Todo mundo pode
Mara Gabrilli fala sobre exclusão nas escolas: "Não se constrói cidadania com política higienista, colocando para debaixo do tapete quem pensa, anda, se comunica, sente ou ama de outra forma"
Aprendi cedo na escola que existiam pessoas diferentes no universo. E isso, de certa maneira, já me provocava. Nas aulas de educação física, eu adorava correr. Era velocista e muito boa em corridas curtas, mas o João Paulo era mais rápido e a velocidade dele me intrigava. Ele era amputado de uma perna. Usava uma prótese pesada, de cor bege. Como podia carregar aquele equipamento todo e ser tão leve, tão veloz? Eu o observava e ficava me perguntando se o pé dele já vinha com um tênis.
O João me ensinou muito precocemente que não se julgava a capacidade de alguém pela condição física. Com o passar do tempo, esse entendimento que nasceu lá no Colégio Santa Maria se estendeu para outras questões que me deparei fora da escola e que carregavam nomes difíceis e significados perversos: racismo, homofobia, machismo, preconceito.
“Educar um aluno para conviver com o que lhe parece diferente é tão importante quanto ensiná-lo a assimilar conteúdos”
Mara Gabrilli
Terminei o ensino médio, me formei em publicidade e depois fui estudar psicologia. Escolhi uma escola com alunos com deficiência para estagiar e aprendi que cada professor precisava aprender como cada criança aprendia. Algum tempo depois, sofri um acidente de carro e fiquei tetraplégica. Perdi os movimentos de pernas e braços, mas nunca duvidei que poderia continuar a ser uma pessoa produtiva. O João já havia me ensinado isso lá atrás.
Educar um aluno para conviver com o que lhe parece diferente é tão importante quanto ensiná-lo a assimilar conteúdos. Não se constrói cidadania com política higienista, colocando para debaixo do tapete quem pensa, anda, se comunica, sente ou ama de outra forma.
Dados da UNESCO mostram que as crianças mais pobres têm probabilidade quatro vezes maior de não frequentar uma escola e cinco vezes maior de não completar o ciclo básico de educação.
Um estudo do movimento Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do IBGE, apontou que quatro em cada dez brasileiros de 19 anos não concluíram o ensino médio no ano passado. Entre eles, 62% não frequentam mais a escola e 55% pararam de estudar ainda no ensino fundamental.
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Quando pensamos na criança pobre e com algum tipo de deficiência, esse número tende a aumentar. O mesmo vale para crianças e adolescentes negros, que sofrem muito mais violações do que meninas e meninos brancos. Ou seja, o Brasil vem abrindo mão de seu bem maior, os brasileiros.
“Não se constrói cidadania com política higienista, colocando para debaixo do tapete quem pensa, anda, se comunica ou ama de outra forma”
Mara Gabrilli
No momento em que uma escola se posiciona contra a matrícula de um aluno com deficiência ou permite condutas preconceituosas, seja com estudantes transgêneros, estrangeiros, refugiados, homossexuais ou de qualquer outra característica que fuja do status quo, estamos desconstruindo o papel da educação, que é de preparar o ser humano para lidar com diferentes situações. Educar não é somente ensinar seres humanos a conquistar uma vaga na universidade ou no mercado de trabalho, mas construir habilidades humanas como respeito, tolerância, empatia.
O Brasil deu um passo importante quando o Ministério da Educação publicou a resolução que autoriza o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica. Embora não tenha força de lei, a medida fomenta o diálogo ao invés da violência e do bullying. E o Brasil é um dos países com maior número de mortes de transexuais no mundo.
Eliminar abusos desde cedo no ambiente escolar é reduzir impactos por toda a vida adulta de um aluno. Os primeiros seis anos de uma criança são fundamentais para o desenvolvimento de suas estruturas física e psíquica e de suas habilidades sociais.
Pense no seu primeiro dia de aula, a primeira vez que vestiu um uniforme, colocou uma mochila nas costas e conheceu uma sala de aula. Que experiências você tem deste momento? Para muita gente, ele tem sido marcado por exclusão, sofrimento, vergonha e dor.
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Passou da hora de reinventamos nossa educação, impetrando um olhar mais diverso, curioso e libertador. Não será muito mais proveitoso educarmos cidadãos que julguem menos e amem mais? Que desejem fazer ciência ou arte, do mesmo jeito que hoje são incentivados a fazer ensino profissionalizante?
“Educar não é somente ensinar a conquistar uma vaga na universidade ou no mercado de trabalho, mas construir habilidades humanas como empatia”
Mara Gabrilli
Pergunto-me o que o Brasil quer ensinar quando omite de provas como a do ENEM questões do período da Ditadura. Se ensinar é universalizar o conhecimento, por que esconder a nossa história? Não falar sobre privação de direitos, além de não eximir o Brasil de um passado tenebroso, subtrai dos nossos alunos aprender sobre um momento do país que ainda tem muito a nos ensinar.
Quando a educação de uma nação se coloca contra questões que devem ser debatidas em sala de aula, como sexualidade, gênero, racismo, direitos humanos, preconceito ou qualquer outro conceito da sociedade, não estamos educando “cidadãos de bem”. Pelo contrário, estamos chancelando um futuro limítrofe, talvez com ordem, mas pouco progresso.
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