Pega na mentira

Leitores exigentes, conexão ininterrupta e novas ferramentas estão no centro de uma reforma no jornalismo. Um dos protagonistas dessa cena se chama El Chequeado

por Natacha Cortêz em

Cristina Kirchner - Crédito: Reprodução

Desde que Cristina Kirchner assumiu o poder, em 2007, uma luta aberta entre o governo e a mídia opositora foi deflagrada na Argentina. A presidente foi acusada de criar uma versão própria da realidade do país através de declarações muitas vezes mentirosas ou deturpadas. Em retaliação, criou leis que restringiram o poder dos meios de comunicação e fez pressão junto a anunciantes para reprimir a publicidade em alguns jornais. Veículos que não se alinharam ideologicamente com o governo, como Grupo Clarín, La Nación e Perfil, enfrentaram uma série de dificuldades para se manter enquanto atacavam o governo. O embate embaçou a veracidade dos fatos e dividiu a população agarrada a argumentos, muitas vezes, falaciosos. “Foi um tempo de forte polarização entre o governo e a imprensa que não o endossava”, explica Laura Zommer, diretora executiva do El Chequeado. Foi a descrença e a falta de horizonte que motivaram em 2010 a criação do site, a primeira iniciativa de fact-checking na América Latina, que, na prática, verifica e confronta declarações públicas de políticos, economistas, empresários, líderes sindicais, meios de comunicação e outras instituições de formação de opinião.

O projeto liderado por Laura, jornalista portenha e advogada de 41 anos, se inspirou em pioneiros como os americanos FactCheck.org e PolitiFact – que ganhou o Pulitzer em 2009 na categoria Melhor Website – e no Les Décodeurs, do Le Monde, na França. Foi um grupo de três acadêmicos que levou a iniciativa para uma Argentina em chamas: Julio Aranovich, doutor em física pela Universidade de Stanford (Estados Unidos); José Alberto Bekinschtein, economista pós-graduado pela ACTIM (França); e Roberto Lugo, doutor em química pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). A ambição deles era descortinar a informação factual e, ao mesmo tempo, criar um modelo que questiona o empoeirado jornalismo declaratório, no qual apenas se reproduz o que é dito sem questionamentos.

Laura Zommer, direrora executiva do El Chequeado - Crédito: Cruz Mendizabal

Hoje, El Chequeado alcança muitas pessoas e tem mais de 1 milhão de acessos por mês através de seu site e redes sociais, além de participações em rádios e jornais. Diferente dos fact-checkings que o inspiraram, o argentino escancara os dados oficiais que consegue. Assim, qualquer pessoa pode ter acesso a eles. No país, obter esses dados é um verdadeiro desafio. Laura explica: “A Argentina não possui uma legislação que regula o acesso à informação, e a falta dela limita a capacidade dos cidadãos de monitorar os líderes políticos e sociais e de discutir assuntos públicos que os afetem”. Uma segunda característica singular do site é a sua ênfase na participação da sociedade para a verificação do discurso, o caráter colaborativo dele. “Checar é um esforço coletivo”, ela diz.

Laura trabalhava no La Nación em 2012, quando recebeu o convite para ser diretora executiva do El Chequeado. “No começo, aplicávamos apenas os conceitos de ‘verdadeiro’ e ‘falso’ para as declarações, mas isso se mostrou insuficiente para explicar a complexidade de algumas”, argumenta a jornalista. A solução foi criar sete etiquetas complementares, entre elas: “enganoso”, “exagerado”, “insustentável”, “verdadeiro, mas”, “discutível” e “apressado”. Na mira do site estão, por exemplo, os discursos presidenciais, que são investigados ao vivo com a ajuda de especialistas, dezenas de voluntários e os mais de 130 mil seguidores do Twitter e Facebook. Um exemplo: em discurso de 1o de abril deste ano, Cristina Kirchner disse: “Nosso país é o único que diminuiu sua dívida externa em todo o mundo”. A informação da presidente era falsa.“Romênia, Egito, Israel e Arábia Saudita diminuíram, de 2007 a 2014, a taxa entre a dívida externa e o PIB, os dois últimos mais que a Argentina”, elucidou o El Chequeado.

Os grandes mentirosos

Em setembro de 2014, o então chefe de gabinete do governo argentino, Jorge Capitanich, disse que a pobreza no país havia sido “praticamente erradicada” nos últimos dez anos. A afirmação foi classificada como “falsa” pelo site, que para chegar à verdade comparou dados do Indec (Instituto Nacional de Estadística e Censos da República Argentina), usado por Jorge, com os de instituições independentes. Para o instituto do governo, apenas 1,4% da população vivia na indigência. Entretanto, uma pesquisa realizada pela Universidade Católica da Argentina apontou outro resultado: 5,5%. O novo dado foi cruzado e confirmado com outras fontes alternativas. Jorge não só teve o erro (mentira? Má-fé?) exposto na imprensa, como sofreu um desgaste no governo e acabou desistindo de seus planos de se lançar candidato à presidência. O caso emblemático trouxe credibilidade ao trabalho do site e foi uma amostra de sua imparcialidade. A confiança no El Chequeado vem justamente de checarem com o mesmo rigor desde a imprensa opositora até integrantes da cúpula do governo.

O candidato à presidência, Daniel Scioli - Crédito: Reprodução

Outros políticos foram pegos na mentira pelo grupo de 12 colaboradores, formado por jornalistas, sociólogos e cientistas políticos. O ex-vice-presidente argentino Julio Cobos já se retificou publicamente após ter tido informação questionada, assim como o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri. Mas Laura prefere não categorizar ninguém de mentiroso. Quando perguntamos sobre os casos mais marcantes e os nomes mais desmentidos, ela responde: “Não podemos falar quem é o maior mentiroso. Seria pouco sério da minha parte porque o nosso método não permite fazer esse tipo de comparação, já que não checamos absolutamente tudo o que cada um fala. Só podemos dizer que não tem nenhum partido político argentino que sempre esteja certo ou que nunca minta”.

Cheque mate

O El Chequeado é uma instituição independente e sem fins lucrativos. Sobrevive de doações de fontes sempre diversificadas e transparentes, “doadores anônimos são indesejados”, insiste Laura. Anúncios publicitários também. Essas foram decisões de estratégia e vêm desde a criação do projeto. São necessárias para assegurar a independência e a credibilidade dele. “Na Argentina, o parecer nem sempre é a mesma coisa que o ser. Nos esforçamos para que as pessoas confiem que não dependemos de ninguém. Nossa forma de financiamento é única na Argentina e, pelo que sei, também na América Latina”, diz a diretora executiva.

O candidato à presidência argentina, Mauricio Macri - Crédito: Reprodução

Não é exagero dizer que o trabalho realizado pelo El Chequeado nos últimos cinco anos abalou o jornalismo tradicional dentro e fora da Argentina. Laura conta que os ganhos positivos são muitos. Veí-culos que antes não faziam a verificação do discurso começaram a fazê-lo. Além do mais, iniciativas parecidas surgiram na América Latina.

No Brasil, Laura é madrinha e conselheira do Truco, projeto de fact-checking da Pública, agência de jornalismo investigativo, que cobre o Congresso e períodos eleitorais. Ainda no Brasil, existem o Preto no Branco, do jornal O Globo, que faz fact-checking o ano todo e tem parceria com o site argentino, e o recém-criado e independente Aos Fatos, que além da checagem se dedica a reportagens. Na Colômbia, há o Detector de Mentiras, do site La Silla Vacía. No Uruguai, o site UYCheck e o jornal impresso El Observador também fazem fact-checking. Em El Salvador existe o Politígrafo do jornal digital El Faro. No México, El Sabueso Verificador, do jornal Animal Político, e, no Peru, Ojo Biónico, do site Ojo Público.

Balança dos fatos

No entanto, nenhum deles tem ainda a força transformadora do argentino. “O El Chequeado conseguiu uma influência política muito grande, ele força o governo a responder, a se explicar”, diz a jornalista brasileira Natalia Viana, uma das criadoras da Pública. Sobre o site, ela complementa, “Virou sinônimo de verdade. Alguma declaração ou notícia está sendo questionada? Acesse o El Chequeado. É assim que acontece. Laura conseguiu fazer do site uma espécie de balança para os fatos”.

Jorge Capitanich, que foi chefe de gabinete do governo argentino - Crédito: Reprodução

Isadora Camargo, mestra em jornalismo digital pela USP, afirma que o fact-checking acabou se tornando um modelo editorial. “Checagem e apuração são pontos básicos de um jornalismo de qualidade, mas são pontos que não vemos mais no jornalismo tradicional de massas. E não vemos porque o modelo de negócio está em crise. Não é porque o papel está em crise ou o digital acabou com o papel. Todas essas plataformas podem conviver. Fact-checking é inovador porque consegue ser disruptivo. Mais que um novo jornalismo, é uma nova audiência, que procura informação segmentada e de profundidade. Uma audiência que não suporta mais ser enganada.”
Isadora ainda lembra que em tempos de crise essas iniciativas oferecem uma receita de sucesso calcada na qualidade da audiência alcançada, e não na quantidade. “Tem muito conteúdo sendo vendido como jornalismo de sucesso, que na verdade deve ser chamado entretenimento”, completa.

Nesses cinco anos, El Chequeado conquistou sete prêmios, cinco deles internacionais. O mais recente, o Prêmio Gabriel García Márquez del Nuevo Periodismo 2015, na categoria Inovação. “A verificação do discurso público é uma contribuição notável, especialmente em uma sociedade em que a polarização social e política deteriorou a qualidade da informação que alimenta o debate público. O projeto ganhou o prêmio pela sólida e equilibrada receita de bom jornalismo e projeto colaborativo que promove a liberdade e a verdade”, lê-se no site do Prêmio.

A equipe do El Chequeado na redação em Buenos Aires - Crédito: Reprodução
 

Pinóquios brasileiros

Casos de fact-checking dos principais projetos nacionais: Pública, Preto no Branco e Aos Fatos

Truco no Congresso (Pública)

Deputado Marcos Rogério (PDT-RO)
21 de outubro de 2015

[A obrigação dos serviços de saúde de encaminhar vítimas de violência sexual à delegacia] Protege as provas e busca punir os agressores”. BLEFE

A verdade revelada pelo jornalista Étore Medeiros: “A frase esconde questões delicadas. Por mais que a vítima de violência sexual possa desejar a imediata punição do agressor, em alguns casos o registro do B.O. pode ser traumatizante. A legislação sobre o tema, de 2013, recomenda que os profissionais de saúde apenas facilitem o registro policial, mas não os obriga a encaminhar a vítima à delegacia”.

Preto no Branco (O Globo)

Presidente Dilma Rousseff 
1o de março de 2015

“Estamos implantando em todas as 27 capitais do país uma Casa da Mulher Brasileira”. AINDA É CEDO PARA DIZER

A verdade revelada pelo jornalista Rafael Kapa: “O projeto Casa da Mulher Brasileira, que prevê apoio, assistência e proteção às vítimas de violência, possui acordo com 26 capitais. A única que não faz parte da iniciativa é Recife. Além disso, até hoje, só uma Casa da Mulher Brasileira foi inaugurada: no Mato Grosso do Sul.”

Aos Fatos 

Procurador-geral da República, Rodrigo Janot
19 de agosto de 2015

“Não há dúvida quanto ao vício na maconha. 90% das pessoas expostas a ela se tornam viciadas. (…) O álcool pode, sim, vir a criar dependência química, mas o que causa a dependência química do álcool é o abuso.” FALSO

A verdade revelada pela equipe Aos Fatos: “Estudos apontam que há dúvida quanto às afirmações do procurador. Uma das mais respeitadas resenhas sobre o tema traz números completamente diferentes. O professor Wayne Hall, da King’s College, no Reino Unido, mostrou no ano passado que aproximadamente 9% das pessoas que já usaram maconha se tornaram dependentes, contra 32% para a nicotina, 23% para a heroína e 15% para o álcool’”.

 
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