ronaldo estava pronto para voltar ao Brasil, aos 28 anos, e estrear nas passarelas do Phytoervas Fashion, com a coleção autobiográfica “Eu amo coração de galinha”. O evento se tornaria Morumbi Fashion e, por último, São Paulo Fashion Week, no qual Ronaldo estreou em 2001 – mesmo ano em que casou com o amor de sua vida, Ivana, e teve seu primeiro filho, Ludovico. Graciliano nasceria dois anos depois.
Decidido a passar mais tempo com os filhos, trocou a loucura do desfile de janeiro do SPFW pela tranquilidade da fazenda, de férias ao lado da família. Agora, além dos projetos que toca em Minas Gerais, Ronaldo administra sua confecção (que vai muito bem, obrigado), a loja de São Paulo e faz viagens frequentes a Brasília, onde ocupa a cadeira de representante do Colegiado de Moda no Ministério da Cultura, e por áreas esquecidas do país com o projeto do governo Talentos do Brasil, que visa perpetuar técnicas artesanais locais quase extintas. Esse trabalho, aliás, rendeu ao criador o Prêmio Trip Transformadores 2011. Foi durante a cerimônia de entrega, em outubro passado, que Ronaldo decidiu dar outro rumo à vida. A seguir, ele fala desse recomeço, da infância difícil, de seu conceito de luxo e por que faz questão de escancarar o sorriso que traz no rosto nos últimos tempos.
Tpm. Por que você decidiu não participar do desfile de janeiro do SPFW?
Ronaldo Fraga. Eu não decidi parar de desfilar. Parei esta estação porque decidi fazer outras coisas. De duas estações para cá comecei a exercitar outras frentes e percebi que moda não é só passarela! Outros espaços, outros vetores estão me chamando. Fiz uma exposição, fiz direção de arte, fiquei três dias pirado desenhando à mão, com giz, o cenário do clipe Te amo, da Vanessa da Mata, dirigido pelo Wagner Moura, e aí pensava no desfile com certo pesar. Acho fascinante essa coisa do desfile, mas quero passar a fazer um por ano. Quero férias com meus filhos em janeiro, quero ficar mais tempo na minha fazenda.
Você esperava essa repercussão toda em cima da sua decisão? De jeito nenhum. Coleção nenhuma repercutiu tanto quanto eu decidir parar [risos]! Fiquei nos trending topics mundiais do Twitter. Isso só aconteceu duas vezes: quando fui ao Roda viva, com a Marília Gabriela, e agora com essa história do SPFW.
“Não estou deixando de desfilar porque as coisas não andam bem. É porque andam bem demais!”
Como foi a repercussão no mundo da moda? As pessoas ficam acomodadas e incomodadas, acredito. Noventa e cinco porcento das manifestações foram positivas. Mas os outros 5%, assinados por pseudônimos, me atacam enlouquecidamente. Impressionante. E você vê na mídia, no jargão, na fala, que é gente do mundinho [da moda], sabe? Mas a grande maioria falava: “Você teve coragem de fazer uma coisa que eu sempre pensei, que é meu desconforto”.
Você é um dos poucos estilistas bem-sucedidos que tomaram uma decisão consciente de mudar o foco do trabalho e priorizar a moda como vetor social. Você se sente ideologicamente sozinho? Pode parecer pretensioso dizer isso, mas me sinto sim. Sei de tudo que construí na moda brasileira. E é essa construção e essa consciência que me permitem virar e falar: “Quero fazer outra coisa”. E vou continuar fazendo o que sempre fiz. Só que antes esse meu lado social, essa minha pesquisa mais aprofundada, era o meu lado B. E quero que seja o meu lado A. Só nesse início de ano já tenho exposição do livro em que estou compilando os desenhos de todas as minhas coleções, tem dois livros infantis que estou ilustrando [um deles para a Cia. das Letras], o Minas Trend Preview, a Bienal de Design em Minas, que este ano é em Belo Horizonte. Tem muito trabalho. Não estou deixando de desfilar porque as coisas não andam bem. É porque andam bem demais!
Inclusive projetos internacionais? Sim. Recebi um contato inesperado do museu londrino Victoria and Albert, que é um lugar que amo em Londres. Eles querem que eu fale da relação entre o meu trabalho de moda e a cultura do país. Isso é emocionante porque quem gosta do meu trabalho sempre falou que é justamente por conta da relação com a cultura brasileira, a forma de ver o genuíno da cultura brasileira. E quem não gosta diz: “Ah, lá vem esse regional engraçadinho falar de cultura brasileira... No mundo globalizado quero um produto que possa ser usado em qualquer lugar do mundo”. Eles não percebem que o mundo globalizado precisa do genuíno porque está tudo dominado. Nós não queremos mais comer a mesma comida que se come aqui em qualquer lugar.
Mas as marcas em geral estão preocupadas em se encaixar na sociedade de consumo. Isso não é uma preocupação? Eu estou cagando e andando pra sociedade de consumo. Sabe por que não vendo para o mundo inteiro? Porque dá trabalho demais. Eu já desfilei no Japão, no México, no Chile, na Espanha. Apresentei agora a exposição do rio São Francisco em Amsterdã, e fui para esses lugares por fazer o que faço, da forma como faço. Não me falta pedido de outros países, me faltam recurso e tempo para atendê-los, porque não abro mão da qualidade das minhas peças e de proporcionar uma vida digna aos meus funcionários.
Você sempre teve essa consciência social? Isso vem da sua infância? É o seguinte, meus pais morreram muito cedo. Os dois tinham câncer. Minha mãe morreu quando eu tinha 7 anos e meu pai morreu quatro anos mais tarde, no mesmo dia. Nunca tive quem pegasse meu boletim para poder ver como é que estava a nota na escola.
Ficaram os cinco irmãos dentro de casa sozinhos? Sim. Cada dia um parente ajudava, trazia comida, fazia uma compra... Não ficamos desamparados, mas ninguém nos pegou para criar. Até porque eram três adolescentes e duas crianças, eu e o Rodrigo.
“Acho muito nocivo para a sociedade esse rombo social. Hoje a gente vive nos guetos”
Você tem lembranças dos seus pais? Da minha mãe, tenho lembranças muito nítidas, dela dando banho, levando para a escola. Parece que ela faleceu ontem. Do meu pai, lembro mais ainda, porque ele morreu quando eu tinha 11 anos. Todas as minhas lembranças de histórias de família, que a avó da minha avó era escrava, lembro porque ele contava. Nunca apanhei, mas ouvia um monte de histórias duras. Quem me mostrou o rio São Francisco foi meu pai. Ele dizia que o lugar mais lindo do Brasil era qualquer lugar à margem do São Francisco. Ele morreu aos 42 anos sem conhecer o mar, mas, toda vez que ele tinha folga, ia para as margens do rio. A gente adorava essas viagens dele porque ele voltava trazendo histórias e lendas de lá.
Seu irmão mais velho tinha quantos anos? Dezessete para 18. Depois ele foi servir no exército e ficamos os quatro, e é isso. Foram tempos muito difíceis. [Pausa] Tem hora que penso que a moda veio talvez por esse lugar para mim, porque durante a minha infância inteira eu ganhei roupa. A gente vivia de doação, então nunca chegava o tamanho, você tinha que se virar com aquela calça de uma adolescente de 15 anos para servir num menino de 11. Depois que passa a gente fala: “Nossa, os tempos eram difíceis”, mas na época não achava que era difícil não.
Você tinha uma vida normal, apesar de tudo? Era difícil, mas era feliz também, entendeu? Era uma época em que as crianças brincavam mais na rua. Lembro das crianças brincando de rouba-bandeira, de queimada, até tarde, sem problema de violência. Não existia esse abismo social que existe hoje. Acho que isso foi muito legal porque os vizinhos ajudavam a criar as crianças da rua. Então a criançada ia toda para a casa de um, comia lá. Depois ia para a casa de outro e tal.
A ideia de que é necessária uma aldeia para criar uma criança. Isso. Esse senso de comunidade mesmo. Foi muito bom para minha formação. Sinto saudade desse Brasil. Acho muito nocivo para a sociedade esse rombo social que a gente vive hoje, em que o filho da empregada não encontra mais o filho do gerente do banco, que não encontra o filho do médico. E isso o Brasil já teve. Na minha época a escola pública tinha mais qualidade. Hoje a gente vive nos guetos. Então, meus filhos [Ludovico e Graciliano] estudam em uma escola particular, que segue a pedagogia Waldorf, e sei que eles são elite.
Isso o incomoda? Claro, demais. Demais. Eu me sinto passivo diante dessa situação. E detesto não ser o autor da minha história, sabe? Então, fiquei feliz de saber que havia um projeto de lei que estava entrando no Congresso para que os filhos de homens públicos obrigatoriamente estudassem em escola pública. Acho que isso seria o melhor para ver se a coisa dá uma caminhada, para melhorar a educação no país. E toda essa segregação está em parte na educação. A separação não é só de grana, é de educação.
Você acha que foi salvo pelo conhecimento? Pela educação? Pela educação, sem dúvida. Sempre fui fascinado pelo desenho. E a minha escola fomentava isso. Quando a vizinhança, a comunidade, precisava de alguém para desenhar alguma coisa, esse alguém era eu. Aí meus pais morreram, e me inscrevi em tudo quanto era curso gratuito de desenho. Um dia, com uns 16 anos, estava no ponto do ônibus, quando uma vizinha estava indo para um curso de desenho. Ela me mostrou a pasta. Quando olhei, era desenho de moda e achei muito bonito aquilo. Aí ela falou assim: “Ah, é um curso de figurinista no Senac e é gratuito”. E fui lá fazer.
“A escolha da roupa é uma conquista amorosa. Com o outro, com o seu grupo, com você mesmo”
Foi aí que você teve seu primeiro contato com moa? Sim. Era divertidíssimo porque metade da turma era formada por senhorinhas costureiras de cabelo lilás, que estavam ali para aprender a desenhar, porque a madame arrancava a folha da revista e queria que elas copiassem, mas elas precisavam aprender a imaginar as costas do figurino. E a outra parte era formada por travestis que queriam aprender a desenhar fantasia de Carnaval. E era uma farra. Mas não fazia o curso pensando “quando crescer vou mexer com moda”. Era uma época em que moda não era profissão, tanto que no final do curso ninguém aprendeu a desenhar. O único que tirou nota máxima fui eu, porque sabia desenhar rosca de parafuso. E rosca de parafuso e moda são quase a mesma coisa [risos]. Mas esse curso me rendeu meu primeiro emprego.
Que emprego? Era de desenhista numa loja de tecidos. Agora, o que parecia para mim um presente dos deuses foi um pesadelo. Porque eu sabia desenhar, mas não entendia nada de roupa, de costura, de moda. E, aí, no primeiro dia na loja tinha umas 30 mulheres com rolo de tecido embaixo do braço querendo roupa para o batizado, para o enterro, para o casamento... Gorda, magra, alta, baixa, rica, pobre, preta, branca, marrom, amarela, japonesa, e aquilo ali me deu um susto. Na hora do almoço, eu nem almoçava. Ficava andando no centro e olhando as pessoas e as roupas, porque não sabia o que era chique ou brega, entendeu? Mas olhava uma gola no ponto de ônibus e falava: “Hum, gostei dessa gola, vou registrar”. E chegava lá e desenhava os modelos. Eu levei tempo e só com a maturidade fui entender o quanto isso foi definitivo para minha formação. E o quanto isso desenhou o meu lugar no meu ofício.
E isso continua até hoje, né? Sim. Porque ali aprendi que a escolha da roupa é uma conquista amorosa. Uma conquista amorosa com o outro, com o seu grupo, com você mesmo. Foi daí que peguei gosto em ouvir a história do outro e em contar uma história com a roupa, porque ficava ouvindo as histórias. Ficava imaginando: “Eu tenho que tirar da fala dela uma roupa que nem ela está sabendo que quer”. Além disso, enquanto desenhava, assistia aos vendedores desenrolando os tecidos. Eu sentia o cheiro daquilo, sinto esses cheiros até hoje. Sou capaz de dizer a composição de um tecido pelo cheiro que ele exala ao ser rasgado, ao ser cortado.
Só depois dessas experiências você foi fazer faculdade. Por quê? Sentia falta de educação formal? Ah, estava na idade para fazer e queria fazer, é claro. E tinha sido recém-implantado em Belo Horizonte o curso de moda. Foi o primeiro curso do país, na UFMG. No último ano, em 1980, teve um concurso nacional promovido pela Santista, com dois anos de eliminatória. Começava com 1.800 projetos, você mandava o desenho e recebia um telegrama. Pensa! Um telegrama! Até que me ligaram dizendo que eu era um dos 50 finalistas e que todos iríamos passar uma semana em São Paulo desenhando. Era a primeira vez que ia andar de avião. Passávamos o dia numa sala desenhando a coleção. Era tipo um reality show. E fiquei entre os cinco que ganharam tecido para executar a coleção. Na apresentação, em uma feira durante uma semana, os jurados passavam sem se apresentar – e para mim nem precisavam se revelar porque não conhecia ninguém. Depois fui saber que eram Regina Guerreiro, Costanza Pascolato, Tufi Duek, Renato Kherlakian... Lembro que a Regina Guerreiro entrou num mau humor e comecei a explicar a coleção. Ela falou: “Ai, menino, para de blá-blá-blá que estou com pressa. Fala logo, deixa eu ver essa roupa que não quero saber de conversa fiada”. Pensei: “Nossa, que bruxa é essa?!”. Mal sabia que no futuro iria amar a Regina.
E ganhou o concurso? Ganhei. O prêmio era uma pós-graduação na Parsons [escola de design americana], em Nova York, com tudo pago. Isso naquela época era enorme. As pessoas não viajavam muito, o dólar era caro, e eu amarrava cachorro com linguiça. Mas precisava saber falar inglês, que não sabia, senão a Parsons não aceitaria e a Santista se isentaria de pagar o prêmio. Escolhi mesmo assim e fui pra Londres passar três meses para aprender a falar inglês. E fiquei lá tendo pesadelo em relação a isso. Até que um dia me olhei no espelho e falei: “Se eu chegar com essa cara de tadinho em Nova York, não vai ter curso de inglês que me segure”. Aí arrumei uma fantasia, furei o nariz com uma corrente que vinha até a orelha, raspei a cabeça e deixei só um círculo de cabelo em cima e vesti uma calça que tinha uma sobressaia. Cheguei em NY com cara de excêntrico e esqueceram de me aplicar o tal teste de inglês. Depois desse curso, fui visitar meu irmão que estava em Londres e passei quatro anos lá, fazendo cursos livres na St. Martins.
Depois dessa temporada fora do Brasil você voltou direto para o Phytoervas Fashion. Como passaria férias no Brasil, mandei um projeto [para a comissão julgadora do Phytoervas Fashion] que se chamava “Eu amo coração de galinha”. Queria fazer uma metáfora, porque na verdade detesto coração de galinha [risos]. Era uma coleção meio autobiográfica porque, no interior, quando se faz um círculo no chão em volta de uma galinha, ela não pula, ela fica presa! E tem tanta gente que é assim... E ali, em meados de 96, era um momento de discussão, de tratar da famosa identidade, da individualidade, do conceito, do estilo, e fiz uma metáfora em cima disso.
Suas coleções são autobiográficas até hoje? São, claro. Eu acho que, se você tem uma pretensão à autoria, não dá para ser autor de nada se você não coloca a sua digital. A criação existe para... É provavelmente um ponto de conciliação com seus fantasmas, de tapar seus buracos. Tapei muitos buracos da minha essência na minha infância, na minha adolescência e já na fase adulta com coleções. Sempre levei muito a sério isso, sabe? E digo até hoje que a melhor coleção é aquela que me dê muitos livros para ler. Que me dê muito objeto de pesquisa, aquela que o objeto de pesquisa me vire do avesso. Para mim, nunca foi simplesmente uma coleção de moda. E fui entender isso quando assisti à Pina Bausch. Você sai e fala assim: “Hum... acabei de ler um livro maravilhoso”. Aquilo era só dança e não era só dança. Então, quando apresento um mergulho no universo do Guimarães Rosa, do Drummond ou do agreste pernambucano, para mim naqueles minutos – que no início eram 15, depois 13, depois 10, depois 8 minutos, que é a marca de um desfile hoje – estou contando uma história para aquela audiência. Estou contando aquela história para o país.
Um desfile tem esse alcance? Sim. Faz alguns anos que tomei consciência da força que é um desfile de moda no Brasil. Que entra na casa das pessoas de uma forma avassaladora. É uma mídia espontânea violentíssima e atinge todas as classes, de todas as formas. Então, quando conto uma história a cada estação, alguns estão pensando ali que estou só vendendo roupa. Embora respeite, acredite, me emocione, a moda é muito mais do que um vetor econômico. A moda pode ser um vetor de transformação social. É um vetor de apropriação cultural, antropofágico, antropológico e, no caso do Brasil, onde o brasileiro tem gosto por moda no mesmo peso que tem gosto pela novela, acho que a moda pode mais.
Pode mais em que sentido? A moda deveria fazer mais, porque ela registra o nosso tempo. Se existe o desejo coletivo de ir a um desfile, é só fazer as contas do quanto a gente pode atingir o povo com ele. Quando eu disse que a moda acabou, era a isso que me referia. Acabou tanto numa questão conceitual quanto econômica. Eu tenho pena dos designers que estão preocupados em vender a réplica do que está sendo feito em Nova York e Paris. Primeiro porque se copia com menos qualidade. E segundo porque as grandes marcas já têm lojas em São Paulo! As fórmulas caíram por terra. É tempo de exercitar o novo. O mundo inteiro está prestando atenção no que o Brasil come, canta, compra e veste. É hora de criar.
“Tapei muitos buracos da minha essência na infância, na adolescência e já na fase adulta com coleções”
Essa saída do SPFW também é para aumentar sua atuação no campo social? Eu gostaria de me dedicar mais à moda como instrumento de transformação social, de mudar a realidade do Brasil através da moda, mas nivelando por cima, sem adaptar o valor das comunidades menores ao que o mercado está pedindo. Tenho muito prazer em visitar comunidades afastadas e ajudá-las a se inserir no mercado. E não teria pudor de levar meus filhos para um lugar desses como tenho receio de levá-los para o SPFW.
Por quê? Porque não gosto que eles associem a moda ao glamour do desfile. Ser estilista é um trabalho muito duro, e acho que a atmosfera do São Paulo Fashion Week desvirtua um pouco isso para uma criança.
O Prêmio Trip Transformadores, que você ganhou no final do ano passado, teve alguma coisa a ver com essa mudança na sua postura em relação à moda? Fiquei muito impactado com a cerimônia. Curiosamente, fui um dos últimos a receber o prêmio, e me envolvi nas histórias anteriores. E daí percebi que a transformação não residia na produção, mas sim no que a pessoa faz com a produção dela. E a cada um que subia ali eu ficava: “Nossa, o que eu estou fazendo aqui?”. Tudo o que fiz tem valor, sim, mas acho que posso fazer mais.
Você valoriza a sua moda também para as pessoas mais velhas? Não levanto bandeira sobre a minha moda. Até porque acho que todo mundo pode mudar tudo a qualquer momento. Acho que isso aparece de forma natural. Eu quero usar o vocabulário que a vida me deu. Das músicas que escutei, dos livros que li. Quando fiz o desfile “Tudo é risco de giz”, que falava de abandono e desamparo, percebi que precisava do contraste do peso do tempo. Daí veio a ideia de colocar crianças e idosos para desfilar. Foi o desfile que mais me aproximou do outro, porque precisava provar várias vezes as roupas nos modelos, foi um aprendizado incrível.
A exclusão do idoso na moda o incomoda? Não é a moda que exclui o idoso, é o nosso tempo. A televisão, o mercado profissional. E isso é caduco. Não existe mais pensar assim. Tudo que discuto na minha moda é parte de um desconforto meu. E olhar pra essa faixa etária e para essa discussão é urgente. Não é só poética, é econômica também. Quando a coleção do Drummond estava na loja, entrou uma senhora dizendo que ia comprar roupa para a neta, mas depois admitiu que era para ela. Ela não teve coragem de assumir, no início, porque já tinha sido maltratada em outras lojas. Com tanto silicone, com tanto corpo esticado, as pessoas ainda acham que não tem lugar para o corpo velho. E isso, claro, é o perfil de uma sociedade desmemoriada.
Para onde caminha a moda brasileira no cenário global atual? A indústria têxtil do Brasil vive uma concorrência desleal com o resto do mundo. Nós estamos passando por um momento de desindustrialização do país. Hoje a pequena e a microempresa pagam um preço pela exportação do minério, da soja... Então, pagamos impostos como “gente grande”. A moda é o segundo setor que mais emprega no país, só perde para o de alimentação. No entanto, somos extremamente mal articulados. Acho que a gente está herdando qualidade em tudo, mas corremos o risco de nadar e morrer na praia. Um país que só cria, como o Brasil está se tornando, depende eternamente de quem produz. Não adianta só criar e ter identidade, você tem que ter costureira, modelista... E, o que é pior, nós já tivemos isso. Eu espero que a gente consiga entender isso e reivindique a volta disso com vontade, porque nem reivindicar a gente consegue.
“Não tenho medo de envelhecer. Eu só morro de saudade da época que não tinha medo de morrer”
Você foi eleito por outros estilistas para ocupar o posto de primeiro representante do recém-criado Colegiado de Moda no Ministério da Cultura. Como está sendo essa experiência? A moda finalmente passou a ser entendida como cultura pelo governo brasileiro, mas foi difícil o setor de moda se envolver nisso. Meu mandato acaba em abril e quero que vá alguém novo pra lá. É importante que o setor de moda se envolva com política e que entenda como isso pode ajudar todo o setor. Mas a pior parte já foi feita, que foi legitimar essa cadeira diante do Conselho. Eles achavam que estilista era tudo rico, bem-sucedido e que não tinha nada a ver com cultura. Esse lugar já ficou no passado. Agora, falta muita coisa. A gente não tem um museu de moda no Brasil. Você fala de Nei Galvão, que foi um dos primeiros estilistas a falar de criação cultural nos anos 80, de George Henri e Gregório Faganelo e ninguém lembra deles. Se alguém quiser fazer uma pesquisa desses nomes, arruma patrocínio ou paga do próprio bolso para poder desenvolver. Se um estilista recebe convite para desfilar no Japão, para fazer uma exposição do que quer que seja, se ele não tiver dinheiro, não vai. Quanto o país perde com isso, né?
Mas você contava algumas dessas histórias no SPFW. Em algum momento bateu melancolia de não desfilar? Não. Quando eu falei para o Ludovico que não ia desfilar, ele falou assim: “Mas onde você vai contar suas histórias?”. Eu falei: “Para vocês”. Ele respondeu: “Mas você já conta pra gente”. Mas agora vou contar mais ainda [risos]. A história vai ficar mais longa. Uma coisa que nunca perdi de vista foi a educação dos meus filhos. Pode parecer bobagem o que vou falar, mas nunca perdi de vista que é minha responsabilidade educá-los dentro de casa.
E você? Assustou também? Poucas coisas na minha vida fiz com a tranquilidade que foi esse casamento. E não esquento a cabeça de achar que estava louco e tal. Parece que foi ontem. São dez anos de casado, e até hoje sou muito apaixonado. Nunca pensei que, de repente, numa tacada só, eu teria ninhada, cachorro, casa e uma mulher linda, inteligente, destemida como ela é. Nunca ia imaginar isso, e me veio de presente.
Como vocês se conheceram? Ivana é de Montes Claros, apesar de ser muito branca e todo mundo achar que sou de lá, porque sou mestiço e lá o sol é muito forte. Os pais dela eram donos de lojas de tecidos finos lá, e ela cresceu no meio dessa história de tecido. Aí ela até chegou a montar uma confecção, e tinha um namorado que sabia que o melhor presente que ela podia ganhar era roupa minha. Então, toda vez que ia para Belo Horizonte, ele levava roupa minha para ela. Ela desmanchava, copiava e soltava roupa na cidade. Mais tarde, estava procurando alguém para cuidar do showroom em Belo Horizonte e ela foi pra lá.
E o namoro começou logo depois? Não. Depois de um tempo eu desfiz uma sociedade e ela me disse: “Olha, na verdade eu vim para trabalhar com você, não para trabalhar com essa outra pessoa, então quero continuar aqui”. E ficou. Aí demorou alguns anos até eu olhar pra ela e dizer: “Que menina bacana essa”. Depois disso, um dia acordei e já estava apaixonado. Hoje não consigo me imaginar sem eles. Tudo o que faço é por eles. Eles que me dão força para isso tudo. Quando paro e falo: “Vou desconstruir tudo”, é porque tenho ecos de sustentação na minha casa.
“Luxo é você ser autor da sua história! É uma coisa que, atualmente, tentam tirar de você o tempo inteiro”
Você tem medo de envelhecer? Não tenho medo de envelhecer. Eu só morro de saudade da época que não tinha medo de morrer, que era quando não tinha filhos. O medo de morrer cedo, como os meus pais, está sempre aí. Outro dia sobrevoei a Amazônia por duas horas num helicóptero, passamos por uma tempestade e eu pensando: “Tenho dois filhos pra criar, minha gente!”. Não queria sentir isso, mas é natural de quem tem filho. Mas o envelhecer em si eu acho muito legal. Achava chato ser jovem. A melhor parte de envelhecer é que já nasci velho, então acho uma delícia.
Isso é luxo para você? Primeiro até esqueço o que é luxo, porque essa palavra já foi tão desgastada, que o que é luxo nem é luxo mais [risos]. Luxo é você ser autor da sua história! É uma coisa que, atualmente, tentam tirar de você o tempo inteiro. Você se envolve com tanta gente, com tantos compromissos. Então, você ser autor da sua própria história e definir os personagens, o cenário, a trilha e o figurino é um luxo que não pretendo perder de vista. Acho que é isso que me mantém... não sei se me mantém centrado... Mas é isso que me mantém tranquilo, que me mantém em paz.