Capítulo 7: Sem nenhuma dúvida hoje é sábado

Um relacionamento fracassa por falar demais? Por ouvir de menos? Acompanhe mais um capítulo de "Otávio e Marina, uma história de desamor na quarentena"

por Milly Lacombe em

Perdeu os primeiros capítulos desta história? Leia aqui.

Quarentena, dia 11

Marina acordou com os acordes de Quem Te Viu, Quem Te Vê e demorou a acreditar no que escutava. Otávio sabia que aquela era uma de suas músicas prediletas, que ela adorava o jeito como ele tocava e cantava qualquer coisa do Chico. Por que ele estava tocando aquela música logo cedo? Pegou o celular e viu que eram quase 11 da manhã. Lembrou que na noite anterior tinha metido meio Frontal na boca e engolido com uma dose de uísque. Sentia seu corpo pesar quatro toneladas e uma vontade insuportável de seguir deitada. Qual dia era aquele? Quarta? Quinta? Teria perdido alguma reunião? Fez uma força brutal para sair da cama e entrar no banho. Pensou em mandar Otávio parar com a música, mas decidiu que faria isso quando saísse do banho. Deixou a porta aberta enquanto escutava a voz dele cantando:

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua

Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer

Quando o samba começava, você era a mais brilhante
E se a gente se cansava, você só seguia adiante
Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado
Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado

Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer

O meu samba se marcava na cadência dos seus passos
O meu sono se embalava no carinho…

– Bom dia, Marina – disse Otávio vendo Marina abrir a porta do quarto. Ele estava sentado no sofá, de frente para a janela da sala, com uma xícara de café apoiada na mesinha ao lado

– Por que você me acordou?

– Porque ontem você foi para a cama às nove horas. Nunca te vi dormir assim, nem mesmo num sábado. Achei que se você ainda estivesse respirando ia gostar de acordar com Chico

– Com Chico do meu lado na cama eu teria adorado. Essa garrafa aqui é café? – ela perguntou, vendo a garrafa térmica na mesa da sala

– É café e essa xícara aí tá limpa. Você não me parece muito bem. Hoje nem Chico na cama com você ia ajudar. O que você tem?

– Posso até contar, mas não sei se você entenderia porque é uma emoção que você não saberia avaliar – ela disse, se servindo de café e indo sentar na Charles Eames que ficava perto da janela e quase em frente ao sofá em que ele estava

– Tenta, Marina

– Chama preocupação

– Ah, claro que conheço. Mais a palavra do que a emoção. Vem de pré-ocupação, que quer dizer se ocupar antes da hora. Não acho muito saudável. O grande barato é se ocupar na hora certa e nem um minuto antes

– Você tá sabendo o que tá acontecendo no mundo, né?

– Vagamente, mas se me preocupar for ajudar a humanidade a passar por isso, por favor, joga noticiário em mim que eu quero colaborar

– Que dia é hoje?

– Sábado

– Sábado?

– Sem nenhuma dúvida hoje é sábado. O que tá acontecendo com você?

– Otávio, pelo amor de Deus. Abre um jornal

– Marina, eu sei o que tá acontecendo com o mundo. É realmente uma tragédia. Mas o que eu posso fazer? Me acabar em suco gástrico? Ficar 15 horas vendo notícias medonhas e outras nove tentando dormir sem sucesso?

– Mostrar alguma empatia ajudaria

– Ajudaria quem?

– As pessoas que estão sofrendo

– A: Como? B: Alguma vez elas deixaram de sofrer?

– Como assim, meu Deus?

– Marina, as pessoas sofrem o tempo todo. O que tá acontecendo agora é que tá na cara de todo mundo, não dá mais pra fingir que não viu. O jeito que muitos de nós sempre viveram, com medo, doenças, racionamento, isolamento, com a morte batendo na porta, hospitais lotados e sem condições, tudo isso alcançou um número de pessoas inédito, ricos inclusive. É uma tragédia sim. Mas que sirva para que a gente mude o jeito como a gente vive e explora esse planeta. Mas me diz por favor como a minha preocupação pode ajudar a humanidade a passar por isso

– O mundo acabar não te causa aflição?

– Outros mundos já acabaram antes. Não é uma novidade exatamente, né?

– Que mundos, Otávio?

– Pra citar só um mundo: o dos índios que viviam aqui quando Cabral chegou

– Ah, pelo amor de Deus. Meteu índio na conversa! Eu não sei da onde você…

– Tô errado?

– Tá errado, sim. Tá errado porque mesmo se estiver certo o fim de um mundo anterior não pode te acalmar para o fim desse que a gente conhece hoje e que…

– E esse mundo de hoje é bom?

– Se você parar de me interromper eu posso tentar concluir um pensamento. Puta porre essa autorização que vocês se dão para interromper a gente

– Vocês? Tá generalizando, Marina? Não era você que era contra generalização?

– Não é generalização quando a gente tá falando de uma estrutura de poder, Otávio. O discurso de uma mulher é interrompido sem a menor cerimônia até pelo mais desconstruído dos machos. Como se a primazia da fala fosse de vocês, como se as coisas que a gente diz tivessem menor importância, como se fosse um fardo ter que escutar o que a gente pensa. Quem escuta, escuta por obrigação, em nome do bom-mocismo, de uns créditos e de, quem sabe, uma foda mais tarde.

– Sério? Pra cima de mim? Eu que sempre adorei te escutar

– Me escutar falando de você, Otávio. Mas me escutar falando do mundo, da vida, de economia, de política, da agência, do meu trabalho, do caralho a quatro que não envolva você ou o que eu vou fazer para o jantar nunca te emocionou. Vamos encarar algumas verdades ou seguir fugindo?

– Marina, é mais fácil nosso relacionamento ter fracassado porque a gente nunca foi capaz de se dar apelidos fofos do que por eu não ter te escutado. Você fala para os caralhos. Fala pelos cotovelos. Tem opinião sobre tudo e sobre todos. Se falasse menos eu talvez escutasse mais. E vamos combinar que escutar as coisas que envolvem o seu trabalho não é pra qualquer um. Propaganda? Publicidade? O mundo se devorando e você preocupada em vender mais coisas para mais gente?

– Você sabe perfeitamente que a agência não é só isso. Se não sabe eu realmente não faço ideia de quem é esse cara que mora na minha casa e me vê trabalhar há anos. E sabe qual é a régua que tu tá usando para dizer que eu falo muito? Tu não tá comparando com o que falam os homens, tu tá comparando com o silenciamento de séculos sobre a voz de uma mulher. Por isso é só a gente falar mais do que 30 segundos seguidos que já parece muito. Ainda mais se for para manifestar opinião sobre coisas que, pensando bem, a gente nem deveria opinar. Porque se não fosse isso você perceberia como o Marcelo fala sem parar e sobre como ele tem uma opinião definitiva sobre tudo, desde a operação da Bovespa naquela dia até a escalação do ataque do Vasco, passando por performance de carros, pela extinção do tamanduá-bandeira e pelos motivos do aquecimento global não serem exatamente o que os cientistas alegam. Mas eu nunca escutei você dizendo que o Marcelo é muito opiniúdo ou que ele fala demais. Nunca!

– Não deu nem meio-dia e a gente já quer se matar, né?

– Tu não queria palpitação?

– De outro tipo, não desse

– É, querido. É o que temos para hoje. Vou ali comer alguma coisa. Depois vou voltar pra cama e com sorte dormir um pouco mais. Aproveita aí esses momentos em que farei o que você tanto aprecia: não falar

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

Arquivado em: Tpm / Otávio e Marina / coronavírus / Amor