A mais perversa das solidões
O entendimento sórdido de que, a despeito de tudo e de todos, estamos irremediavelmente sós
A primeira grande solidão eu conheci ainda pequena. Ela ocorria durante as madrugadas da infância quando ia dormir na casa de uma amiga e, luzes apagadas, entendia que não poderia sobreviver àquela noite sem minha mãe no quarto ao lado. Não havia chance de respirar sem esperar que a porta fosse aberta e minha mãe entrasse para ver se eu já tinha pegado no sono, me dar um beijo de boa noite mesmo sabendo que eu fingia estar dormindo para ver se ela ainda assim se abaixaria para me beijar e ajeitar o cobertor sobre o meu peito.
Nessa época, dentro de uma casa estranha, que era o que a casa da amiga representava à noite – embora durante o dia, enquanto brincávamos, eu não a visse assim –, a noção de não ter minha mãe por perto me desesperava. A noite trazia com ela todos os fantasmas, e só me restava pedir que os pais da tal amiga ligassem para que minha mãe viesse me buscar.
Havia apenas uma coisa pior do que minha mãe não ir me buscar: era ela ir me buscar.
Ela chegava sempre muito brava e dizia que eu deveria aprender a dormir fora de casa e que o grude teria que acabar, que ela não iria mais me buscar tarde da noite, que aquilo era uma vergonha para ela e especialmente para mim, que no dia seguinte falariam disso na escola, que eu seria motivo de deboche, que minha irmã, exemplo de todas as coisas corretas, nunca tinha feito aquele papelão. Eu, no assento ao lado do dela no carro, numa época em que crianças não precisavam andar no assento traseiro, escutava tudo de cabeça baixa sem dizer nada e, mesmo constrangida, sabia que preferia estar ali com ela enfurecida a estar no quarto estranho sem acesso a ela, e ficava feliz, mas não demonstrava, até porque não era uma felicidade completa, era uma felicidade cheia de culpa e de medo, uma felicidade parcial porque dependia do olhar e do afeto exclusivo de uma outra pessoa, uma felicidade codependente, uma felicidade que mais parecia uma prisão, mas que era onde eu sabia existir, onde eu me reconhecia. É perfeitamente possível que nos adaptemos a uma vida de cativeiro porque as mesmas paredes que limitam também protegem, como escreveu a poetisa inglesa Jeanette Winterson.
A dois
As cores dessa solidão ficaram guardadas em algum lugar dentro de mim, com todas as suas nuances, para retornar 40 anos depois num começo de noite frio e chuvoso em Nova York. Ali, andando sem rumo pelas ruas vazias do Soho ainda sem saber que sensação era aquela, embora ela me parecesse tão familiar, voltei à infância e fiz a associação: o que eu sentia era a mãe de todas as solidões, o entendimento sórdido de que, a despeito de tudo e de todos, estamos irremediavelmente sós. O guarda-chuva já não era mais capaz de me proteger da água gelada que caía do céu, mas diante da poderosa constatação agora já não me importava ficar molhada. Comecei a chorar quando entendi que o relacionamento de dez anos que era até ali o mais significativo da minha vida estava desmoronando e que essa era a solidão que me corroía as entranhas. Não há solidão mais cruel do que a experimentada a dois; e outra vez, assim como tinha acontecido com minha mãe, eu sentia a mais pesada das dores: a solidão que se vive ao lado da pessoa que até ontem parecia ser integralmente sua e desejar apenas você.
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Como sugeriu Hegel, todos os grandes fatos e personagens de nossa história reaparecem duas vezes, “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, completou Marx – e se temos que seguir vivendo não importa quantos céus despenquem sobre nossas cabeças; segundo palavras do poeta inglês D.H. Lawrence, é importante que reconheçamos logo a farsa para conseguir sair do buraco. Uma vez eu li em algum lugar que a vida é para ser vivida e não controlada, uma dessas frases que soam poéticas até que você precise experimentá-la; andando sem rumo por ruas desertas, frias e molhadas do Soho eu não sabia ainda que estava prestes a perder o controle e começar a viver a minha.
Ao entender que não se pode passar pela existência sem que grandes desastres nos matem simbolicamente, e que diante do apocalipse renascer é inevitável, o escuro vai perdendo escuridão e o fio de Ariadne, que salvou Teseu das garras do Minotauro e o levou em segurança para fora do labirinto, se faz ver. Há então uma enorme beleza em percorrer esse labirinto particular, em buscar a saída, e em começar a ver a luz do lado de fora. É a certeza de que nada mais será como antes, de que não se pode esperar que tudo esteja sempre bem, de que desastres seguirão destruindo todas as coisas que pareciam seguras e sólidas e de que renasceremos quantas vezes forem necessárias até que nos levem daqui. A constatação de que haverá dias bons e dias ruins, a aceitação de que não existe um outro roteiro possível e de que a salvação está em ser capaz de amar o seu destino qualquer que seja ele.
Existe uma recompensa para aqueles heróis do dia a dia que topam encarar esse terrível monstro que nos habita, e ela conduz para um universo encantado, repleto de fios de Ariadne que nos levam em segurança para um lugar de paz. É a viagem que, como ensinou Joseph Campbell, nos carrega para o paraíso: “Ali onde pensávamos encontrar uma abominação encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos, onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro de nossa própria existência, e onde pensávamos estar sozinhos estaremos com o mundo inteiro”.
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