Nas entrelinhas de Patti Smith
Tpm conversou com o editor e os tradutores de O Ano do Macaco e Devoção, novos livros da artista que ganham lançamento no Brasil, para onde ela volta para dois shows
É difícil definir uma obra literária de Patti Smith, que volta ao Brasil para shows nos próximos dias 15 e 16 de novembro, em São Paulo. Seus novos livros, O Ano do Macaco e Devoção, lançados no fim de outubro no Brasil e sobre os quais ela fala no próximo dia 14, também em São Paulo, são, cada um deles, uma mistura despreocupada de estilos: autobiografia, ensaio, poesia, prosa poética, ficção.
"Essa multiplicidade de sentidos faz parte da qualidade poética da linguagem de quem foi, em primeiro lugar, poeta e letrista", diz Camila Von Holdefer, tradutora de O Ano do Macaco para o português. "Uso 'qualidade poética' no mesmo espírito da definição da [poeta canadense] Anne Carson: se a prosa é uma casa, a poesia é um homem em chamas correndo depressa pelos cômodos."
Talvez por metáforas seja mesmo mais fácil explicar: Patti constrói a casa e bota fogo. Ora em si própria, ora em tudo o que está ao seu redor. E, mais tarde, volta a varrer o quintal.
Autora do premiado Só Garotos (2010) – em que repassa sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe desde o fim dos anos 60 –, a cantora e escritora segue um caminho narrativo diferente em O Ano do Macaco, registro autobiográfico que nos conduz pela estrada enevoada que foi seu ano de 2016. Enquanto os Estados Unidos viviam os dias sombrios das campanhas eleitorais e, posteriormente, da vitória de Donald Trump, Patti lidava com questões de morte – a do músico e produtor Sandy Pearlman e a do escritor Sam Shepard, grandes amigos que estavam partindo – e de vida – a sua própria, à beira dos 70 anos, com reflexões solitárias sobre a passagem do tempo.
No meio de tudo isso, enquanto viaja pelo país a partir da virada do ano, nos convida a viver as trivialidades do seu dia a dia: acompanhá-la no café da manhã no seu canto preferido de Santa Cruz (Califórnia) ou em uma carona com um casal esquisito.
Se o tom da obra é de melancolia, por outro lado, nos traz um certo conforto – das sensações familiares do cotidiano ou da sorte de poder preservar as memórias. Ou, como diz Patti, “...a dor de uma nostalgia bem-vinda”.
Os antagonismos, aliás, são outra marca importante do livro. "Há muitos contrários em O Ano do Macaco, a ambiguidade atravessa o livro de ponta a ponta. O sono e a vigília, o interno e o externo, a inércia e o movimento", descreve Camila, que conta que ela mesma lidou com suas próprias contradições na tradução, já que, fã de Patti, encarou a tarefa com honra e temor. "É uma personagem importante da minha vida, tanto pela trajetória musical quanto biográfica. Essa familiaridade ajuda, mas a responsabilidade não deixa de ser um fardo em certos momentos."
À vontade na própria pele
Patti é de um sofisticado equilíbrio emocional e, ao mesmo tempo, se entrega à dor sem medo de transparecer sua vulnerabilidade. Sucumbe a perdas, tragédias e lutos, deixando o leitor desamparado. "A elaboração da dor, a aproximação com o inconsciente… Tudo mostra a força e o poder criativo de uma mulher que, apesar dos momentos de desamparo, está à vontade na própria pele", diz Camila.
Para Emilio Fraia, editor das obras, a alternância de sentidos, humores e cenários é um dos aspectos que torna O Ano do Macaco especial. "O livro é esse aperto na garganta, mas cheio de esperança", diz. "Mostra uma Patti Smith no auge de um estilo que ela vem forjando para si como escritora, dona de um texto memorialístico, confessional, muito íntimo."
Apesar do registro nos moldes de um diário pessoal, existe uma carpintaria cuidadosa por trás do aparente fluxo impulsivo. "Certas frases podem ser compreendidas de várias maneiras, ainda que não de imediato", explica Camila. Para a tradutora, a missão foi reproduzir essa sensação vaga e imprecisa, sem tentar resolver os enigmas que Patti deixou para nós.
Se a dificuldade de discernir entre estados de consciência – raramente se sabe se Patti está sonhando, acordada ou sonhando acordada – causar certa angústia ao leitor, o conselho é entrar na dança da escritora e, como ela, apenas vagar por aí. "O aspecto delirante atravessa tudo, mas há uma abertura para o mundo", diz Emilio.
Modo de fazer
Se O Ano do Macaco nos joga na melancolia, Devoção chega como uma brisa bem-vinda. O livro é uma espécie de manual de escrita, mas, claro, bem ao estilo de Patti: ela mostra, em outra jornada autobiográfica, como seu processo criativo funciona. E ainda cede ao leitor o resultado concreto desse trabalho: um conto que reúne os elementos da vida real que a inspiraram. "É um livro pra lá de singular. Corajoso porque se apresenta como uma reflexão, uma biografia, um ensaio e, ainda, traz um trecho de ficção. São partes independentes que funcionam ainda melhor juntas", diz Caetano W. Galindo, tradutor de Devoção para o português.
Além de oferecer referências do seu repertório, como a visita à casa do escritor francês Albert Camus, Patti monta sua própria trajetória literária, lembrando que essa arte é tão fundamental para ela quanto a música. "Existe a busca pela marca de escritores consagrados, como o Camus, enquanto ela fornece seus próprios elementos para que os leitores possam fazer sua arqueologia no futuro", explica o tradutor.
Ao contrário de Camila, Caetano não conhecia o trabalho da artista, nem musical nem literário. Seu desafio foi, então, traduzir esse universo particular denso. "Em um livro tão variado em termos de tom e abordagem, e que tem um trânsito constante entre registros de realidade e de invenção, minha dificuldade foi entender qual era essa prosa e, assim, manter seu colorido, criando, ainda, uma uniformidade que correspondesse ao que me parecia ser a voz da autora", explica.
E essa voz, vale dizer, não tem medo de contrariar as regras da boa literatura – Patti abusa de adjetivos e advérbios para manter seu ritmo e criar o característico antagonismo. "Alguém, um dia, disse que era melhor evitar adjetivos e advérbios. Aí a gente se depara com um texto magnífico com esses recursos usados de maneira original, alcançando um efeito muito específico", diz Emilio.
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Além de dar potência ao texto, essas pequenas rebeldias foram responsáveis por convocar a musicalidade da artista. Nesse sentido, a escolha das palavras na tradução são fundamentais para respeitar o cuidado que Patti teve, nos dois livros, em criar um texto que, acima de tudo, refletisse quem ela é. Como define Camila: "Todo livro da Patti Smith é uma busca que pressupõe um maravilhamento genuíno e reverente pelas belezas que ela encontra." Ainda que essas belezas, vez ou outra, venham carregadas de algumas sombras. Nesse caso, a tradutora evoca outro ídolo dos tempos de Chelsea Hotel, em Nova York. "A narrativa de Patti me lembra os versos do Lou Reed de Magic and loss—The summation: Há em tudo um tanto de magia/E então alguma perda para igualar as coisas."
Vai lá:
Patti Smith estará no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo, no dia 14 de novembro, para falar sobre os dois lançamentos.
No dia 15, ela sobe ao palco do Popload Festival, e no dia 16, no Auditório Simón Bolívar, no Memorial da América Latina, ambos em São Paulo
Créditos
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