Milly Lacombe: esse vírus não é sobre você
Nossa colunista reflete sobre como o coronavírus chegou para fazer a gente nunca mais se conformar – e nem deixar de se revoltar
Hoje eu recebi o profissional da distribuidora de gás responsável por trazer os botijões a minha casa. Adão entrou sorridente, todo torto carregando aquele tanque pesado nas costas. Perguntou como eu estava, instalou o novo botijão, testou o fogão para ter certeza de que o trabalho estava bem feito, colocou o botijão velho nas costas e ia saindo rapidamente quando me ouviu perguntar: "E você, Adão? Como você tá?". Nessa hora, já no hall, ele parou, se virou para mim, colocou o tanque no chão e disse: "Milly, eu tô preocupado, sabe? Não dizem o que está acontecendo pra gente, não dizem se vamos ser protegidos de alguma forma, não dizem nada. A gente tá sem saber, então eu tô preocupado, rezando mais do que o normal. Aliás, se quiser me colocar na sua lista de oração eu vou agradecer, Milly".
Conversamos um pouco, mantendo distância um do outro, e ele foi embora me desejando sorte. Foi então que eu disse uma coisa que jamais disse antes a ninguém: "Vai com Deus, Adão". Estranhamente, me senti até bem depois de invocar o nome Dela mesmo sabendo que, numa sociedade justa, Adão não precisaria de intervenção divina para ter os mesmos direitos que eu tenho porque seria protegido por leis solidárias e por um governo humanitário. Não é o nosso caso, infelizmente.
Enquanto Adão descia a escada eu lembrava de uma mensagem encaminhada hoje pela manhã por minha namorada. O texto dizia que entre nós há as "pessoas" e há as "não-pessoas", e que fomos fundados enquanto nação sobre essa verdade – o que talvez não seja exatamente uma surpresa porque qualquer "pessoa" minimamente atenta enxerga as "não-pessoas" pelas ruas. O que a gente talvez esteja começando a perceber, como diz o excelente texto assinado por Lelê Teles, é que entre nós existem também as "superpessoas". As "superpessoas" são aquelas que, a despeito da crise humanitária que está a dias de nos assolar, seguem sendo servidas pelas "não-pessoas". Ou aquelas que, mesmo contaminadas, decidem que podem sim ir à praia, a shows, a eventos.
As "não-pessoas", ainda segundo o texto, aparecem de bicicleta ou moto em nossas portas trazendo comida para alimentar as "pessoas". As "não-pessoas" carregam botijões de gás nas costas, alheias ao tsunami que está por vir porque um governo de "superpessoas" decidiu que o caso desse vírus não era assim tão grave e que, mesmo se fosse, a economia e o mercado não podem parar então as "não-pessoas" seguiriam com suas vidas porque as "pessoas" precisam de ajuda para passar pelo que vem aí.
Esse vírus não é tanto sobre as "pessoas", mas sim sobre as "não-pessoas". É sobre aqueles que não têm casa, sobre quem tem uma casa pequena para muito morador, sobre quem não pode se isolar, sobre quem não pode parar de trabalhar, sobre quem não vai conseguir separar os velhos dos jovens porque simplesmente não existe espaço para esse luxo, sobre aqueles para quem álcool gel é uma ficção científica. É um vírus que fala sobre enxergar as "não-pessoas" e, a partir de agora, não se conformar mais com um sistema que decide quem vive e quem morre, quem tem acesso a saúde e quem não tem, quem tem acesso a moradia e quem não tem.
Um vírus que veio fazer a gente nunca mais deixar de se revoltar quando vê uma família dormindo na porta de um banco, instituição que, a despeito do que chamam de "crise", segue lucrando bilhões e bilhões a cada trimestre. O rastro que esse vírus vai deixar é um rastro que nos obriga a perguntar: como pudemos aceitar um sistema como esse durante tanto tempo? Como pudemos acreditar que as "não-pessoas" são "não-pessoas" apenas porque não se esforçaram mais, porque não trabalharam mais duro, porque não quiseram tanto quanto eu? Como pudemos acreditar que somos "pessoas" se não somos capazes de enxergar a humanidade no outro? Como pudemos deixar nos separar desse jeito?
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É um vírus que vai fazer com que finalmente entendamos que tudo o que temos é uns aos outros e que da gente só deveria ser moralmente exigido que ajudássemos tantos de nós quanto fosse possível a passar por essa difícil, perturbadora, apavorante e ainda assim delirante experiência que é estarmos vivos nesse planeta tão improvável e gentil.
Todas as vezes em que você sentir medo por você e pelos seus, pense nas "não-pessoas" e vibre por elas. Todas as vezes que sua cabeça começar a fazer caminhos tenebrosos rumo a um futuro catastrófico que envolve você e os seus, pense nas "não-pessoas" vivendo amontoadas em locais sem acesso a água encanada e medite por elas. Todas as vezes que a angústia ameaçar invadir, mude o pensamento, foque nas "não-pessoas" e imagine-se, quando tudo passar, fazendo a sua parte na luta pela construção de uma sociedade onde todos e todas sejamos apenas pessoas; livres, dignas, soberanas. Imagine-se tomando parte da batalha que virá assim que a crise passar: uma que exigirá de nós empenho e coragem para erguer uma comunidade onde todos sejamos, como pediu Rosa Luxemburgo, socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.
Uma sociedade próspera e desenvolvida é aquela em que os cidadãos se ajudam, se apoiam, se escoram. Uma sociedade livre é aquela capaz de fornecer saúde, moradia, educação e tempo de ócio a seus membros: tempo para criar, para ver o pôr do sol, para contemplar uma árvore, para deitar na grama e olhar as estrelas, para tecer, para semear e para colher. Como uma vez li em algum lugar, uma sociedade justa é aquela em que todos e todas terão vontade de plantar uma árvore mesmo sabendo que não poderão descansar em sua sombra, mas que muitos outros de nós, que nos sucederão nessa aventura, poderão. É sobre ajudar, sobre servir e doar.
Esse vírus não é sobre você: você provavelmente vai passar bem por ele mesmo que precise de auxílio hospitalar. Esse vírus é sobre as "não-pessoas" que não terão como ficar em casa, lavar as mãos como manda o protocolo, manter a distância necessária de outros, comer e beber decentemente, comprar um tubo de álcool gel, respirar, sobreviver. É sobre um mundo dentro do qual todos sejam sujeitos autônomos, dignos e livres. É sobre nunca mais aceitarmos que as "superpessoas" sigam acumulando tanta riqueza e tanto poder e dividindo o mundo entre "pessoas" e "não-pessoas". Ou, como outro dia escutei de alguém que foi alertado que se ele continuasse naquele local ele morreria: "Moço, para morrer precisa, antes, viver".
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