É fome, doutora!
Comer direito foi ficando cada vez mais difícil, seja pela falta de tempo e/ou dinheiro para as pessoas prepararem refeições saudáveis, seja pelo apelo cada vez maior do junk-food
...Exclamou a cozinheira Corina ,com aquele seu sotaque baiano meio debochado, ao ver minha filhotinha de 2 meses urrando no meu peito, de onde provavelmente não saía leite suficiente... “A menina tá cum fômi, dôtora. Dê a ela leite com maizena que ela para de chorar rapidinho! Eu fiz isso com a minha filha, e ela não deu trabalho nenhum quando era bebê!”.
Dali a pouco volta Corina, toda orgulhosa, com uma foto de sua filha com 6 meses de idade: praticamente um Buda de tão gorda... É assim que a criança se inicia na obesidade, doença que se tornou epidemia mundial. Quando eu era menina, nos anos 1970, meio cheinha, minha mãe trabalhava com alfabetização de adultos nas então favelas (hoje comunidades) do Rio de Janeiro. Às vezes ela me levava junto, e quando me viam, suas alunas exclamavam maravilhadas: “Nossa, dona Regina, que beleza, como ela é forte!!”. Eu ficava mortificada com aquilo que era o máximo de elogio para elas. Pois ironicamente, a desnutrição de seus filhos foi ao longo dos anos dando lugar à obesidade...
Comer direito foi ficando cada vez mais difícil, seja pela falta de tempo e/ou dinheiro para as pessoas prepararem refeições saudáveis, seja pelo apelo cada vez maior do junk-food, que como indústria bem organizada que é, nos bombardeia constantemente com tentações doces e gordas.
Este tema é tratado brilhantemente pelo documentário “Fed Up”, do mesmo diretor do “Verdade Inconveniente”, filme do Al Gore sobre aquecimento global. Primeiro, o filme nos dá a dimensão da epidemia e de suas consequências, como crianças de 10 anos com hipertensão e diabetes. Em seguida, ele nos conta a terrível e fascinante história de como chegamos neste ponto. E tudo começa com a indústria do açúcar se revoltando com um documento da OMS limitando a quantidade de açúcar que uma pessoa deveria comer por dia. O lobby dos açucareiros é tal que a OMS aumenta essa quantidade no documento final, e as embalagens de produtos passam a omitir o percentual de açúcar que o produto representa da dieta (podem checar – em vez de um número, no percentual de açúcar eles colocam um asterisco até hoje...).
Daí, o presidente Ronald Reagan resolve economizar nas merendas escolares, desativando as cozinhas das escolas americanas, que passam então a servir comida industrializada para as crianças – e assim, Coca-Cola, MacDonald´s, Pizza Hut e CIA invadem as escolas, deitando e rolando em vendas para o governo. E é assim até hoje...
Aí surge Michelle Obama, que resolve enfrentar a epidemia de obesidade nos EUA, promovendo boa alimentação e exercícios entre a criançada. A indústria alimentícia se junta à primeira dama para ajudar nesse combate – e aos poucos, a campanha esquece da parte da alimentação saudável e passa a focar exclusivamente em exercício. Ganha até o nome marqueteiro “Let´s move!”! E assim, seguimos engordando... Perverso, não? Obesidade não é falta de vergonha na cara. Açúcar vicia (ratos de laboratório) mais do que cocaína, só que esta é uma droga legal e com uma indústria fortíssima por trás, como foi um dia a indústria do tabaco. O filme lembra que um dia Fred Flinston e Barney eram garotos propaganda de cigarro na TV – se isso te arrepia de horror, que tal os personagens mais fofos dos desenhos animados que hoje são usados em propaganda de junk food? Um dia, espero que em breve, nos envergonharemos disso.
Assistam o filme!! Apesar das informações massacrantes, passadas enquanto acompanhamos a vida de quatro crianças tentando emagrecer, o filme termina com uma mensagem tipo “Yes, you can!”, listando uma série de ações relativamente simples que podemos tomar como indivíduos e como sociedade para virar esse jogo. E ao meu ver, a primeira é reconhecer a degeneração da grande indústria alimentícia, que em vez de nos nutrir, passou a nos envenenar.