Mão na massa
Marcos Jorge, diretor de Estômago, fala sobre sua trama envolvendo coxinhas, espaguete e sexo
Por Cirilo Dias
Raimundo Nonato desembarca na metrópole em busca de uma vida melhor. Não ter o que comer, onde dormir e a quem pedir ajuda são algumas das dificuldades enfrentadas por ele.
As linhas acima resumem o longa-metragem Estômago, que marca a estréia de Marcos Jorge na direção de longas-metragens. Mas assim como uma massa bem-feita depende da "mão boa" e de "toques especiais e secretos" do cozinheiro, Marcos Jorge consegue temperar o enredo da "fábula nada intanfil sobre poder, sexo e culinária" com os ingredientes comida, sexo, sarcasmo, ironia e muito humor negro.
Inspirado no conto "Presos pelo Estômago", de Lusa Silvestre, que assina o roteiro junto com Marcos Jorge, Cláudia da Natividade e Fabrizio Donvito, a ascensão e queda de Raimundo Nonato (João Miguel) prende o espectador do início ao fim do filme, causando frios na barriga e deixando em todos uma estranha sensação de fome. O filme vem conquistando diversos prêmios desde sua estréia mundial no Festival do Rio de 2007, onde recebeu quatro prêmios, dentre eles o de Melhor Filme pelo público. Em Roterdã, na Holanda, foi o segundo colocado na preferência do público, ficando à frente de filmes como Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). Para explicar melhor a receita, conversamos com Marcos Jorge, que fala sobre Itália, prêmios e coxinha.
Como foi a recepção do público no Festival de Roterdã?
Quando cheguei em Roterdã no dia da projeção do Estômago, fui sem esperar muita coisa. De tarde no centro da cidade, fui até a bilheteria e perguntei como estava o meu filme. Me disseram que não tinha mais ingressos para as duas noites e eu pensei "deve ser uma sala pequena", e era uma sala de 700 pessoas, depois me deram uma sala maior e lotamos a projeção também.
E como o público ficou sabendo do filme?
Pela sinopse, pelos comentários. A última sessão foi num cinema de 900 lugares, tinha fila dando volta no quarteirão, tamanha a quantidade de pessoas que não conseguiram ingressos para as outras exibições. Eu saia do cinema, andava ali por perto e o boca-a-boca funcionava muito. Tanto que vendemos o filme quase que imediatamente para o Benelux. Estreamos na Bélgica junto com o Brasil, para aproveitar a sucesso de Roterdã.
Em todos os festivais que o filme foi inscrito, acabou sendo premiado? (Lions Award no Festival de Rotterdam, melhor filme latino-americano do XXVI Festival Cinematográfico Internacional do Uruguai)
Onde vamos levamos prêmios. É bem surpreendente, porque levamos alguns prêmios estranhos. Este último prêmio (Uruguai), o festival é conhecido por premiar filmes que não são de mercado. Por outro lado, Estômago no exterior é classificado com o cross over, tem um perfil que atravessa várias possibilidades. Ao mesmo tempo que é um filme de autor é também um filme apreciado pelo público, crítica. Isso é quase um milagre.
A impressão que se têm quando você assiste o filme é que ele foi filmado na cidade de São Paulo, mas ele também foi filmado em Curitiba.
Eu fiz isso de maneira objetiva, quis deixar a cidade mais vaga, com um tom fabular. A descrição do filme, "uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e culinária", surgiu muito tempo depois do filme pronto. Desde o início quando eu e o Lusa Silvestre (Autor de "Presos pelo Estômago", conto do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim) começamos a escrever o roteiro, já tínhamos a idéia de que o personagem Nonato seria um personagem de velho, um estrangeiro que chega na cidade grande, muito ligado às tradições orais, das velhas histórias contadas para criança, aquele alguém que chega num lugar e vai fazendo sua aventura existencial. Então, eu queria que a cidade fosse enorme e hostil para uma pessoa pobre mas, ao mesmo tempo, que tivesse um lado claustrofóbico, pois prisão e cozinha são ambientes semelhantes
Por isso a cena que termina com a porta do bar fechando e voltando com a cela da prisão abrindo...
Exatamente. A gente misutra isso. Ele dorme na prisão, e acorda no boteco, que é menor que a cela dele.
E o Nonato só começa a cozinhar bem no momento em que o Zumiro fala pra ele apertar a massa igual bunda de mulher. Por quê?
Porque aquele é o momento em que a fábula realmente começa. Estômago é todo duplo, ele dentro e fora da cadeia, dois tons de narração, o fabular e o realista. Inclusive, ele tem dois créditos, na cidade grande com todos os atores e quando ele começa a cozinhar, onde até a música muda, e entra a segunda parte dos créditos iniciais. Até então o filme é realista, com ele vindo da rodoviária, passeando. E ali tem uma seqüência que eu adoro, que é quando ele está amassando a massa, no momento em que ele a dobra, ela se fende ao meio e fica parecendo uma bunda.
E essa fenda de bunda é constante durante o filme né? Seria um tipo de clique que demonstra sinal de poder?
Na cadeia, por exemplo, o único cara que mostra a fenda da bunda é o que está no lugar mais alto da cela...
Exatamente. Esse simbolismo estava escrito no roteiro. Quando ele chega na cela e está dormindo com a bunda virada pros outros presos, tem um cara olhando fixamente para a fenda dele. Imagina, numa cela com oito homens, só um chefe pode dormir com a bunda virada pras pessoas. No mínimo alguém lhe mete o dedo. A Íria (Fabiula Nascimento), também faz isso na rua quando ela mete o dedo na calcinha de uma prostituta e diz "vamos colocar dinheiro no cofrinho"
O fio condutor da história é mais a boca dos personagens do que a culinária em si. Elas estão presentes em todos os momentos cruciais do filme. E a cena de sexo do filme não é tão explícita quanto a boca dos personagens comendo.
Tem razão. A boca é um órgão de prazer, não só para sexo e culinária. Tem essa coisa extraordinária que á a invenção da linguagem, da expressão, que é a maior invenção nossa como seres humanos. Fiquei até inseguro com relação à cena de sexo, porque flerta com o grotesco e ao mesmo tempo é dura e engraçada, o cinema vem abaixo de tanto rir. Pra você ter idéia, fiz uma projeção numa universidade em Miami, só para pessoas acima de 70 anos, e antes expliquei Estômago tinha bastante humor negro etc, e sai da sala. Na hora da cena, 90% do público ficou na sala, mas uma senhora que havia saído falou "Você não disse que a cena de sexo seria tão dura", e eu explique o contexto todo e ela voltou para a sala. Mas a maioria das pessoas adoraram.
Outra obcenidade é a fartura, tanto nas cenas de comida quanto a personagem, que é gordinha...
Quando ela é apresentada no inferninho, aquele locutor horrível fala "pra quem prefere sobrando do que faltando". Essa frase surgiu depois, quando estávamos fazendo a edição de som. Eu pedi para um locutor de inferninho mesmo fazer a gravação. Pensando bem, o filme na verdade tem esse lado de brincar com a obcenidade, de fazer uma crítica a isso. O banquete na prisão é obceno, todos os careceiros comendo o banquete, essa obcenidade política, onde o carcereiro acaba comendo a comida do preso.
E qual foi a comida que o elenco mais gostou durante as filmagens?
A feijoada, o porco estava muito bom, o peixe também. Mas teve um ocorrido durante as gravações. Fomos filmar de noite no Mercado Municipal de São Paulo, pegamos 200 figurantes e fizemos as cenas em duas noites consecutivas. Em algum momento alguém desligou um freezer lotado de frutas exóticas dos EUA, e tivemos que pagar o prejuízo, porque como descongelou tudo, elas não serviam mais para vender. Então o que a produção mais tomou foi suco de frutas exóticas americanas.
A idéia de fazer o filme foi mais por você ter morado muito tempo na Itália e ter adquirido esse fetiche por comida do que ter recebido o conto do Lusa?
O conto "Presos pelo estômago" do Lusa me chamou atenção por falar de comida. Era a história de um cara que melhora de vida cozinhando na cadeia. E eu já tinha a idéia de um filme sobre comida justamente pela cultura italiana, morei 12 anos na Europa, mais de 10 anos na Itália, e lá todo mundo cozinha e dá palpite sobre cozinha, é a mesma coisa com o futebol aqui no Brasil, na Itália todo mundo é cozinheiro. Apenas o conto não dava pra fazer um longa, então vamos inventar outra história, antes dele ir pra cadeia, e é óbvio que o cozinheiro italiano, o queijo gorgonzola, o vinho, são coisas da minha vivência na Itália. Tem uma cena que eu tirei do filme e está no youtube, que se chama "macarrão tem que ter molho", porque o Nonato está fazendo uma macarronada carbonara, que o molho é ovo cru com queijo parmesão e bacon, e quando chega o macarrão sem molho, o Bugiú fica doido da vida e fala "macarrão sem molho? Porra, macarrão pra mim ter que ter molho pra caralho", e acaba de uma forma bem clara, bem de cadeia. Você sai do cinema com fome né?
Uma das críticas sobre o filme falava "talvez nem todo mundo saia satisfeito, mas todo mundo vai sair com fome".
Muito da tensão do filme é mérito da interpretação do João Miguel, que consegue expressar esse sentimento muito bem..
O João é um grande ator, ele nunca sai do personagem enquanto você está filmando, e até durante os ensaios. É um cara que se doa muito e não se poupa nem durante os ensaios, sempre que a câmera está rodando, ele está atuando, então a qualquer momento você pode voltar para o João na narrativa, que ele está sempre dentro do personagem.
E a participação de Paulo Miklos (como o bandido Etcetera)?
É uma homenagem ao filme O Invasor (dirigido por Beto Brant, 2001), que considero a retomada do cinema brasileiro. O personagem Etcetera se chamava Talarico, mas ae nosso consultor carcerário, o Luiz Mendes (colunista da Trip), nos disse que esse era o nome dado àqueles que dormiam com a mulher dos outros na cadeia, um dos tipo mais odiados pelos presos. O Mendes faz até uma participação especial no filme, como um dos carcereiros.
Explique melhor essa história do Mendes.
Ele queria participar do filme, mas não como carcereiro. A cena do futebol na cadeia era dentro de uma barbearia, e no começo das filmagens eu não imaginava que iria ter uma penitenciária inteira para eu poder filmar, eu tinha apenas um corredor e a cela em um estúdio. Quando a prisão do Paraná foi desativada, eles me disseram que eu poderia filmar lá dentro, então a cena cresceu, o banquete que seria numa cela foi para a cozinha, e o Mendes seria o barbeiro. Quando eu disse que o personagem havia caído e que ele seria o carcereiro, ele disse "Mas nem pensar!", e eu "Não, pelo menos uma vez na tua vida você tem que ter essa experiência do outro lado", aí depois de muita conversa, ele topou.
Esse é o primeiro longa-metragem a utilizar acordo de co-produção bilateral Brasil-Itália, assinado no início dos anos 1970. Por que somente vocês conseguiram isso?
O acordo tinha sido usado só para merrequinha até hoje, 50 mil euros, o que não é nada para um filme. A lei previa que um filme poderia ter dupla cidadania, e essa lei nunca tinha sido regulamentada, ninguém havia encarado a burocracia para usa-la plenamente. Uma coisa é a lei, outra são os burocratas que fazem a lei acontecer. A Claudia da Nativade, encarou essa tarefa e a gente sabia que o filme precisaria ter um aporte maior de dinheiro. Como eu morei na Itália, conhecia os produtores de lá, foi óbvio acontecer, mas fazer funcionar tudo isso não foi fácil
Sua vivência na Itália facilitou o processo então?
Primeiro minha vivência, depois a vivência da Cláudia, que também morou na Itália mais de 7 anos e estudo Relações Internacionais por lá, sabe lidar com a burocracia. Não foi fácil, não é à toa que não haviam usado a lei plenamente, pois as exigências são muitos dos dois lados, Brasil e Itália. E você ainda tem que pensar em um modo que a grana não fique de um lado para o outro, pois ela é taxada, então o que descobrimos foi que filmando tudo aqui e finalizando lá, pagaríamos poucas coisas. O risco de finalizar um filme brasileiro na Itália foi grande, teve uma hora que fiquei desesperado, pois estava finalizando em Roma, o montador estava em Lisboa, o sound designer em Milão, o diretor de fotografia no Brasil, e eu tentando coordenar todo mundo. Foi muito trabalho e me obrigou a estar presente em todos os processos do filme.
E a trilha sonora é bastante interessante, tem um ar meio Ennio Morricone.
Morricone e Nino Horta são referência claras, mas tem um pouco de Fellini, muito de Sérgio Leoni, são homenagens explícitas. A cena da Íria andando no corredor balançando a bunda, é Morriconi misturado com escola de samba. Desde os meus curtas sou especialmente atento à música. O meu próximo filme Dois Seqüestros, que eu estou acabando de escrever e pretendo rodar na metade do ano que vem, vai ter pouca música, menos do que Estômago, que foi pensado desde o início com uma música forte, que fosse usada recurso narrativo, como linguagem. O som da cuíca é o mesmo do estômago quando está vazio, é o som da fome, então você percebe que ela está em momentos precisos do filme. A música em Estômago é muito orgânica.
Outro recurso explorado são os formatos das comidas: a massa que parece uma bunda, duas coxinhas juntas que parecem uma bunda...
Todos os grandes filmes com comida que eu lembro falam de alta cozinha, O Banquete de Babete, O Cozinheiro e o Ladrão. Eu queria fazer um filme de baixa gastronomia. Quando o estrangeiro está no exterior, oq eu ele sente mais saudade de sua terra? Aquela comida que você come sem compromisso, aquela comida de boteco. Mesmo os pratos que o Giovani ensina para o Donato são simples, o espaguete da meia noite, anita e garibaldi. Ele aprende que a culinária não é complicação, é fazer aquela coisa ficar boa.
E você trocaria uma pizza italiana por uma coxinha de boteco?
Cara, eu tenho uma coisa que é não repetir comida. Odeio comer hoje o que comi ontem, então pra mim o grande prazer da culinária é a variedade, então eu coloco no mesmo nível uma grande massa e uma grande coxinha.