Destronando Helena

Helena Rizzo foi considerada a melhor chef do mundo e comanda um dos restaurantes mais badalados do país, o Maní. Coleciona títulos e elogios em um ambiente onde homens ocupam quase todos os espaços

por Lia Hama em

Enquanto fala com entusiasmo das novidades de seus restaurantes Maní e Manioca Iguatemi e de sua Padoca, Helena Rizzo olha para a tela do celular. Checa a hora e vê se chegou alguma mensagem da babá de sua filha, Manoela. Seu principal empreendimento no momento tem apenas 5 meses de vida. “Tenho que ficar atenta à hora de amamentar”, explica a gaúcha de 37 anos, eleita a melhor chef de cozinha mulher do mundo pela revista britânica Restaurant em 2014, um ano após ser escolhida como a melhor da América Latina.

Manoela é fruto de uma reviravolta na vida da cozinheira mais celebrada do país. Após dez anos de relacionamento com o chef catalão Daniel Redondo, com quem dividia a casa e as panelas do restaurante Maní, o casal se separou em meados de 2014. Meses depois, Helena engatou um namoro com o mato-grossense Bruno Kayapy, 29 anos, então guitarrista da banda Macaco Bong. “A gente se conheceu num evento musical no Manioca e a coisa fluiu rápido. Começamos a nos falar e a querer encontrar. Fui pra Cuiabá, o Bruno veio para São Paulo, passamos o Ano-Novo juntos e ele veio morar comigo. Em janeiro de 2015 descobri que estava grávida. Foi uma filha feita com muito amor e paixão”, conta.

Com os olhos brilhantes e o sorriso no rosto, Helena exibe a leveza de quem passou por um furacão emocional e sobreviveu. “No mesmo ano em que fui premiada pela Restaurant em Londres, estava me separando do Dani. Se você me pedisse uma entrevista naquele momento, eu ia recusar porque estava numa fase fodida, com tudo dando errado, tudo torto. Precisei me resguardar por um bom tempo até conseguir me abrir de novo.”

Helena em frente ao Maní - Crédito: Arquivo pessoal

Sua majestade, o chef
Helena tem a sabedoria de não se levar muito a sério. Morre de rir com as próprias trapalhadas, como quando deixou cair um band-aid numa bruschetta na época de estagiária do restaurante Gero, em São Paulo. Diverte-se ao falar do ensaio que fez nua, aos 20 anos, para a revista Trip (Edição 69, de abril de 1999). “Minha família odiou!” Atualmente fica incomodada com o hype e a idolatria em torno da figura do chef de cozinha. “É claro que é bacana receber esses prêmios, afinal é o reconhecimento de um trabalho não só meu, mas de toda uma equipe. Só que melhor do mundo não existe”, afirma a gaúcha, que nunca fez um curso de culinária na vida. “Minha escola foram os estágios em restaurantes.”

O Maní completa dez anos em 2016 e tem como proprietários outros cinco sócios: o chef Daniel Redondo, a apresentadora Fernanda Lima, os empresários Pedro Paulo Diniz e Rafael Lima e a administradora Giovana Baggio. Desde que foi fundado, no Jardim Paulistano, bairro nobre de São Paulo, o restaurante se tornou um dos melhores do mundo. Há três anos figura no ranking dos 50 Best da Restaurant, escolhidos por cerca de mil jurados. Detalhe: há apenas mais uma mulher na lista de 2015, Elena Arzak, do espanhol, Arzak.

O cardápio da dupla Helena & Daniel oferece receitas sofisticadas que valorizam ingredientes brasileiros, como bochecha de boi com tutano e purê de taioba, linguado com bacuri e o maniocas, uma combinação inusitada de batata-doce, mandioquinha, trufa, tucupi e mandioca. “Comi e quase chorei, ou melhor, quase morri de inveja. Como é que não fiz aquele prato?”, questiona o chef Alex Atala no livro Maní (DBA, 2015), com textos da colunista da Tpm, Milly Lacombe.

Com personalidades e gostos diferentes, Helena e Daniel se complementam na cozinha. “Se Redondo é rigor, seriedade, inquietude, técnica e harmonia; Rizzo é talento, sensibilidade, autenticidade, raiz e paixão”, define o espanhol Joan Roca, chef-proprietário do melhor restaurante do mundo, o El Celler de Can Roca, na Catalunha, onde os dois se conheceram. O casamento acabou, mas a parceria nos fogões permanece. “Estamos começando uma fase nova e bacana. Saiu o que estava ruim e desgastado e ficou a parte boa”, diz.

Na entrevista a seguir, feita no restaurante Maní, Helena fala sobre a infância em Porto Alegre, a vida nas passarelas ao lado da amiga Fernanda Lima, as jornadas insanas nos restaurantes da Itália e da Espanha e a maternidade. A chef também discorre sobre a sexualidade que exala no ambiente em ebulição da cozinha. “Muitos casais se formaram no Maní. A gente passa muitas horas ali, então se tem um ingrediente a mais, um tesão, um amor, o trabalho fica muito mais divertido.”

Com Bruno e Manoela no último Ano Novo - Crédito: Arquivo pessoal


Tpm. Você voltou a trabalhar há pouco tempo. Tem conseguido conciliar a cozinha do Maní com a maternidade?
Helena Rizzo. Voltei para o restaurante faz duas semanas, bem devagar, de boa. Tenho uma babá, mas quero acompanhar de perto esse começo do desenvolvimento da minha filha. Manoela é a minha prioridade agora, é ela quem dita os meus horários. Dou de mamar de manhã, vou para o Maní, volto para casa e dou de mamar de novo. Moro perto, então dá para ir a pé ou de bicicleta.

Você sempre quis ter filhos? Não sou uma pessoa de fazer muitos planejamentos na vida, deixo rolar. Nos primeiros anos do Maní, eu nem sonhava em ter filhos, estava superfocada no trabalho, mas sabia que em algum momento ia querer.

Em 2015, além de se descobrir grávida, você abriu duas casas: a Padoca do Maní e o restaurante Manioca do shopping Iguatemi. Como conseguiu fazer tudo ao mesmo tempo? Minha gravidez foi bem difícil. Tem mulher que fica grávida e acha tudo lindo, mas eu achei um porre. Fiquei muito enjoada nos primeiros quatro meses e meio. Não podia sentir cheiro de xampu ou detergente. Fiquei indisposta, sem energia, como se a criança sugasse todas as minhas forças. As pessoas falam: “Nossa, mas você fez tanta coisa em 2015!”. Não fui eu, ainda mais no estado em que estava. Só foi possível realizar esses projetos porque, nesses dez anos de Maní, a gente formou uma equipe muito boa, que sabe tocar as coisas.

Você continua trabalhando ao lado do Daniel Redondo, com quem ficou junto por dez anos. O processo de separação foi amigável? Nenhuma separação é fácil. Foram tempos difíceis e doloridos porque construímos tudo muito junto e misturado. Começamos a namorar no El Celler, na Espanha. Eu era a estagiária e ele, o chef de cozinha. Aí teve a vinda para o Brasil, o casamento, o restaurante em sociedade, a gente morando e trabalhando juntos todos os dias. Até a nossa conta do banco era conjunta. Nesse período de separação, tirei férias, viajei, fiquei um tempo fora. Depois o Dani fez o mesmo, ficou um período na Espanha. Foi fundamental esse distanciamento.

Com o então namorado Daniel e o amigo Antônio no El Celler, em 2003 - Crédito: Arquivo pessoal

Até então vocês eram o tempo todo retratados como uma dupla, um complementando o outro. Sim, e na parte criativa dos pratos isso sempre foi muito legal. Quando tu faz um novo prato, fica provando tanto aquilo, cria uma expectativa tão grande que é importante ter uma cuca fresca para opinar. O Dani tem um estilo diferente do meu, a cozinha dele é mais forte e pesada, de tradição espanhola. Eu tenho um lado mais italiano. Então a gente conseguiu um equilíbrio bacana. Mas, ao mesmo tempo em que se completava, a gente brigava muito na cozinha. Aí começamos a dividir os turnos: um fazia o almoço e o outro, o jantar. Agora, a gente está começando uma fase nova e bacana porque saiu o que estava ruim e desgastado e ficou a parte boa.

Você foi eleita a melhor chef mulher de cozinha do mundo pela revista Restaurant em 2014. Esperava isso?  No ano anterior, senti um movimento em torno dessa premiação, às vezes vinha alguém ao restaurante e falava que tinha votado em mim. Mas era um prêmio recente, fui a quarta mulher do mundo a ganhar e a primeira da América Latina, não sabia muita coisa a respeito dele.

O que mudou desde então? A gente passou a receber muitos jornalistas, chefs, gente que veio conhecer o restaurante por causa da premiação. Mas a forma como as pessoas enxergam isso é meio bizarra. Hoje em dia se foca muito na figura do chef. Claro que é importante o chef, mas a equipe é mais importante. Logo que ganhei o prêmio veio um cara no restaurante e falou: “Vim ver se é tudo isso mesmo”. Respondi: “Não é tudo isso”. Acho chata essa expectativa. Cada experiência é tão subjetiva, depende de tantas coisas: da tua disposição para comer, do teu humor, da tua companhia, de como estavam a cozinha e o atendimento naquele dia. A gente sabe o quão frágil é tudo isso e o quanto o trabalho um dia pode ser incrível e no outro pode não ser tão bom.

Você conseguiu ficar rica com o Maní? Não fiquei rica [risos], mas tenho uma vida confortável. Não comprei uma casa nem um apartamento, moro de aluguel até hoje. Mas esse trabalho me proporcionou muitas coisas boas e ricas, como viagens. Conheci muitos lugares através do Maní e por isso me considero privilegiada. Poder vir a pé para o trabalho, pagar minhas contas, isso tudo é muito bom.

Aos 4 anos, em Torres, no litoral gaúcho - Crédito: Arquivo pessoal

Quando você começou a cozinhar? Sempre fui curiosa com comida. Na infância, me reunia com as amigas do prédio para fazer bombom de chocolate e vender para os vizinhos. Era horrível o bombom, mas eu achava o máximo. No ano em que prestei vestibular, montei um bar na Praia de Torres, no litoral do Rio Grande do Sul. Ali eu cozinhava, fazia tortas e sanduíches. Foi minha primeira experiência de negócio. Anos depois, vendi bolos de maçã como brindes de empresas, o que bancou a minha passagem para ir a São Paulo. Sempre tive esse lado empreendedor.

Você tem parentes que são donos de restaurantes em Porto Alegre? Minha prima de segundo grau, Eleonora Rizzo, é dona de dois restaurantes: o Moeda, no centro Santander Cultural, e o Al Dente, um local tradicional de comida italiana, com quase 30 anos. Eleonora sempre foi uma pessoa que eu admirei e é muito minha amiga até hoje. Cheguei a trabalhar um ano em eventos em Porto Alegre, usando a infraestrutura dos restaurantes dela para fazer catering.

Como foi o começo da carreira de modelo? Eu tinha uma colega de colégio, a Sassá, que era modelo. Éramos muito amigas e a gente saía sempre juntas. Um dia um cara da agência falou: “Tu devia fazer umas fotos também”. Eu fiz e comecei com uns trabalhos para a Ford Models. O primeiro foi um comercial de TV para o jornal Zero Hora. Eu tinha uns 16 anos nessa época.

Modelos costumam ganhar independência financeira cedo. Como foi para você? Foi maravilhoso porque eu me lembro das dificuldades da minha família nos anos 90. Pagar uma faculdade particular era uma coisa pesada para os meus pais. E eu queria viajar, passear, ficava pensando em como fazer isso. Então o trabalho de modelo foi muito bom porque me deu essa independência muito cedo.

Você estudou arquitetura na PUC-RS. Chegou a terminar a faculdade? Fiz seis meses de faculdade, daí tranquei para vir a São Paulo. Nunca terminei. Quando entrei na PUC já estavam rolando os trabalhos de modelo. Era uma época de muita festa, eu não tava nem aí pro curso. Acabou o primeiro semestre e rodei em duas ou três cadeiras por falta.
 
Era uma vida de sexo, drogas e rock and roll? Não. Quer dizer, um pouquinho. Era muita curtição, muitas festas com amigos, aquela coisa de turma. Nessa época eu não tinha namorado, só uns rolinhos.

Já usou drogas? Já experimentei quase tudo: maconha, ecstasy, ácido, cocaína, mas nunca cheguei a mergulhar em alguma delas. Acho cocaína horrível. Ecstasy e ácido são perigosos.

É a favor da legalização? Sou a favor do diálogo e da informação sobre as drogas, acho que é preciso muita conversa e conhecimento sobre o assunto. E defendo a descriminalização da maconha.

Foi nessa época de modelo que você conheceu a Fernanda Lima? Foi. A Fernanda é dois anos mais velha do que eu e já tinha estourado, saído na capa da revista Capricho. A primeira vez que a gente se falou foi num desfile da Tchoin, marca de roupas de Porto Alegre. Era uma coleção de verão, desfilamos descalças e teve uma hora em que me deu uma puta cãibra. A Fernanda pegou o meu pé, puxou e falou: “Pera aí, guria! Vou te ajudar”. A Fê sempre foi muita amiga, muito irmã. Nessa época eu queria largar a faculdade e ela botou pilha: “Vai trabalhar em São Paulo, guria!”. Vim por volta de 1997, 1998, junto com a minha amiga Mari Kraemer, designer de interiores do Maní. Trabalhei como modelo por pouco tempo, dos 16 aos 19 anos. Nunca fiz muito passarela, rolava mais comercial e publicidade. Fiz para Nestlé, Ferrero Rocher, Runner,
Bradesco. Se eu fechasse um trabalho desses a cada dois meses já tava lindo, pagava as minhas contas.

Com Daniel Redondo, Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert no réveillon de 2005 - Crédito: Arquivo pessoal


Como foi a transição de modelo para chef de cozinha? Desde o Sul, já era fã da Neka Menna Barreto, também gaúcha. Eu comprava a revista Elle e guardava os cartões com receitas de cozinha que vinham dentro. Tenho uma pasta com eles até hoje. Uma vez saiu uma matéria com a Neka e umas fotos de uns banquetes incríveis dela. Quando vim para São Paulo, fui atrás dela. Comecei a fazer bicos de garçonete nos banquetes. Não cheguei a trabalhar na cozinha, mas só de ver o que ela preparava foi superbacana. Hoje a gente mora na mesma rua e se cruza de vez em quando.

Você fez estágios no Gero e no Roanne, dois restaurantes clássicos em São Paulo, um italiano e um francês. Como foi? No Roanne foram uns seis meses de estágio, até viajei com eles para o Castelo de Caras, na França. O chef Emmanuel Bassoleil fez um jantar lá. No Gero, lembro que um dia deixei cair um band-aid numa bruschetta! [Risos] O prato estava indo para a mesa quando o garçom viu e perguntou: “De quem é isso aqui?”. Na hora em que vi o meu dedo sem o curativo, tremi. Levei uma puta bronca do chef, um italiano baixinho e brabinho chamado Tiziano.

A beleza te ajudou na carreira de chef? Acho que sim. Quando fui modelo em São Paulo, tinha permuta em vários restaurantes. Eu e a Fernanda comemos muito nesses lugares, a gente usufruía mesmo. Um deles era o Popular, que hoje é o Na Mata Café. Ficava do lado da nossa casa no Itaim. Ali conheci um dos donos, o Cliff Li. Ele sabia que eu gostava de cozinhar porque eu era metidinha, ficava perguntando sobre os pratos, ia na cozinha fuçar. Nessa época, eu e a Mari Kraemer fazíamos jantares para fora, em festas e aniversários. Aí o Cliff me convidou para cuidar da cozinha do Na Mata. Eu só tinha 20 anos. O fato de ser jovem, modelo e chef de cozinha foi bacana, saíram críticas boas e aquilo me abriu portas. Consegui largar a modelagem para viver de cozinha.

Nessa época, você fez um ensaio de Trip Girl. Que lembranças você tem disso? Eu quis fazer, já conhecia o fotógrafo, o Dedé Fedrizzi. A Fernanda Lima tinha feito um ensaio pra Trip no ano anterior. Minha mãe falou: “Mas por que fazer isso, minha filha?”. Minha avó odiou, achou um absurdo. Hoje vejo as fotos e me divirto, acho que tá tudo certo. Mostrei pro Bruno e ele brincou: “Hum, vou postar no meu Instagram!”.

Já te incomodou a imagem de “chef modelo”? É lógico que no começo tinha essa coisa de ser chamada de “chef modelo” ou “chef ex-modelo”. Mas isso não me incomodava muito, me incomodava mais o fato de que eu não sabia nada de cozinha e precisava aprender.

Foi então que você decidiu ir para a Europa? Foi. O sommelier do Na Mata me indicou para trabalhar em um restaurantezinho na Itália. Chamava La Torre, em Spilimbergo. De lá fui para um restaurante maior em Milão. Mas era um ambiente super-rígido e a galera não era muito legal. Eu ficava de meio-dia até 1 hora, 2 horas da manhã direto na cozinha. Comecei a me questionar se era aquela a vida que eu queria. Tinha um japonês superfofo, o Chinha Fukimoto, que fazia as massas. O cara era uma máquina. Eu reclamava e o Chinha me dizia: “Tu non pensa così, tu lavora, non pensa, lavora”. Tipo zen, né?

Como você conheceu o El Celler de Can Roca? Uma vez fui jantar no D.O.M. e troquei uma ideia com o Alex Atala. Ele estava planejando fazer um tour com amigos por vários restaurantes da Espanha - o El Bulli, o Carme Ruscalleda, o Can Fabes e o El Celler - e me convidou para ir junto. Naquela época a cozinha espanhola estava bombando, falava-se muito do chef Ferran Adrià. Quando fui ao El Celler, fiquei enlouquecida e falei: “Quero trabalhar aqui”. Tinha uma brasileira no Can Fabes e eu perguntei como fazia para conseguir um estágio. A mina foi meio escrota. Ela me disse: “Ah, mas tu não fez tal escola? Não fez tal curso? Ah, então vai ser muito difícil”.

Como você conheceu o Alex Atala? Foi na época do Roanne, lembro de ele frequentar o restaurante. Tinha uma turma de chefs em São Paulo: o Emmanuel Bassoleil, a Roberta Sudbrack, a Carla Pernambuco e o Erick Jacquin. O Alex era o novato da turma. Ele sempre foi muito bacana comigo. Tanto na época em que me convidou para o tour na Espanha e me apresentou àquele mundo como quando a gente abriu o Maní. Foi ele quem escreveu a primeira matéria elogiando. Tenho muito carinho e admiração por ele.

E como você finalmente entrou para a cozinha de um dos melhores restaurantes do mundo? Fiz vários bicos na Espanha antes de conseguir um estágio no El Celler. Insisti até conseguir. Depois da minha primeira visita com o Atala, voltei lá e falei que eu gostaria de fazer um estágio. Telefonei e mandei um e-mail para o Joan Roca [chef-proprietário do El Celler]. Aí numa terceira visita com um amigo, o Joan veio à nossa mesa e eu perguntei: “E aí, quando eu começo?”. Então ele respondeu: “Pode vir em janeiro”.

Daniel foi seu chefe nessa época. Como foi? Na primeira semana eu liguei pra minha mãe chorando e falei: “Mãe, não vou aguentar”. Porque era uma jornada insana de 15, 16 horas de trabalho por dia. Aos poucos fui entrando no ritmo, aprendendo a gostar daquilo e acho que eu demonstrava a minha alegria na cozinha. E o Dani sempre foi muito duro, muito sério no ambiente de trabalho. Temos culturas e personalidades muito diferentes. Ao mesmo tempo, ele era muito querido fora dali. Tinha um olho que brilhava e uma paixão pelo que fazia. Mesmo sendo daquele jeito na cozinha, as pessoas gostavam dele.

Numa entrevista à Tpm, a Paola Carosella contou que viu machismo e assédio sexual na cozinha. Isso já foi uma questão pra você? Em todos os lugares em que eu trabalhei, sentia que tinha gente legal e gente escrota. Testemunhei episódios que não sei se eram de machismo ou de escrotismo mesmo. Na Europa senti um preconceito não só por ser estrangeira, mas por ser brasileira. Naquele restaurante em Milão, um chef de cozinha, no meio de uma discussão, me falou: “Então mostra os teus peitos!”. Como se por ser brasileira eu tivesse que mostrar os peitos.

Você acha que a cozinha propicia esse tipo de coisa? Existe uma sexualidade no ambiente da cozinha. Primeiro porque é um ambiente pequeno, onde muita gente trabalha junto. Segundo porque lidamos o tempo todo com os sentidos, com cheiro, sabor, cor, textura. Mas tem o lado bom, aqui no Maní já se formaram muitos casais. Menina com menino, menina com menina, menino com menino, todas as possibilidades!

O que você acha da febre dos realities shows de culinária, como o MasterChef? Acho divertido. Assisti ao MasterChef ano passado porque estava grávida e não trabalhei muito à noite. Fiquei passada com o conhecimento e a habilidade das crianças do MasterChef Júnior. É muito engraçado porque elas têm uma postura super de adulto na hora de cozinhar, mas quando saem elas se acabam de chorar. Acho positivo que as pessoas se interessem por cozinha e queiram imitar em casa.

Você assiste a algum programa de culinária? Gosta do da Bela Gil? Não assisto muito, mas já vi alguns episódios. Acho bacana a Bela Gil porque ela dá alternativas legais, mostra outras possibilidades de ingredientes. Ela é uma radical, mas acho que faz um balanço legal com todo o resto que existe na TV.

Quem é o seu mestre na cozinha? O Joan Roca, do El Celler. É um cara que eu tenho como exemplo de pessoa e de cozinheiro. Porque ele é sério, mas, ao mesmo tempo, louco. Ele impõe respeito na calma, não é histérico, raramente dá um grito na cozinha. Sempre foi bacana comigo, me lembro de ele sentar no bar e me explicar passo a passo como funcionava a cozinha a vácuo. Tenho tudo anotadinho num caderno.

Como as três gaúchas – você, a Fernanda Lima e a Giovana Baggio – conseguiram convencer o Pedro Paulo Diniz, que é vegetariano e um dos sócios do Maní, a incluir carne no cardápio? Apesar de a culinária vegetariana proporcionar uma série de possibilidades de criação com legumes, grãos, queijos e cogumelos, a gente achou que não ia vingar um restaurante radicalmente vegetariano. Então abrimos o Maní com uma opção de carne vermelha, outra de ave e outra de peixe. O cardápio foi mudando aos poucos, mas tinha que ter uma porcentagem a mais de pratos vegetarianos. Acho que o Maní só deslanchou mesmo quando nos deram liberdade para trabalhar com todos os ingredientes.

É verdade que vocês escondiam os pratos com carne do Pedro Paulo? Teve uma época em que a gente pôs foie gras no cardápio. Então falávamos para os garçons tomarem cuidado para não oferecerem o prato para a mesa ao lado do Pedro Paulo. [Risos] Mas ele sempre foi muito de boa, nunca pegou no nosso pé.

No ensaio para a Tpm - Crédito: Mariana Maltoni


O tema desta edição da Tpm é açúcar. Você consome muito doce? Gosto de doce, mas consumo com moderação. Nunca comi uma barra de chocolate inteira, sempre como um pedacinho e me satisfaço. O açúcar é uma droguinha. Se tu come um doce hoje, amanhã vai querer outro. Ele cria essa necessidade. Mas não sou radical, sou a favor de moderação e equilíbrio na alimentação. Não adianta simplesmente proibir o sal, o açúcar, a gordura. É como a questão das drogas. Tem que se informar bem e saber usar.

Já fez muita dieta maluca na época de modelo? Quando comecei a modelar fiz a dieta dos pontos. Não temperava a salada porque o azeite contava pontos. Hoje, não faço dieta, mas procuro comer bem. Como estou amamentando, sinto vontade de comer doce. Então todos os dias vou à Padoca e pego uma fatia de bolo, tomo um sorvete ou como um pedaço de chocolate.

O que você não come jamais? Na minha profissão a gente tem que experimentar tudo. Tem coisas que eu não amo, mas que experimento, como a sopa de pulmão de boi que tomei na Áustria. Mas ultimamente nada do que eu comi achei terrível.

Gosta de coisas trash industrializadas como Miojo, Froot Loops e Cheetos? Não tenho o hábito de comer essas coisas, mas já comi Miojo e salgadinhos. No começo da gravidez me deu vontade de comer umas porcarias. Teve um dia que ataquei um pacote de Fandangos.

Quem cozinha em casa: você ou o Bruno? Nós dois cozinhamos, e ele é muito bom com cozinha caseira: faz os peixes do Mato Grosso, estado de origem dele, como o pacu na brasa. O hambúrguer dele também é muito gostoso. Eu faço picadinho, massa, coisas simples. Tenho cozinhado bastante em casa ultimamente, até porque a pessoa que trabalha em casa não cozinha, então eu e o Bruno nos revezamos.

O livro do Maní traz imagens de diários seus e de grafites que você fez. Nunca pensou em enveredar pelas artes plásticas? O desenho foi uma influência que veio da minha mãe [Ivone Bins], que é artista plástica. Desde cedo ela nos incentivou a brincar com tinta, argila, papel, lápis, e eu sempre gostei muito de desenhar. Há uns dois anos, decidi experimentar o spray nas paredes de casa, e fiquei apaixonada pelo grafite e suas possibilidades. Cheguei a fazer um pôster ou outro, fiz a capa do último disco do Macaco Bong a pedido do Bruno, tudo isso como um hobby.

Desenho em diário


Você mantém um diário onde escreve e desenha? Sou muito adepta dos caderninhos e bem analógica nesse sentido. Gosto de escrever as coisas que penso, as ideias de pratos para o restaurante, rabiscos, desenhos. Tenho uns três caderninhos na ativa no momento.

Você é presidente do C5, Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo. Como é o trabalho de vocês? O C5 é um grupo de amigos e pessoas interessadas em discutir e aprender mais sobre a culinária brasileira. Fazem parte o Rodrigo Oliveira [chef do Mocotó], o Carlos Alberto Dória [sociólogo], o Ivan Ralston [chef do Tuju] e um monte de gente de diferentes áreas. O legal é essa intersecção entre o academicismo e a prática. A gente faz cursos e eventos, como o jantar das Pancs [Plantas Alimentícias Não Convencionais] no Maní e o curso do Dória sobre culinária caipira e o do Ivan sobre peixes.

Quais são seus próximos projetos? Não pretendo abrir nada novo, esse ano é de polimento das coisas que começamos no ano passado, de melhorar a Padoca, o Manioca no Iguatemi e também o Maní. No ano passado eu não estava bem por causa da gravidez. Em termos de criação de pratos, não foi um ano muito producente. Quero retomar.

Pretende ter mais filhos? Acho que vou parar por aqui, não sei se dou conta de mais filhos. Mas vai saber, né? É como eu te disse: não sou uma pessoa de fazer muitos planos, deixo as coisas rolarem.

Arquivado em: Tpm / Culinária / Comportamento / Trabalho / Páginas Vermelhas