Leite e Ferro
Documentário sobre maternidade em penitenciárias estreia nesta sexta, 25
Se a premissa de um bom documentário é abordar questões específicas mas que de alguma forma criam uma identificação com um grande número de pessoas, Leite e Ferro, que estreia nesta sexta, 25, cumpre a missão com louvor.
O primeiro longa da diretora Cláudia Priscilla fala sobre a questão da maternidade na prisão e tem como cenário o Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa (CAHMP). Cheio de depoimentos tocantes, o longa, que recebeu o prêmio documentário e melhor direção de documentário em 2010 no Festival de Paulínia, consegue atingir problemas universais sem cair no sentimentalismo.
Nas palavras da diretora, um dos aspectos mais interessantes da obra são os momentos descontraídos das detentas, que apesar de estarem na iminência de serem separadas de seus filhos ainda mantém a capacidade de rir. "O interessante é que mesmo vivendo essa situação elas conseguem rir, conversar. Tive conversas muito divertidas com elas, elas mais riam que choravam. Fui muito bem vinda, foi um processo muito vivo e elas estavam muitos dispostas.", conta Cláudia.
Conversamos com a Cláudia sobre o processo de filmagem, a escolha das personagens, as dificuldades, a situação das presas e sobre projetos futuros.
Tpm: Como surgiu a ideia do documentário? Ela surgiu em algum momento específico da sua vida?
Cláudia Priscilla: A ideia surgiu quando eu tive meu filho, Pedro, que agora tem 8 anos. Eu queria tentar entender como a maternidade ocorre em uma situação limite, tanto física quanto psicológica.
Quanto tempo você passou gravando lá? Como você escolheu as personagens do filme?
Teve um processo de pesquisa que durou dois meses, além da pesquisa teórica, em que eu fiquei na instituição, no CAHMP. Nesses 2 meses eu entrevistei separadamente cada uma das mulheres que queriam participar do filme. Depois disso eu comecei, eu a a Lorena Deli, produtora e pesquisadora de set, a conviver com elas. Todos os dias íamos para lá e ficávamos conversando informalmente. O grupo de mulheres com as quais nós convivemos mais são as mulheres que estão no filme.
As personagens são bem interessantes. Principalmente a Daluana. Ela também foi escolhida nesse processo?
A primeira pessoa que eu entrevistei foi justamente a Luana (conhecida como Daluana), que acabou virando a personagem principal. Fiz duas perguntas e ela falou por duas horas. Fiquei encantada com a experiência de vida dela, foi a segunda maternidade que ela viveu presa. Mas o que mais me encantou na história dela foi o resgate de uma época de um banditismo mais romântico. A Daluana foi uma grande traficante. Ele roubou mansões e bancos, mas era conhecida na favela do Jardim Trianon, onde ela morava, como Tia Robin Hood. A ideia era fazer um filme sobre as mulheres na instituição, a instituição em si teria um peso maior, mas a Daluana roubou totalmente a cena e virou o personagem principal. Eu fui selecionando as mulheres dentro das histórias que mais me chamavam atenção. Foi uma mistura de escolha pelas histórias mais legais e também das coisas que iam surgindo no convívio. Eu vi que não bastavam só histórias, o mais incrível era a troca com as mulheres. O processo foi muito vivo e por isso eu abri mão de muitas premissas. O acaso, algo sempre presente no documentário, foi muito incorporado no filme.
"Uma reprodução social: a mulher é estigmatizada e minoria também no sistema carcerário"
Mas como foi para você ver essas mulheres que acabaram entrando no seu convívio falando sobre as overdoses que tiveram. O que você sentiu? Foi difícil?
Dois terços das mulheres presas estão ali por questões de droga, mas normalmente elas não usam armas e não ocupam o primeiro escalão do tráfico. Portanto, a maior parte das mulheres do CAHMP está lá por isso. Eu já tinha esse dado, não foi o que mais me chocou. Quando eu fui filmar, eu já sabia de algumas histórias, pois já havia passado 2 meses com aquelas pessoas. Muitas mulheres vão presas levando drogas para o marido na cadeia, o envolvimento efetivo com o crime é muito menor.
Qual foi o momento mais triste, que mais te incomodou nas filmagens?
O processo de pesquisa e de filmagem foram difíceis, porque eu queria explorar a questão da maternidade e algumas questões universais que eu me identificava. Mas o mais complicado foi quando eu comecei e me sentir muito mal por estar livre e elas não. Sentia culpa por ir pra casa e poder encontrar meu filho, ter minha família, minha comida. O estar preso e estar solto e um diferencial enorme. Foi o mais dolorido, eu me sentia mal por estar vivendo questões similares, mas estrando solta e elas presas. Elas estão em uma situação muito delicada.
Como você vê a relação entre as mães? Existe tensão entre as detentas?
Existem grupos, isso ficou claro. Mas existe um questão que suplanta qualquer problema de desafeto. Se algum bebê precisa de algo, elas se juntam e resolvem o problema, Para as mães a prioridade sãs eles. Há uma solidariedade muito grande, para defender os bebês, os direitos das crianças. Como o CAHMP (o lugar foi extinto temporariamente e atualmente as mães ficam em alojadas em hospitais penitenciários) era um lugar exclusivo para maternidade, essa união era uma coisa única dentro do sistema penitenciário.
É muito interessante ver a mudança no comportamento das mães quando elas estão com seus filhos e quando relatam suas histórias de vida. Como você enxerga esse processo?
São várias coisas. Elas acabaram de ter filhos, já é uma questão hormonal punk. Para todas as mães é um momento difícil. Revendo agora a minha maternidade e a das minhas amigas, eu acho que todo mundo tem um pouco de depressão pós-parto. No caso delas, o único laço de ligação externa são as crianças. Além de ser o filho, ele agrega um bem maior. As mães sabem que depois de 4, 5 meses elas não irão mais viver com o bebê. Talvez isso faça com que a maternidade seja vivida de uma forma mais voraz, mais intensa. A vida delas realmente não foi fácil. Ainda mais se você pensar que muitas delas talvez não devessem estar ali. Por isso, existe essa revolta de estar em um sistema fechado, um revolta de ser abandonadas, porque pouquíssimos maridos vão visitá-las, e os outros filhos estão em casa ou em abrigos. É uma situação realmente extrema, porque o bebê é a única parte boa dessa história, é o aconchego, o amor. Acho que é essa a razão do contraponto dos dois momentos. O interessante é que mesmo vivendo essa situação elas conseguem rir, conversar. Tive conversas muito divertidas com elas, elas mais riam que choravam. Fui muito bem vinda, foi um processo muito vivo e elas estavam muitos dispostas. Nós vivemos na correria, com falta de tempo. As mães tinham todo tempo e vontade para falar.
Como eram as condições no CAHMP?
Aquele lugar foi fechado e hoje em dia elas estão alojadas em hospitais penitenciários, sendo que a maior parte fica no complexo do Carandiru. Na época da filmagem, em 2007, o local tinha capacidade para cerca de 90 mulheres e haviam 70 mulheres e 71 bebes, porque uma das mães tinha gêmeos. Em cada cela, ficavam duas. No quarto maior, onde ocorrem as conversas, ficavam 6 camas, 3 mulheres e 3 bebês.
As acomodações parecem bem melhores que as de um presídio.
Lá existe outra conduta ética. Tem um diferencial por ser um momento breve, pela presença dos filhos. O lugar não era super legal, tinha muitas deficiências, mas acho que aquele foi o melhor momento da pena delas, também porque não havia superlotação.
Um curiosidade de quem assiste o filme é saber se os bebês mostrados foram para abrigos ou ficaram com a família das presas. Você acompanhou a trajetória deles?
Eu acompanhei a Daluana, porque logo que terminou o filme, cada uma voltou para a cadeia onde cumpriam penas e depois foram algumas soltas . Estou em um processo de encontrar essas mulheres. Fiquei muito feliz por saber que a maioria delas está solta. Acompanhei o Levy, filho da Daluana. Ele foi pra um abrigo, e quando a Daluana saiu, ela pegou o filho de volta e foi vender trufa e café na porta da cadeia. Infelizmente, a prefeitura não deu autorização para venda e ainda apreendeu a mercadoria. Depois disso a Daluana voltou para o roubo e foi presa e novamente. O Levy atualmente está com a ex-sogra dela. Isso é muito triste, não existe absorção dessas mulheres aqui fora.
As mães entrevistadas engravidaram antes de serem presas? Como é a política de visitas íntimas femininas?
Todas foram presas grávidas e somente uma engravidou em uma visita íntima em que ela foi visitar o parceiro na cadeia dele. A visita íntima para as mulheres mal acontece, ao contrário dos homens onde sempre tem aquela fila enorme, cheia de mulheres. Elas mal têm visitas. A arquitetura das cadeias é um problema. Elas foram feitas por homens e para homens. De 330 cadeias no Brasil 15 são adaptadas para mulheres. Elas mal têm acesso a absorvente, os problemas são muito básicos. A situação da mulher presa é muito terrível. é revoltante. Uma reprodução social: a mulher é estigmatizada e minoria também no sistema carcerário.
Quais são seus próximos projetos?
Vou dirigir minha primeira ficção agora, em um curta com o Laerte [cartunista], com direção minha e do Pedro Marques.
Você acha que o envolvimento com um filme de ficção vai ser menor que o que você tem com os documentários?
Convivo muito com o Jean-Claude Bernadet e com várias pessoas ligadas a cinema, como meu marido, Kiko Goifman, e a ideia, que é mais do Jean-Claude, é de que não existe mais essa diferença. Tudo é ficção porque a partir do momento que eu conto algo, eu já coloco palavras em ação. O filme do Laerte será mais ou menos isso, no tocante ao processo. A realização do filme começa com uma série de entrevistas em que ele conta coisas, mas pode mentir no que ele quiser e ser sincero no que quiser também. O roteiro do filme sairá dessas entrevistas. Por isso, ele acaba sendo criador e criatura. Nesse filme, o esquema acaba saindo um pouco da autoficção, porque vamos criar um universo Laertiano, então teremos muito da ficção pura também.
Vai lá: http://leiteeferro.wordpress.com