Karina Buhr: sotaque carregado de caju
Ela defende seu sotaque de Recife e conta que o Nordeste não é só "do Nordeste"
O sotaque de Karina Buhr é de Recife, não “do Nordeste”. Há seis anos em São Paulo e amante da cidade, a cantora avisa: “Em Recife também tem internet, engarrafamento e guitarra!”
“Há seis anos em São Paulo e ainda com sotaque carregado?”, perguntam-me, às vezes com simpatia, às vezes com veneno. O nó no estômago não escapa quando penso que esclarecimento devo dar, mas tiro por menos. Às vezes clareza já é tanta, que tentativa de explicação obscurece a situação. Em terra alheia todo mundo é alheio, fala diferente, sente mais ou menos frio, mais ou menos fastio.
Qual sua roupa típica perfeita? Com que bombacha, jaleco, tanga de samba você se enfeita? Os outros? Momento Lost. Se ache, se azeite, decore sua casa com uma tuia de enfeites. Quando viajar “pro Nordeste” viaje mesmo e diga pra que Estado você vai, porque Nordeste tem um monte! Sou pernambucana nascida em Salvador. Fui morar em Recife com 8 anos. Em Salvador tinha apelidos agradáveis como Jerimum e Biliro. Voltava pra Recife falando cheia de dendê e me lascava de novo pra voltar “ao normal”. Pra muita gente Nordeste é uma coisa só. Não é, irmãos! Inclusive aquele sotaque da novela não é de lugar nenhum.
Certa vez depois de um show em São Paulo, a namorada de um amigo disse: “Que horror essa menina cantando com sotaque de novela!”. Rir pra não chorar...
A música do Nordeste é regional e a do Sudeste, urbana e universal, diz-se muito. Sendo que música, digo eu, recolhida à minha insignificância, não depende disso. Calcinha é pano, coxa é canela, diz o ditado!
Comecei a tocar percussão e cantar em 1994. De lá pra cá aprendi muita coisa, desaprendi tantas outras. Estou botando na rua meu trabalho solo e aí vem a relação fatal disso com o fato de eu ter vindo pra São Paulo ter contato com a civilização. Gente! Em Recife também tem internet, engarrafamento e guitarra.
Os pontos cardeais e colaterais (!) no papel tem mesmo peso, letras de mesmo tamanho, mesma distância do centro. Mas no 3-D da vida real tudo muda. O Sudeste vira centro do Brasil, mas fica existindo como um tipo de Nordeste pro resto do mundo. É isso. O Nordeste está para o Brasil como o Brasil está para a Europa ou pros EUA.
Pimenta não é refresco
O centro da mídia no Brasil é no Sudeste, OK, mas é importante que os porta-vozes não percam de vista a coerência, a necessidade de informação, a curiosidade e principalmente a noção de que tantos outros lugares e modos de falar e de viver existem e são absolutamente normais e tão brasileiros e universais quanto.
Um amigo paulista disse: “Recife tem trazido muita coisa pro Brasil”. O Brasil a que ele se referia era São Paulo. Recife não precisa trazer pra São Paulo pra trazer pro Brasil. Recife fazendo, como qualquer outro lugar do Brasil fazendo, já está trazido! Formô! Já é! Demorô! Partiu!
Amo São Paulo, por isso estou aqui há seis anos, embora minha rinite não me perdoe por isso. São Paulo e Recife foram minhas miras aqui, mas os exemplos valem pra todos nós, por amor e pela visão de longo alcance ao juízo e ao coração.
Não incito nenhum tipo de ideia de superioridade seja lá de onde pra onde. É sempre bom deixar isso claro, pois torcidas inflamadas são mais vorazes que a voracidade. E existe sempre a chance de o que foi dito ser tirado pelo contrário, já que a Terra é redonda e roda, e a gente fica às vezes pra cima, às vezes pra baixo. A percepção vai bailando, puxada e empurrada pela gravidade.
Podemos brincar de subverter um pouco os pontos cardeais. Se conhecer a fundo o Brasil todo é tarefa difícil, pode rolar uma abertura de horizontes. Um pouco de percepção sobre a vida de todos é sempre ouro pra vida de cada um. Procure saber! Deixe a rosa dos ventos ventar! Deixe a bússola enlouquecer!
P.S. Não posso deixar de aproveitar o espaço pra manifestar meu apoio total à extinção da OMB (Ordem dos Músicos do Brasil).