O que significam nossos sonhos durante a pandemia?

A psiquiatra Natália Mota analisa o que acontece enquanto dormimos para entender os impactos do isolamento em nossa saúde mental, enquanto discute o sexismo na ciência

por Bruna Bittencourt em

É esperado que nossos sonhos reflitam todas as angústias que estamos enfrentando na pandemia. No primeiro mês da quarentena, a psiquiatra Natália Mota, 37 anos, coletou os relatos de sonhos de um grupo de 40 pessoas em situação de isolamento, por meio de um aplicativo, com o objetivo de identificar sinais de sofrimento e compreender os impactos da pandemia em nossa saúde mental. 

“Cada sujeito reage a uma situação traumática de uma maneira. Há pessoas que se deprimem mais, outras manifestam mais ansiedade e há quem mostre bastante resiliência e motivação para melhorar”, diz ela, que é pós-doutoranda e pesquisadora associada do laboratório de Sono, Sonhos e Memória, do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Como [essas reações] são muito individualizadas, às vezes o sujeito não se conhece a ponto de entender que precisa buscar ajuda naquela hora”, conta ela, que analisa os relatos coletados. Para Natália, o estudo pode auxiliar tanto a identificar precocemente sinais de sofrimento quanto nas orientações de ajuda, se houver uma segunda onda de pandemia e uma nova quarentena. “A gente tem que se preparar, isso não é uma corrida de cem metros, é uma maratona. Estou muito preocupada com o estado mental das pessoas, com essa conjunção de medo generalizado, isolamento social, instabilidade do futuro e pressão econômica.”

A psiquiatra Natália Mota: "A gente tem que se preparar, isso não é uma corrida de cem metros, é uma maratona" - Crédito: Divulgação

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Antes da pandemia, a psiquiatra preparava a validação de um aplicativo de celular que também coleta relatos sonhos para identificar, principalmente, sinais de esquizofrenia. O objetivo é possibilitar o acesso remoto a locais mais isolados, em que a comunidade tem dificuldade de ter uma consulta com um especialista. “Como o profissional de saúde local pode avaliar a necessidade de um psiquiatra? Uma forma seria fazer uma triagem por meio desse aplicativo. A gente analisaria os dados e daria uma devolutiva”, diz. “É como se na esquizofrenia ocorresse uma desorganização na formulação de respostas ou na forma de contar histórias. O psiquiatra treina bastante para captar esses sinais de desordens de pensamento na fala do paciente.” 

Ainda no início do mestrado, Natália transcreveu relatos de pacientes, colocando as palavras em sequência de maneira que pudesse ver essa trajetória, criando um grafo (ou conjunto de pontos) para identificar falta de lógica e sinais da esquizofrenia. No início, desenhava todos os gráficos à mão. Depois, automatizou o processo, após aprender sozinha a programar. Por conta dessa tecnologia que desenvolveu, Natália foi a primeira brasileira indicada ao prêmio da prestigiada revista britânica Nature voltado a cientistas mulheres, no ano passado.

Hoje, ela possui uma empresa, Psychomeasure, que desenvolve aplicativos para auxiliar diagnósticos de saúde. “Quando publiquei o primeiro artigo, em 2012, com meus dois orientadores, não havia o termo ‘psiquiatria computacional’. Hoje em dia, isso está muito em foco, em todos os congressos internacionais que tenho.”

Sci Girls 

Durante sua primeira gravidez, entre a residência e o mestrado, Natália teve toxoplasmose (infecção que pode provocar complicações no desenvolvimento de recém-nascidos). “Foi um período bastante difícil. Parte do meu doutorado foi estudar como essas características se desenvolvem em crianças na escola, na conectividade da fala. Foram uma série de trabalhos influenciados pela maternidade.”

Ao longo de suas pesquisas científicas, a psiquiatra foi percebendo “que o buraco era mais embaixo para quem é mulher” e sem interlocutores para discutir. “Me sentia em eterna desvantagem, às cinco horas da tarde, quando tinha que sair correndo do laboratório para pegar meu filho na creche. Muitas vezes, era um momento que a turma parava para ter ideias. E o trabalho da ciência tem muito de criatividade, daquele ‘a-ha’, do eureka! E eu não tinha esse tempo, tinha que chegar até às cinco horas da tarde”, lembra. “Sempre via que, quando meus colegas tinham filhos, recebiam mais créditos da comunidade: ‘Ele ficou um cara mais sério’. Comigo, era o contrário.”

Além de equilibrar a vida de cientista com as responsabilidades de mãe de dois filhos, Natália conta ter enfrentado descrédito por ser casada com o renomado neurologista Sidarta Ribeiro, que foi seu orientador e com quem sempre publicou artigos em parceria. Pairavam comentários como "Sidarta deve ter feito”. “Ele não é psiquiatra, nem programava. Um descrédito, uma descrença, que agora interpreto como viés de gênero. Aquilo que me magoou muito.” 

A psiquiatra passou a observar o que estava acontecendo também com as colegas mais jovens, que passavam pelas mesmas dificuldades que ela já havia enfrentado, em relação a descrédito, assédio e maternidade. “Ciência é feita por pessoas comuns, por mães.” Foi assim que surgiu a ideia de montar, há dois anos, os Sci Girls, um grupo de mulheres, formado por integrantes do Instituto do Cérebro, de diferentes laboratórios, que se reúne toda semana para conversar sobre questões de trabalho. “Tomou um caráter quase de terapia de grupo. A gente fala e se apoia. O problema de uma é o problema de todas; o sucesso de uma é o sucesso de todas. Se a gente não mudar a visão do todo em relação à mulher na ciência, todas nós vamos sofrer com descrédito, tendo que apresentar três, quatro vezes mais resultados que homens no mesmo patamar. A gente precisa mudar em bloco.”

A psiquiatra Natália Mota: "Se a gente não mudar a visão do todo em relação à mulher na ciência, todas nós vamos sofrer com descrédito" - Crédito: Divulgação

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O apoio entre as integrantes do grupo pode ser desde algo prático, como pegar o filho de uma colega na escola para que ela possa terminar um experimento até o encorajamento de outra que precisa analisar dados, mas enfrenta a insegurança. “Isso aparece demais no grupo.” 

Em meio à pandemia, Natália soma a rotina de mãe e psiquiatra/pesquisadora. “Mãe é como polvo, né? Estou muito acostumada a ir para congresso amamentando, dar aula com bebê no colo, escrever artigo com filho dormindo ao lado e com a televisão ligada”, diz. “Uma medida simples como ficar em casa tem vários custos para quem está fazendo, mas muitos benefícios para a comunidade. As pessoas começam a desenvolver este olhar para o coletivo, e isso é fundamental. Individualmente e coletivamente, temos a oportunidade de repensar muita coisa, da forma como a gente está vivendo, dos nossos valores, do que é realmente importante.” 

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