Triatlo de tetra
Depois de 21 anos que ficou tetraplégica, Mara Gabrilli resolve encarar o desafio de nadar 10 km em uma prova de Ultraman
Eram 5h20 da manhã quando chegamos à praia de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. A areia ainda estava molhada porque horas antes, enquanto ainda me vestia na pousada, havia caído um temporal nada convidativo para atividades no mar.
Duas horas depois, às 6h da manhã, naquele cenário incerto, eu entraria na água a convite do meu amigo Tubarão, atleta e nutricionista. Estávamos na primeira etapa do UB 515 Ultra Brasil Triathlon, competição realizada entre as cidades de Ubatuba, Paraty e Rio de Janeiro. A prova no Brasil é disputada nos mesmos moldes do Mundial, no Havaí. No primeiro dia os atletas nadam 10km e pedalam 145km; no segundo, pedalam 276km; e no terceiro, correm duas maratonas (84km).
Antes de entrar na água, eu já havia enfrentado dois obstáculos para estar ali: subir os inúmeros degraus da pousada (único lugar na cidade onde encontrei um quarto com banheira) e vestir a roupa de mergulho molhada do dia anterior... já imaginou uma tetra colocando aquela roupa de borracha?
Mas eu estava empolgada e decidida em fazer meu melhor.
Lembrei–me das maratonas que participei na vida. Da ansiedade que me tomava horas antes de correr, do frio na barriga que me impulsionava a completar todas as provas que eu, atleta amadora, decidia competir. Emocionei-me quando vi a preparação dos atletas, fazendo suas orações e pedindo autorização ao mar para que entrássemos ali.
Na hora da largada, não contive as lágrimas. Eu estava com medo e nervosa porque o equipamento adaptado para mim precisava ser novamente preparado. Ao me colocarem no catamarã, vi que as cordas que me segurariam haviam sido retiradas. Um dia antes da prova, eu havia encontrado um jeito para montá-lo. Na correria da largada, já não me lembrava mais. Tive muito medo de desclassificar o Tubarão. Não tínhamos tempo, então partimos como foi possível. Mal posicionada, fui presa com um elástico em dois pontos seguros pela estrutura - um na axila e outro na minha cabeça.
Eu estava em uma espécie de mini catamarã onde meu corpo ficou suspenso por cordas dentro da água. Naquele equipamento fui puxada 10 km pelo Tubarão, em uma prova que durou quase cinco horas.
Na água muito coisa passou por minha cabeça... e muita coisa aconteceu. Em certo momento da prova minha pressão caiu por falta de alimento. Não podia ter um apagão ali... se soltasse a minha cabeça o suporte cairia.
Mas tudo isso era muito pequeno ali. Quando você pensa que um dia precisou de um aparelho para respirar e de repente a sua respiração se torna a protagonista daquilo tudo, o sentimento de gratidão toma conta.
Durante toda a prova fiquei o tempo todo praticando uma respiração acelerada e tentando mexer as pernas, contrair os músculos. Com a ajuda da água, algumas vezes consegui movimentos que me fizeram bater a coxa na barriga! Fiquei durante muito tempo com a cabeça apoiada e suspensa parcialmente por uma haste sob os ombros. Virada para cima, foram cinco horas de céu, água, movimento e a sensação de que eram Deus e eu. Uma sensação de infinito maravilhosa.
Quando se depara com uma paralisia tida como irreversível, é muito difícil associar uma prova dessas com a participação de uma tetra. E o maior motivo para encarar esse desafio foi o de mostrar que as pessoas precisam ter noção de uma pessoa com deficiência pode ir muito além. O Tubarão ainda percorreu o percurso de bike do primeiro e do segundo dia (422km no total) com a Danielle Nobille, que também é cadeirante.
No último dia foi a vez do Jonatan Silva, que tem paralisia cerebral e foi empurrado pelo Tubarão na cadeira de rodas, inclusive em trechos percorridos na areia. Um esforço abissal e um sentimento de garra absoluto. Os dois atravessaram a faixa de chegada completando os três dias de prova. Eles perpetuaram o espirito de superação de toda a competição.
Reinventamos o ir e vir de uma pessoa com deficiência e criamos uma nova modalidade esportiva para o paradesporto. Sem grandes patrocínios e referências no mundo, conseguimos quebrar quatro recordes mundiais que serão pleiteados no Guinness Book.
De atleta amadora, quando mexia braços e pernas, sinto-me hoje uma tetra atleta profissional.