"Não quero ter 30 de novo. Já tive"
Patrícia Pillar estreia longa inspirado em Hilda Hilst e reflete sobre menopausa, política, maternidade e televisão
“Quando ela me falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente limpinha? E depois, veja bem se era possível levar a sério: ela usava uma calcinha onde havia um gatinho pintado. Quê? Juro. Você viu a calcinha? A calcinha foi pendurada certa vez num prego do banheiro: você jura que eu estou vendo um gato pintado na tua calcinha? Ela sorriu.” Hilda Hilst escreveu essas linhas em 1970, no conto "Unicórnio", que integra o livro Fluxo-Floema, a primeira aventura da escritora pelo universo da prosa.
Foi através dessa história que Patrícia Pillar conheceu a obra de Hilst. Guiada pelo cineasta Eduardo Nunes, a atriz se jogou no sensorial universo da escritora durante a preparação para o filme Unicórnio, dirigido por Eduardo Nunes, que estreou esta semana no cinema. Pillar vive a mãe de uma adolescente que tenta compreender as angústias da filha, uma menina complexa que começa a se descobrir sexualmente.
Com poucos diálogos e uma fotografia estonteante, o longa aposta nas sensações para aproximar o público da obra de Hilst. Em uma colina que parece estar perdida no tempo e espaço, as duas mulheres se confrontam e se confortam em uma reflexão sobre sexo, morte e maternidade. “Encontrei na Hilda, na pessoa dela, nas entrevistas dela, na maneira dela ser, algumas respostas para a personagem”, conta a atriz à Tpm.
Aos 54 anos, Patrícia está no controle da carreira e segura de seu caminho até aqui. “Eu não tenho essa expectativa de que a atriz tem que ser sempre bela. Não tenho vontade de corresponder a isso. Pelo contrário, tenho prazer em mostrar que é possível ter uma vida plena com a idade que você tiver. Não quero ter 30 de novo. Aprendi a não querer lutar contra a natureza. E se eu não tiver personagens bacanas em um lugar, como a televisão, vou ter em outros. Vou fazer teatro, vou dirigir um filme ou escrever. Não sou refém desse estereótipo”, diz.
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Trocamos uma ideia com Patrícia sobre Hilda Hilst, menopausa e Ciro Gomes. Se liga:
Qual era sua relação com a obra da Hilda antes do filme?
Patrícia Pillar. Quase nenhuma. Conhecia uma coisinha ou outra, mas nunca tinha me aprofundado. Não conhecia a história de vida dela. O Eduardo [Nunes, diretor do filme] me apresentou e foi interessantérrimo. Encontrei na Hilda, na pessoa dela, nas entrevistas dela, na maneira dela ser, algumas respostas para a personagem. Ela foi uma mulher que não se adaptou a uma maneira de ser. Tinha uma revolta porque as coisas dela não foram tão lidas quanto ela gostaria. Acho que ela era um pouco doida, no sentido de não seguir nenhuma regra. Era inteira. Isso pode ser visto na minha personagem em Unicórnio.
O filme não tem muitos diálogos. Como é fazer uma personagem tão silenciosa? São personagens sensoriais, não de ação. Eles são mais da reflexão, da sensação. Não é sobre o que ela é, propriamente, mas sim sobre como ela é tocada pelo outro. A relação dela com a filha, por exemplo, é muito dura, porque tem um misto de admiração e ódio, de competição. O filme explora o lado perverso. Ela tem raiva da mãe, compete com ela. Existe na filha um demônio que entendo como a dor do amadurecimento. Mas ela não é só isso. Está descobrindo a sexualidade, a si mesma. Pensando sobre Deus, família, desejo. É um processo mais interior.
Sua personagem fala sobre ser um corpo velho. Você já se sentiu assim? A vida é generosa nesse sentido. Você não envelhece de um dia para o outro. Tem toda uma vida pra ir se preparando. Não coloquei todas as minhas fichas na juventude. Mas é óbvio que tem a dor, existem medos, perdas ao longo do tempo. A menopausa é uma perda, por exemplo. Mas hoje tenho um bem-estar maior diante da vida, do trabalho, das minhas questões. Tudo está mais apaziguado. São trocas, substituições. Claro que não tenho a mesma energia que tinha pra sair, beber e no dia seguinte trabalhar de manhã. Mas aí você vai deixando de querer o que você não pode mais ter. Já fui de aventura, já tive tudo que a minha vida jovem podia me dar. A gente vai mudando de gosto para as coisas também, né?
A menopausa foi um momento duro? Sim. Na verdade, tive duas menopausas. Uma medicamentosa, quando tive câncer [de mama], há 16 anos. Isso durou cinco anos e aí a menstruação voltou normal. E depois, mais ou menos de uns quatro anos pra cá, foi o processo natural da menopausa. A mulher nessa fase deixa de ser útil pra natureza porque ela não pode mais procriar. Tudo em torno da procriação vai se desligando. Vem um envelhecimento mais rápido, o cansaço, ressecamento de cabelo, de pele, de unha, de tudo. É como se você fosse perdendo aquele atrativo de ser uma pessoa que gerará outra pessoa. É doido. É super físico. Estou perdendo coisas que não quero perder, então tenho ido atrás de atividades físicas que me deixem pronta pra trabalhar, disposta, para que eu continue desejante como pessoa.
Sobre esse lance da procriação, você optou por não ter filhos. Como foi isso? Nunca quis muito ter. Não queria loucamente ser mãe. Sempre vivi um pouco em dúvida: quero ou não quero? Foi uma escolha. Acho que adiei, adiei, adiei… Até que optei por não ser mãe, então não posso reclamar. Você coloca em xeque um monte de coisas. Será que estou falhando na minha aventura aqui na terra? Tô deixando de viver uma coisa incrível? Provavelmente sim, mas estou vivendo outras. Não dá pra viver tudo. Mas é doido porque tem uma pressão, o que esperam de você. É difícil entender o limite entre o seu desejo e a expectativa externa. Fica tudo meio tumultuado.
Tanto em Unicórnio quanto na série da Globo Onde nascem os fortes suas personagens foram muito marcadas pela maternidade, pela relação com os filhos. Isso é frequente na sua carreira? Muito. Eu fiz a mãe do Menino Maluquinho, a Zuzu Angel, uma mulher que perdeu o filho pra ditadura. Sempre surgem umas coisas relativas à maternidade. É engraçado isso.
Muitas atrizes reclamam da falta de bons papeis para mulheres mais velhas. Isso te preocupa? Eu sou atriz, não sou atriz de TV. Nasci no teatro. A minha concepção de ser atriz não tem como finalidade a TV, embora seja um lugar em que tenho estabilidade. Vou descobrir maneiras de estar em lugares confortáveis pra mim. Não quero parecer ter 40 anos pra sempre, mesmo tendo 60. Não vou perseguir uma imagem para me adaptar a essa possível necessidade da televisão. Mas acho que não é mais tanto assim, vejo tantas atrizes mais velhas, interessantes, com personagens bacanas pra fazer. Não tenho essa expectativa de que a atriz tem que ser sempre bela. Não tenho vontade de corresponder a isso. Pelo contrário, tenho prazer em mostrar que é possível ter uma vida plena com a idade que você tiver. Não quero ter 30 de novo. Já tive. Então minha aparência não pode ser a de 30. Aprendi a não querer lutar contra a natureza. Se não tiver personagens bacanas em um lugar, vou ter em outros. Vou fazer teatro, dirigir um filme, escrever. Posso ser feliz fazendo várias coisas.
Você percebe uma mudança em relação à situação das mulheres na TV e no cinema? Estamos na luta sem tréguas. A gente já conquistou muita coisa, mas ainda falta muito. Conseguimos avançar em alguns lugares, em outros, não. A realidade não é uma só, as lutas são muito diferentes em cada lugar. Aqui, estamos diante das questões de salário e de liberdade. Sempre fui muito consciente disso. Peguei o finzinho de uma certa revolução sexual, das mulheres que começaram a trabalhar, a se separar, a ter uma vida mais independente. Sempre tentei me colocar de uma forma que o feminismo estivesse em mim, nas coisas que digo, na maneira como me comporto no trabalho, na forma como exijo respeito.
Você declarou recentemente seu voto em Ciro Gomes, seu ex-marido. Como é sua relação com política? É bem presente. Conheci o Ciro porque fui falar com ele sobre política. Fui elogiar o trabalho que ele vinha fazendo no Ceará, como governador do estado. Sempre me interessei por política e economia. Acho que todo ato é político. O que estou fazendo aqui é político. Procurei ter um pouco de conhecimento. Nunca quis ser uma bobona, sempre quis que as minhas atitudes, os meus gestos, os meus trabalhos, as minhas escolhas significassem alguma coisa.
Créditos
Imagem principal: Zeca Miranda/Divulgação