Os gêneros de ontem, hoje e amanhã

Na reedição de seu livro dedicado ao feminino, que completa 18 anos, a psicanalista Maria Rita Kehl debate os atuais usos da palavra

por Letícia González em

Cinco milhões de brasileiros nasceram 18 anos atrás, inaugurando uma geração que, ao entrar na escola, deu fôlego novo ao debate dos sexos e hoje sai às ruas para protestar contra o machismo. Agora, chega à maioridade junto com Deslocamentos do feminino, obra da psicanalista Maria Rita Kehl lançada pela primeira vez em 1998 e que ganha nova edição este mês. O livro foi até a virada do século 20, e analisou o que a ciência começava a concluir sobre a “natureza feminina”. Tem um capítulo dedicado às primeiras pacientes histéricas de Sigmund Freud e outro à adúltera mais famosa da literatura, Emma Bovary.

Conversamos com Maria Rita sobre os gêneros de ontem, hoje e amanhã.

Tpm. “No futuro seremos todos gays, trans e sem gênero.” O que você acha dessa afirmação?
Maria Rita Kehl. Acho que essa possibilidade está, sim, aberta diante das novas gerações, mas não pode ser uma imposição. Não concordaria com uma inversão da discriminação, ou seja: eliminamos os preconceitos contra todas as formas de LGBT, mas daqui para frente vamos discriminar os heterossexuais que continuam a se identificar com as escolhas de estilo e de parceria amorosa baseadas no sexo biológico.

Muitas vezes usamos “feminino” para descrever gestos de cuidado, delicadeza e sedução. Considera o uso equivocado? Por um lado, me parece que feminino e feminilidade são associados a vaidade, delicadeza, sedução. Por outro, nem as mulheres hoje se identificam totalmente com a feminilidade nem os homens estão excluídos dela. E não falo apenas dos gays, trans etc. Falo, por exemplo, de pais de família muito bem-adaptados a sua identidade masculina, que se despiram da rigidez do papel de macho e cuidam de seus filhos com a mesma dedicação de uma mãe.

No livro, você mostra como a Revolução Francesa levou as mulheres à rua e o século 19, com suas teorias, tratou de devolvê-la à casa. Hoje, como vivemos o apelo desses dois espaços? Me parece que as mulheres já dividem, sem restrições, o espaço público com os homens. Há profissionais mulheres em todas as áreas. Tivemos uma presidente mulher! Às vezes penso que o impeachment não teria acontecido com um homem, que houve motivações machistas na votação – mas ainda penso que o antipetismo e o antilulismo foram mais fortes. Outra novidade é que vemos mais mulheres que se atrevem a ir sozinhas ao cinema, ao teatro e até a restaurantes – coisa que os homens não fazem.

As cantadas de rua são combatidas hoje por muitas mulheres e você já se mostrou curiosa a respeito. Por quê? Nos anos 90, meu amigo Eugênio Bucci me convidou para fazer uma coluna na Playboy chamada “De mulher pra homem” e eu aceitei. Meu primeiro artigo foi um elogio da cantada – mas só da cantada simpática, bem-humorada, não do assédio. A meu ver, a cantada grosseira não é uma declaração de amor ou de desejo pela mulher: é uma demonstração de ressentimento. Da mesma forma, uma mulher que se ofende com um assobio ou uma frase engraçada me parece revelar um moralismo exagerado. 

Vai lá: Deslocamentos do feminino A mulher freudiana na passagem para a modernidade, Boitempo Editorial

Créditos

Imagem principal: CPFL Cultura

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