Sextou

Estamos aqui para comprar, parcelar, pagar e, finalmente, morrer, celebrando, entre um carnê e outro, uma festinha aqui, um fim de semana ali?

por Milly Lacombe em

Eu tinha 14 anos quando soube que uma de minhas melhores amigas tinha se jogado da janela do oitavo andar. A notícia me paralisou, me dilacerou e depois passou anos a me atormentar. Fabíola era brilhante e linda. Durante muito tempo não entendi a atitude, mas hoje sei que todos aqueles que vivem o suficiente, cedo ou tarde, nem que seja por um segundo, pensam em desistir. Desde então as notícias a respeito de suicídios me levam de volta para o momento em que me falaram que Fabíola estava morta. Nos últimos meses, tenho pensando muito nela; talvez porque, com incrível regularidade, pessoas estejam me contando histórias a respeito de suicídios em São Paulo. As coisas de fato não estão fáceis. Para todos os lados que olho, enxergo gente dilacerada, entristecida, esgotada.

A rotina da vida adulta nas grandes cidades se transformou em uma coisa tão desgastante que fica bastante difícil ser capaz de pensar no que estamos fazendo, por que estamos fazendo e aonde queremos chegar. As respostas mais curtas sempre nos levarão para “é preciso pagar as contas”. Mas então vivemos para quitar boletos? Estamos aqui nesta aventura terrena para comprar, acumular, parcelar, pagar e, finalmente, morrer, celebrando, entre um carnê e outro, uma festinha animada aqui, um fim de semana ensolarado ali?

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O capitalismo prometeu a todos nós a real chance de realizar aventuras e sermos finalmente livres. Bastaria, para isso, morar em uma nação que praticasse a democracia. A partir daí, as chances de realizar sonhos estava dada a quem se esforçasse. Mas esse prometido sucesso está hoje confinado a revistas de celebridades e a colunas sociais: acontece longe da gente e tem cheiro de superficialidade. O que temos por perto, e que parece bastante real, é exaustão, angústia, ansiedade, paranoia e medo.

Quem tem um emprego está extenuado; quem não tem um, está apavorado. Quando alguém reclama de cansaço de tanto trabalhar, não demora para que outra pessoa diga: “Mas pelo menos você tem um emprego”. Isso basta para que nos conformemos? “Atualmente um operário chinês sai de casa por volta das 7 da manhã, atravessa ruas poluídas rumo a uma fábrica com condições precárias de trabalho, onde opera uma máquina, dia após dia, durante longas horas, voltando para casa às 7 da noite para lavar roupa e louça”, escreve o historiador Yuval Harari em Sapiens – Uma breve história da humanidade, citando o operário chinês que bem poderia ser do ABC paulista, e deixando no ar a pergunta: evoluímos?

A maior parte dos trabalhos que o sistema oferece não estimulam em nada a criatividade: são mecânicos, repetitivos, físicos e, em certos casos, perigosos. Os que têm o enorme privilégio de exercer atividades criativas fazem parte de uma parcela muito abençoada de pessoas.

Pirâmide

O pensamento iluminista, que sustentou a Revolução Francesa, pregava que o ser humano teria o direito de controlar seu próprio trabalho. “A necessidade central da natureza humana”, ensina o linguista e ativista Noam Chomsky, “é engajar com outros em esforços colaborativos de solidariedade e, para isso, é preciso eliminar tanto quanto possível estruturas de dominação”. Estamos, me parece, caminhando para um lugar de extrema oposição a esse. Nos tornamos, como enxergou a escritora Adrienne Rich há alguns anos, uma sociedade piramidal de uns poucos com poder, uma classe média cada vez menor e mais insegura e um enorme contingente de cidadãos trabalhadores cuja função básica é servir. Essa divisão leva a um desmoronamento total de valores, com sintomas que vão de um agudo egoísmo até ansiedade extrema e violência – individual e grupal. A única liberdade que o capitalismo oferece é a liberdade para que nos endividemos.

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Pensamentos transgressores como os de Karl Marx são uma ameaça ao atual estado das coisas. Rever relações de trabalho e de produção, entender que jamais seremos livres dentro de um sistema que visa apenas o lucro e encoraja a exploração de um ser humano pelo outro, sendo a classe que explora infinitamente menor do que a de explorados, é tão nocivo ao capitalismo quanto o feminismo é ao patriarcado. Consciências expandidas são uma coisa muito perigosa porque, ao reconhecer as coisas como elas são, tanto o trabalhador quanto a mulher podem fazer ruir os sistemas de dentro para fora. Deslegitimar pensadores como Marx, Chomsky, Bakunin, Luxemburgo, Goldman, Rich e tantos outros é importante para que o explorado siga na ignorância, protegendo o explorador e o sistema que no fim do dia o dilacera, seja se subordinando apequenadamente, batendo panela ou berrando furiosamente pelas avenidas vestindo aquela roupa amarelinha.

A vida já seria desafiadora sem um sistema econômico como esse a nos devorar. Existe uma enorme crueldade em sabermos que vamos morrer e uma tirânica monstruosidade em reconhecer que a vida vive de matar e de comer outras vidas. São perversidades tão profundas que, a fim de suportá-las com alguma dignidade, precisaríamos, dia após dia, nos reconciliar com as fundações de nossa existência. Mas como fazer isso distraí-dos por tantos boletos e por esse corre alienante? Como enxergar o que importa quando tudo o que queremos é “sextar”? Desse jeito não temos tempo sequer para sofrer o sofrimento certo. Mas, sem a paralisia de um sistema tão decadente, poderíamos nos dedicar a entender essa louca aventura, e, assim, nos curvar ao fascinante mistério que é estarmos aqui e agora, tendo à nossa disposição as divinas capacidades de nos apaixonar e de conviver, de cuidar e de escutar, de abraçar e de amar, de cantar e de dançar.

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