Petra Costa totalmente livre
Numa busca constante pelo espaço da mulher no mundo, a diretora do premiado Olmo e a gaivota fala sobre a morte de Elena, política, casamento, aborto, Lula e Lars Von Trier
Petra Costa é uma mineira de 32 anos que já tem no currículo uma obra cinematográfica de respeito. O primeiro filme nasceu da necessidade de falar para mulheres sobre uma condição que ela começou a achar que era feminina e universal, uma certa propensão de se “afogar nas próprias emoções, um sofrimento silencioso, invisível e incompreensível para quem não passou por isso”. Desse anseio nasceu Elena, um filme delicado, doce e sensível que conta a busca de uma mulher de 26 anos pelo entendimento da irmã mais velha que se matou aos 20 anos. A mulher é Petra e a irmã é Elena, que tomou uma overdose de comprimidos e cachaça em 1990, quando as duas moravam com a mãe em Nova York. Na época Petra tinha 7 anos e Elena estudava teatro em Manhattan.
A primeira investida cinematográfica de Petra ganhou uma dezena de prêmios no Brasil e no exterior. Antes, tinha feito apenas um curta sobre a história de amor de 70 anos dos avós (Olhos de ressaca, 2009). O sucesso de Elena, lançado em 2012, fez com que fosse convidada para codirigir outro filme e fez Olmo e a gaivota, que mostra o percurso em tempo real de uma gravidez e as reflexões e angústias que nascem com ela. O filme foi lançado no Brasil em novembro de 2015 e já ganhou um punhado de prêmios.
Ver um dos dois filmes de Petra é se deixar entrar nesse universo proustiano que explora todas as camadas de emoções. A experiência de ser mulher e de experimentar dores e medos tão femininos sai da tela, invade a corrente sanguínea e antes mesmo que possamos entender o que se passa já estamos percebendo tudo da forma mais profunda possível: musicalmente. Sua obra nos obriga a sentir, e a sensação de simplesmente sentir pode ser avassaladora num momento em que a grande crise talvez seja uma de estesia: a de ter perdido a capacidade de compreender sensações causadas pela percepção do belo – ou o oposto de anestesia.
Petra nasceu em Belo Horizonte. Os pais se separaram quando ela tinha 1 ano e meio e, então, se mudou com a mãe para São Paulo, onde estudou em muitos colégios, entre eles o Equipe, o Oswald e o Logos. Fez dois anos de artes cênicas na USP, mas sentia que faltavam elementos para entender o mundo, e tentou transferência para o Barnard, o supertradicional college só de mulheres dentro da Universidade de Columbia, em Nova York, por onde passaram celebridades como Patricia Highsmith, Martha Stewart e Cynthia Nixon.
Dançando no limite
Depois de se formar em antropologia no Barnard e concluir um mestrado em psicologia na London School of Economics, as dúvidas de Petra eram se faria doutorado em antropologia, trabalho social ou tentaria uma carreira no cinema. Para nossa sorte ela optou pela última e encontrou um gênero cinematográfico que existe entre o documentário e a ficção. “Gosto de dançar nesse limite”, ela diz. “Eu busco os nós existenciais.”
Petra é filha de pais marxistas que romperam com o tradicionalismo da família – católica, rica e sobre a qual ela prefere não entrar em detalhes. Ambos militaram contra a ditadura e achavam que ter filhos criados sob ideologias de esquerda os impediria de cair em conflitos existenciais. Ainda pequena Petra registrou as transformações que a morte de Elena causariam: “As emoções deixaram de ser preocupações burguesas e tomaram uma dimensão política. Elas podiam tirar a vida”, diz no filme que leva o nome da irmã.
Ver a obra de Petra nos deixa com a impressão de que Elena está em tudo o que ela faz, e com isso chega a constatação de que cada um de nós é parte de uma mesma vida e a segurança de que as separações são ilusões de ótica limitadas pelo tempo e pelo espaço. Vem a certeza de que estamos todos profundamente conectados: sua dor é a minha dor, minha angústia é também a sua.
Foi emanando essa energia coletiva que Petra fez um discurso pela legalização do aborto quando subiu ao palco para receber o prêmio de melhor documentário no festival do Rio no ano passado. “Que no Brasil, toda mulher tenha soberania total sobre o próprio corpo — seja para rejeitar a gravidez e interromper com um aborto, seja pra mergulhar nela como é no caso do nosso filme.” Foi atacada na internet e chamada de assassina. A resposta da cineasta veio num vídeo que é um misto de teaser do filme com manifesto contra a visão religiosa e conservadora em torno da gravidez. Vestindo a peruca azul usada pela protagonista de Olmo e a gaivota, atores como Bruna Linzmeyer, Bárbara Paz, Alexandre Borges e Julia Lemmertz questionam o controle sobre o corpo da mulher. Chamado de Meu corpo, minhas regras o vídeo já tem mais de 13 milhões de views.
“Algumas neuroses nascem quando fico parada no mesmo lugar falando com as mesmas pessoas”
Petra Costa
Petra está apenas começando sua luta em nome de um mundo onde sejamos, como pediu a anarquista Rosa Luxemburgo, socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. Seu próximo projeto é um filme de ficção a respeito do pós-Primavera Árabe no Egito, que ela está coescrevendo com o cineasta egípcio Muhammed Hamdy.
Tpm. Você tem uma casa, um canto para chamar de seu?
Petra Costa. Não exatamente, e como sinto saudade de ter uma casa... Eu construo muito dentro do meu quarto, que é meu lugar sagrado: velas, almofadas, diários. Mas também adoro viajar e depois de um certo tempo começo a sentir claustrofobia dentro de um mesmo lugar, dentro de um contexto fechado, sempre com as mesmas pessoas e as mesmas crenças. Minha cabeça começa a querer sacudir essas certezas, essas neuroses, e aí preciso viajar. Acho que algumas neuroses nascem quando fico parada no mesmo lugar falando com as mesmas pessoas, e aí começo a odiar algumas coisas. Quando estou viajando tudo está em trânsito, em movimento, e é mais difícil odiar.
Onde você mora hoje? Fiquei em trânsito por causa do Olmo e a gaivota e não estava morando em lugar nenhum, ia aonde o filme me levava. Minha família sempre foi meio cigana, acho que nunca preguei um quadro na parede. Minha mãe passou a infância viajando por conta do trabalho do meu avô.
Ela é filha de empresário rico e virou comunista? Com 16 anos minha mãe conheceu meu pai. Ela era meio desencontrada na sociedade mineira, primeiro sonhava em ir para Hollywood e ser atriz, depois em virar cientista, mas um dia viu esse homem na praça da Liberdade e perguntou para uma amiga quem era. O rapaz tinha acabado de voltar de Nova York e então ela disse: “É esse”. Um dia eles se encontraram numa festa. Meu pai começou a falar de como virou comunista e que Deus não existia. Minha mãe e a família dela eram supercatólicas, mas ela se encantou por ele e pela fala, e já no dia seguinte, um domingo, não foi mais à missa. Meu pai deu livros de Marx para ela, que logo começou a entender por que se sentia sempre tão deslocada. Depois, ele foi viajar pela América Latina, com o objetivo de aprender guerrilha em Cuba. Quando voltou ela já estava engajada no movimento estudantil e eles começaram a militar na Ação Popular e em seguida no PCdoB.
Como a família conservadora e católica da sua mãe recebeu um comunista em casa? Não acho que eles eram exatamente conservadores, mas, como muitos na época, tinham preconceito contra comunistas. Um dia meu pai chegou e o avô dela disse: “Fidel Castro tá aí para te pegar” [risos].
A Elena nasceu nesse cenário? Meus pais casaram e mudaram para a cidade industrial de BH e lá meu pai convenceu minha mãe de que para eles ingressarem na comunidade de operários precisavam ser uma família, e ela falou: “Mas até ontem eu tinha vontade de morrer… como vou ter um filho?”. E ele: “Mas com o marxismo não tem mais crise existencial”. E assim veio Elena. Depois foram mandados para o interior do Paraná e por oito anos a família nunca soube onde eles moravam.
“A crise existe, é claro, mas sua raiz é muito mais profunda do que se fala”
Petra Costa
Seus pais ainda são marxistas? São de esquerda, adaptados aos nossos tempos, né?
Por que você nasceu 13 anos depois da Elena? Minha mãe sofreu muito tendo a Elena. Eles viviam correndo risco de vida, então para ela foi difícil. A Elena nasceu quando ela tinha 19 anos e eu nasci quando ela tinha 33. Em 1983, quando nasci, já estava na época da abertura política, e ela sentia que poderia criar um filho com mais condições, menos medo. Meus pais ficaram muito tempo militando em Londrina, ajudando a criar um movimento estudantil por lá e um jornal chamado Poeira. Em seguida mudaram para São Paulo e o líder deles era o Pedro Pomar [que morreu assassinado no episódio conhecido como A chacina da Lapa, hoje investigado pela Comissão da Verdade], que em 1975 mandou meu pai para a Amazônia para organizar trabalhos políticos. Meu pai começou a se reaproximar do pai da minha mãe, foi estagiar na fazenda do meu avô para tomar mais conhecimento da questão rural antes de começar um projeto de colonização na Amazônia. Era uma tentativa de criar uma cidade modelo, Tucumã, no sul do Pará. O projeto, entre muitos percalços, deu certo: Tucumã é uma das cidades com melhor distribuição de terra da Amazônia. Depois disso, meu pai se candidatou a deputado federal por Minas, em 1982, e ganhou. Eu nasci nesse outro momento.
Política era uma coisa falada abertamente na sua casa? Cresci em manifestações. É onde eu mais me sinto em casa. Minha mãe e meu tio trabalhavam com jornais de esquerda em São Paulo. Meu tio foi um dos fundadores do PT.
Então dois filhos do seu avô viraram esquerdistas? Na verdade, três. Tia Heloisa conta que minha avó se recusava a levá-la para Disney porque tinha levado a minha mãe, e depois da Disney ela virou comunista. Mas pra tristeza da minha vó, mesmo sem ir para a Disney, Heloisa acabou virando marxista por um tempo [risos].
Você acha que o PT traiu seu eleitorado? É complicado isso… Existem no mundo poucos exemplos de presidentes de esquerda que conseguiram fazer grandes transformações sociais em pouco tempo. O Lula, como o Mandela, é um exemplo mais conciliador, mas, mesmo apostando num governo de coalizão continua enfrentando uma resistência sistemática da elite. Especulando, acho que o Lula, tendo sido eleito com amplo apoio da população em 2002, poderia ter realizado reforma agrária ampla, reforma política, enfrentado o tema da regulação econômica dos meios de comunicação, enfim, mudanças mais radicais, até para se ter um capitalismo mais bem-sucedido. O que pouca gente entende é que a reforma agrária é necessária para o capitalismo. Mas talvez ele fosse derrubado por isso. Quero até fazer um vídeo sobre a necessidade da reforma política. Falta muito a ser feito: começando pela tributação das grandes fortunas e pelo financiamento público de campanhas, por exemplo.
Você conhece o Lula? Já vi o Lula, mas não o conheço intimamente. Adoraria conhecê-lo porque o considero um líder muito importante da atualidade. Como diz o Chico Buarque, antes de o PT chegar ao poder tinha uma turma que ficou 500 anos mandando no Brasil e que fez esse país se tornar extremamente subdesenvolvido. Na década de 80, essa em que a Elena sofreu muito, a gente era uma república das bananas, governada por generais que preferiam o cheiro do cavalo ao cheiro do povo. Aí quando vem um partido que pela primeira vez quer construir um país independente e consegue uma projeção internacional da dimensão da que o Lula conseguiu vem essa classe conservadora fazer um pacto para criar a ideia de que nunca houve tempo pior e que a gente está à beira do abismo. Isso é uma narrativa ficcional. Qualquer pessoa com perspectiva histórica vê que essa não é uma narrativa lógica, é só a história contada por quem perdeu privilégios e tem medo de nunca mais conseguir voltar ao poder.
E os escândalos de corrupção? A corrupção no Brasil existe desde a chegada dos portugueses e enquanto não houver uma reforma política radical ela vai continuar a existir. Mas uma coisa é certa: pela primeira vez a polícia e o sistema judiciário estão tendo liberdade para investigar e punir.
Política é muito importante para você? Muito. Ainda mais nesse momento, que é de surrealismo. A mídia praticamente toda compactuou em contar uma historinha que diz que nunca estivemos tão mal. Como assim? Acho que temos uma doença enquanto país de não conseguir apreciar as nossas conquistas e um vício em criar intrigas e críticas, em vez de valorizar os avanços construídos. Como construir um país com esse tipo de narrativa? A crise existe, é claro, mas a raiz é muito mais profunda do que o que se fala. Poderíamos falar dela de forma construtiva, discutir o que fazer para melhorar, em vez de destruir o que já foi conquistado.
Como sua mãe reagiu quando você disse que ia estudar em Nova York, a cidade onde Elena morreu? Ela tinha me dito: “Você pode se inscrever em qualquer universidade desde que não seja em Nova York”. Mas quando fui aceita no Barnard ela topou, mesmo morrendo de medo. Para mim foi fundamental passar um tempo em Nova York porque senti pela primeira vez que estava vivendo a minha história, sem o fantasma da Elena.
Que memórias você tinha da cidade? O Central Park, os esquilos, a neve, a Elena lá… a gente cantava muito junto. Ela me ensinou “Chega de saudade”, eu lembro que a gente viu Cinema Paradiso e eu chorei muito no colo dela, depois a gente viu A pequena sereia e chegou em casa cantando as músicas.
O que você lembra da noite da morte da Elena? Acho que fui a última pessoa a ver a Elena. Foi de manhã, minha mãe tinha ido assistir a um debate político em outra cidade, saiu cedo de casa e pediu para a Elena me levar à escola. Lembro que ela estava pesada, muito triste. Era dia de show and tell na escola e pedi pra ela me ajudar a escolher algo pra apresentar aos colegas. Ela me trouxe um saco de biscoito, e eu disse: “Isso não dá”. Ela trouxe um cachorrinho de pelúcia e disse que era só fazer um pedido e sacudir que o pedido seria realizado. Quando entrei no colégio não sei o que me deu, mas senti uma necessidade de voltar e dar um beijo nela. À noite uma prima nossa que era taxista foi me buscar na escola e como ela tinha uma filha da minha idade, fui dormir na casa dela. Então, a Elena ficou sozinha em casa. Foi um erro de comunicação porque a gente sabia que a Elena estava muito triste e não deveria ficar sozinha. Minha mãe ia chegar às 6 da tarde, mas o pneu do carro furou, não tinha estepe e ela acabou chegando à meia-noite. A Elena tomou aspirina, antialérgico e cachaça mais ou menos na hora que minha mãe tinha ficado de chegar. Era para ser um susto, como acontece com tantas pessoas, mas por causa do imprevisto na estrada e da falha no atendimento médico, acabou sendo fatal. Minha mãe chamou a ambulância com a Elena ainda viva. Ela chegou viva ao hospital, mas os médicos demoraram para limpar seu estômago. Às 5 da manhã avisaram que ela tinha morrido.
Quem deu a notícia a você? Acordei e fui para a escola. Quando voltei vi a minha mãe e já sabia que alguma coisa tinha acontecido. Eu cheguei a perguntar pra ela se alguém tinha morrido. Quando minha mãe me contou que tinha sido Elena, fiquei muito triste e sem entender. Eu achava que ainda poderia falar com a ela. Depois comecei a ter a sensação de que ela estava dentro de mim. Acho que só tive a compreensão adulta da morte dela ao fazer o filme. Aí tive raiva. Nunca entendi quando as pessoas me falavam: “Mas você não teve raiva dela?”. Na época me culpei por ter ido dormir fora, mas raiva nunca tinha sentido.
Por que a Elena estava tão triste? Imagino que por uma série de motivos. Ela cresceu numa realidade complexa: o Pedro Pomar, que era mentor político dos meus pais, foi assassinado, e ele era como um tio pra ela, eu me chamo Petra em memória a ele. Na carta que ela deixou na noite em que morreu estava escrito: “Esse sentimento que sinto há 13 anos”, e fazia 13 anos que Pedro tinha sido assassinado. Tinha também o fato de em casa não se falar de sofrimento psicológico. E teve também o fato de ela ter começado a fazer teatro muito cedo e de ter sido sexualmente abusada com 14 anos.
Por quem? Não posso falar porque posso ser processada por ele. Depois do abuso Elena começou a ter depressões e veio a bipolaridade. Em Nova York ela desenvolveu uma bulimia. A Elena viveu o fim da era dos extremos, e acredito que tomou a atitude radical do suicídio muito por isso. Hoje sinto que vivemos a era da dúvida, das incertezas.
Você e sua mãe se fecharam em uma relação depois da morte da Elena? Sim, ficamos muito próximas. Era muito legal escutar ela falar abertamente a respeito das coisas que sentia. Se não fosse isso ficaria um enorme tabu, mas ela elaborava comigo o que ia compreendendo, e eu com ela. Minha mãe me respeitou como ser humano desde muito cedo.
Vendo os extras de Elena uma frase me chamou a atenção: “[Você me dá] tanta liberdade que não tenho onde transgredir”, disse Elena para sua mãe. Você chegou a sentir a mesma coisa? Minha reação à liberdade foi muito diferente da reação da Elena. Talvez porque a psicologia tenha deixado de ser um tabu na família. E eu sempre fui muito cuidadosa com a liberdade. Com 10 anos todas as minhas amigas fumavam cigarro e um dia disse a minha mãe: “Todas fumam e eu fico na porta vigiando para ver se a professora não vem”. Ela respondeu: “Tomara que você não fume”. Eu sentia uma cumplicidade e um respeito muito grandes. A necessidade de transgredir da Elena eu nunca senti.
Será que liberdade é uma coisa tão poderosa que deve ser dada aos poucos? Acho importante dar uma noção de limite, mas não necessariamente pela ordem: “Não faça isso”. Se a criança sente que existe um diálogo ela vai ter cumplicidade com o adulto. Eu senti assim e espero fazer assim com meus filhos. Mas a gente tem que analisar o que aconteceu com a Elena historicamente: meus pais estavam tentando entender o lugar deles no mundo, tinham um projeto de luta radical contra a ditadura, de repente, a luta vira pela democracia, aí falha, vem o Collor… o país vivia o caos. Quando Dilma ganhou, pensei: “Acho que Elena não teria se matado nos dias de hoje, em que é possível uma ex-guerrilheira se tornar presidente”. Naquele momento havia uma sensação de fim dos tempos.
Quando você decidiu fazer Elena? Durante um workshop com o Teatro da Vertigem, na USP, tive que fazer uma cena da minha vida. Enquanto pensava achei os diários da Elena. Era a primeira vez que eu lia aquilo. Me identifiquei na hora, parecia que eu tinha escrito. Li com a idade que ela tinha quando escreveu, uns 17, 18 anos. Tem um momento no diário que ela diz: “Eu tô escrevendo tanto… para quem será?”. A frase seguinte é: “Onde será que está a Petra?”.
E como o filme ganhou vida? Logo depois disso fui ver O bicho de sete cabeças, da Laís Bodansky, e vi o conflito masculino: drogas, tratamentos, essas coisas, e pensei que tinha muitas amigas que passaram pelo que a Elena passou e pelo que eu estava passando, que era depressão, ansiedade, tomar antidepressivos, vontade de se matar etc., mas ninguém falava sobre isso. Enquanto a questão masculina era exposta, a feminina ainda era silenciada. Pensei: “Tenho o dever de falar sobre essas mulheres”.
Você já pensou em se matar? Já senti muita tristeza e vontade de desaparecer, mas me matar não, porque eu já era vacinada.
Entendeu a escuridão que invadiu Elena? Entendi antes mesmo dela morrer. Com 6 anos falei para minha mãe me dar um soco quando eu estivesse dormindo porque não queria acordar. Era uma mistura de sentimentos. Meus pais tinham se separado, era a primeira derrota do Lula, havia uma frustração grande no ar, eu detestava a escola, era solitária, me achava esquisita.
E a ideia para Olmo e a gaivota? Era para ser um dia na vida de uma mulher em que nada acontecia, mas tudo acontecia na cabeça dela. Eu já tinha escrito o argumento quando decidi fazer Elena e a ideia ficou na gaveta. Quando recebi o convite para codirigir um filme com a Lea Glob, a gente tinha uma semana para decidir sobre o que seria, aí eu lancei a ideia.
“A gravidez virou sinônimo de santificação da mulher, mas é uma santificação falsa”
Petra Costa
Até aqui sua obra carrega uma vibração bastante feminista, mas é um feminismo doce, e não de confronto. Quando perguntaram pro Ingmar Bergman se ele é feminista por mostrar mulheres fortes nos filmes, ele disse: “Tudo o que eu fiz foi mostrar as mulheres como eu as vejo e parece que isso já é muito”. Fiz Elena porque via acontecer com muitas mulheres o que chamo de complexo de Ofélia, que é um afogar-se nas próprias emoções, um sofrimento silencioso, invisível e incompreensível para quem não passou por isso. Não imaginei que fosse um filme feminista, mas quando comecei a mostrar as pessoas falavam: “Como pode você não mostrar homens nesse filme?”. Ninguém pergunta por que não tem mulheres no Poderoso Chefão. É o famoso teste de Bechdel: só em 30% dos filmes as mulheres falam, e quando falam, é com homens ou sobre homens.
E a ideia de abraçar o percurso em tempo real de uma gravidez em Olmo? Quando a Olivia [protagonista de Olmo] me falou que estava grávida comecei a pesquisar e o único filme que achei sobre o percurso psicológico de uma mulher na gravidez foi O bebê de Rosemary. Por ser mulher e falar de assuntos que me interessam, acabo sendo feminista. Isso mostra como o feminismo ainda é necessário.
Você editou parte de Olmo na Dinamarca, na produtora do Lars Von Trier, que dizem ser um lugar diferente. Ele diz que foi criado numa família marxista nudista. Em todas as salas de edição tem uma frase do Mao e na entrada da produtora tem um busto do Lênin.
Isso fez você se sentir meio em casa? Sim e não, porque não existe universo mais diferente do nosso do que o dinamarquês. É frio, não tem “bom dia”, sorrisos. Entendi Dogville passando um tempo lá.
Como se dá a parte nudista da coisa? Nos verões tem uma piscina que só pode frequentar quem estiver nu. Não cheguei a ver porque não estava lá no verão. Mas edita-se de roupa [risos]. Pelo menos todos os que eu vi editando estavam de roupa.
É um ambiente subversivo? São subversões excêntricas: toda segunda-feira os funcionários têm que chegar às 9 horas para fazer parte de um coral administrado pelo produtor-chefe. E tem na entrada uma foto enorme desse produtor com o pau ereto e um gorro de Papai Noel. Foi esse o cartão de Natal que eles mandaram para os financiadores. Toda sexta-feira os funcionários formam uma banda e tocam, e no final do ano tem a festa de Natal, que é lendária. Eu estava numa delas e foi impressionante. As pessoas se abraçam, fazem declarações de amor, todo mundo toca um instrumento; é como em O médico e o monstro: passada a meia-noite, todos se transformam em calorosos roqueiros.
Casar é um desejo? Gosto de ter meu espaço, então gosto da ideia de um casamento com bastante liberdade para ir e vir, de criar coisas em outros lugares. Preciso da solidão para criar.
Você tem vontade de engravidar? Essa é uma questão sobre a qual penso todos os dias. Diariamente penso que sim e diariamente penso que não, é uma decisão que ainda não tomei.
Falar sobre gravidez ainda é um tabu? O corpo é um lugar de política. Existe um discurso milenar, que se concretiza com a criação do mito da Nossa Senhora, uma mulher que engravida virgem. Então é uma gravidez sem sexo, sem desejo e sem medo. A partir disso, a gravidez virou sinônimo de santificação da mulher, mas uma santificação falsa porque não vem com o apoio devido. Trata-se de um dos territórios onde mais se vê a opressão da mulher e não existe quase nada no cinema ou na literatura sobre o assunto.
Qual sua ideia de lar? Um lugar com uma varanda, uma cama com uma colcha bem bonita, uma almofada de meditação e uma vela. Não tem nada melhor do que meditar. Quando comecei, me lembro de pensar: “Como ninguém nunca me falou que o maior prazer do mundo é respirar? Me falaram tantas coisas e esqueceram esse detalhe?”. A meditação dissolve a rigidez, tanto a ideológica quanto a religiosa. Como diz o Buda, a corda não pode estar nem rígida demais nem solta demais. Ele também diz que a compaixão radical é uma das primeiras coisas que nascem com a meditação. Ou seja, vamos distribuir a renda, mas buscando o caminho do meio… sem tantas certezas, sabendo que nada sabemos e que é essencial compartilhar. “You are, therefore I am”, sabe? Mas é um exercício diário porque o cérebro está condicionado a pensar “é meu”, e quanto mais se pensa, menos se sente. Medito para conseguir sentir.
Acredita em vida após a morte? Não me importo com isso. Virar poeira estrelar tá bom demais para mim.