Capítulo 16: Como você lidaria com uma relação aberta?
Qual é a estratégia para não perder alguém? Isso existe? Otávio e Marina continuam presos em sua própria história na quarentena narrada por Milly Lacombe. Acompanhe na Tpm
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Quarentena, dia 26
– Alguma hora você vai voltar a falar comigo?
– Algum dia talvez
– Marina, vamos falar sobre o que tá machucando a gente?
– O que tá me machucando é estar presa nesse apartamento com você sem poder sair para a rua, ir a um bar, ver amigas, desabafar, contar pra geral a verdade sobre quem você é
– Tá. Mas é o que a gente tem. A gente tá preso aqui. Só resta falar um com o outro e ter coragem de dizer verdades
– Não. A gente pode não falar. Pode silenciar
– Silenciar trouxe a gente aqui
– Eu gosto do silêncio. Podemos não falar?
– Não, Marina. A gente tem que falar. Vamos encarar nosso fim se assim tiver que ser. Se olhar e dizer o que a gente pensa. Uma última vez. Em nome do que a gente viveu
– Você tem alguma ideia de como tô me sentindo?
– Tenho, Marina. Eu já fui traído. Tem quem não tenha sido?
– Eu, até conhecer você
– Marina, você não sabia que tinha sido
– Como você pode saber disso, Otávio? Ah, sim, claro, porque todo homem trai
– As pessoas traem. Estatisticamente falando
– A gente não ia cair nessa vala, lembra? A gente tinha um pacto. A gente achava que era diferente
– Tá, mas a gente caiu
– Você caiu! Eu não cai porra nenhuma!
– Você nunca se interessou por outra pessoa enquanto estava comigo?
– Não! Nunca!
– Tá , Marina. Tá bom então. Vou fingir que não estava aqui quando você passou semanas, meses, eu acho, metendo o Lauro em todos os assuntos
– Que Lauro? Tá maluco?
– Que Lauro? Que Lauro? Bom, se eu tinha alguma dúvida não tenho mais
– O Lauro amigo da Joana?
– Voilà
– Isso, precisamos de uma segunda língua porque uma não está bastando pra gente não se entender
– Eu não entendo uma frase com duas negativas, você sabe muito bem disso. E é esse Lauro aí mesmo: o que dirigiu aquele filme que você amou, que achou o melhor filme brasileiro de todos os tempos. O Lauro que mora em Los Angeles e que você diz que é conhecido em Hollywood como a maior revelação do cinema brasileiro desde Glauber blablablá. Esse Lauro
– O que tem o Lauro?
– Você nunca quis dar para o Lauro?
– Dar? Eu não posso ter querido comer o Lauro?
– Dar, comer… Fuder, Marina. Fuder o Lauro. Dar de quatro, comer o cu dele, gozar com ele. Tá mais claro assim?
– Super
– E?
– E o que?
– Caralho! Para de me fazer de imbecil
– E se eu tivesse querido? Eu não dei, não comi, não fudi. Não tá bom? Respeitei a gente. Fui leal
– Tem diferença? Tô fazendo uma pergunta honesta. Tem? Ser leal não seria falar pra mim o que você estava sentindo?
– Tem! Óbvio que tem. Eu senti e passou. Fiz passar porque te amava. E sabe qual é a diferença? Você não pode me imaginar fudendo o Lauro porque isso nunca aconteceu. Não vai ser torturado por essa imagem que tá na minha cabeça me dilacerando
– Você não acha que o debate é maior do que isso, Marina? Uma imagem? Será que a gente não pode conversar sobre sentir tesão por outras pessoas?
– Pode conversar, sim. Era o que a gente se propôs a fazer. Mas a gente não conversou. Você foi lá e me traiu. Não teve conversa nenhuma
– Eu errei, Marina. Eu fui um merda. Mas a gente tá conversando e a gente tá vendo que você se sentiu atraída por outra pessoa e também não me falou. E a gente tá falando sobre isso agora
– Agora que acabou?
– Quem disse que acabou? A gente passou momentos ótimos aqui. A gente se reviu. A gente riu. Como a gente pode saber se acabou?
– Como a gente pode saber que não acabou?
– Eu não sei, Marina. Não sei o que fazer a não ser conversar sobre isso. A gente nunca falou sobre a possibilidade de abrir a relação, por exemplo. Tanta gente hoje vive relações diferentes…
– Do seu lado ela foi aberta, né? Um clássico da masculinidade. Relações são abertas há séculos. Para os homens. Quando uma mulher abre ela tem a chance de acabar morta, né? Morre uma a cada sete horas, sabia?
– Claro que sabia. Você repete isso há anos. Eu tô ligado nos números do feminicídio
– Então me diz como seria pra você saber que eu fiquei com o Lauro
– Você ficou?
– Quem sabe?
– Ficou ou não?
– Digamos que sim
– Seria uma merda. Seria foda. Seria horroroso, tá? Horroroso. Mas ficou ou não, caralho?
– Não! Não fiquei. Mas quero saber como você lidaria com uma relação aberta se você não consegue sequer escutar eu contar sobre como transava com outros caras
– Como a gente sabe antes de tentar? Eu não sei. Talvez eu odeie. Talvez eu me arrependa. Eu não sei. O que eu sei é que não queria te perder sem tentar
– Não queria me perder? Você me trai, diz que não me ama mais, avisa que vai passar um tempo fora… Isso é você tentando não me perder? Que estratégia maravilhosa para não me perder. É tipo não querer engordar comendo um bolo inteiro por dia
– Não tem estratégia. Isso sou eu desesperado. Eu sem saber o que fazer. Eu sem saber o que quero, quem eu sou. Isso sou eu fudido, eu me sentindo sozinho dentro de um relacionamento. Mas pelo menos agora eu tô dizendo o que sinto. E tô dizendo que não estava bom como estava. Ou pra você tava ótimo?
– O que é ótimo? A gente se dava bem, a gente conversava, a gente viajava junto. Depois de sete anos as coisas mudam
– A gente só transava mecanicamente, você passava cada dia mais tempo no trabalho, a gente não se interessava mais pelas coisas do outro. A gente devia se contentar com isso?
– São fases, Otávio
– Talvez, Marina. Mas a gente não pode sentar e tentar entender?
– Pode! Claro que pode. Mas a gente só tá aqui tentando se entender porque acabou confinado por causa de uma pandemia. Não fosse essa situação bizarra você já estaria na casa do Marcelo saindo com a Julia
– Marina, Julia e eu hoje somos amigos que trabalham juntos eventualmente. Eu não tô com ela e ela não tá comigo. Mas você tem razão. Eu queria sair daqui, sim. Eu estava sufocado. Eu não me sentia amado, muito menos desejado. Eu não sabia se amava e nem mais se desejava. Então eu ia escapar, correr feito um bicho apavorado. Mas agora a gente tá aqui
– Encontrando a solução para as separações: quando um casal quiser se separar, tranca ele numa mesma casa por 30 dias e quem sabe eles se reencontrem
– Quem sabe?
– Nesse cenário, mais fácil é a mulher acabar morta, meu amor
– Uma a cada sete horas, eu sei. Acabamos de falar disso
– Talvez a gente tenha diferenças inegociáveis, Otávio. Como o desejo de ter um filho
– Eu não tenho o desejo de ter um filho. Meu desejo era criar um ser humano com você. É muito diferente. Eu não queria qualquer barriga, eu queria a sua barriga. Eu queria ver como seria alguém que fosse metade você e metade eu. Era só isso
– Acho engraçado o “só” isso. É “só” mesmo pra quem precisa apenas gozar dentro e depois pode ter uma crise de meia-idade e se mandar. A sua barriga não cresce, teu intestino não vai parar nas costas, tua bexiga não é esmagada, teu estômago não vai pro esôfago, não é pelo teu lindo pinto que passa a cabeça de um outro ser humano
– Ah, tá bom. Passar um ser humano pelo pinto é uma imagem super razoável
– Por onde você acha que passa a criança quando ela nasce, Otávio? Para e pensa um pouco no tamanho do canal que uma criança atravessa até ver a tal da luz. Meu Deus do céu. Quanta ignorância. E não me interrompe porque não acabei! Tem outra coisa: o mundo não critica o pai que abandona filho, então pode fazer a porra da criança e depois que nascer você decide se quer ou não. Jorra teu esperma vagina adentro e depois a gente vê como fica. Mas a mulher que ousa dizer que não quer aquele feto dentro dela, nossa, que megera desnaturada filha do demo
– Você conhece alguma mãe que não ama o filho a despeito de todas essas coisas?
– Oi? Meu deus, Otávio. Vamos falar de padecer no paraíso, é isso? Esse ditado que carrega tantas opressões, tanta violência… Quem quer ir pro paraíso padecer, meu Deus? Se eu chegar na porra do paraíso o que quero é gozar, não tô indo até lá pra padecer, pelo amor de Deus. Do que se trata essa frase?
– Disso: dos sacrifícios que ser pai e ser mãe exigem
– Pra começar: não vem comparar sacrifício da porra do pai e da mãe nessa sociedade machista e patriarcal. Pra terminar, que já tô irritada, você sabe quanto é difícil pra gente dizer por aí que ter filho nem era tudo isso? Claro que as mães amam seus filhos. Mas elas são obrigadas a amar? E se não amassem? Ser mãe é tipo compulsório? É um dever? E se, mesmo com a criança ali na frente dela, bater dúvidas sobre se foi certo ter tido o filho? Ela pode falar sobre essas coisas sem ser apedrejada? Não pode! Se falar vira a antimulher. Ela precisa dizer que a maternidade é tudo de bom apesar de muito difícil. É o único discurso aceitável socialmente. Quem disse? Amor de mãe é amor. E a gente, o ser humano, ama tudo torto. A gente ama errando, a gente ama com dúvidas, a gente ama imperfeitamente. Olha o peso que esse amor dito incomparável tem sobre uma mãe! Não se debate nada a respeito disso porque, né, ser mãe é sagrado. As dores das mães são privadas e assim devem continuar. Mas deixa eu te contar uma coisa: a maternidade é apenas uma parte do processo de ser mulher, não é a nossa identidade, ainda que seja tratada assim. E a maternidade não é um trabalho. Trabalho é trocar fralda, acordar no meio da noite, dar comida… Trabalho são as coisas associadas à maternidade que tanto a mãe quanto o pai podem fazer. Mulher não nasce sabendo fazer essas coisas. A gente é ensinada. Ou pior: condicionada desde pequena porque ganha a bonequinha, a mamadeirazinha da porra da bonequinha, as roupinhas da porra da bonequinha, o peniquinho… E vocês ganham bolas e carrinhos. Caralho! Colocar um ser humano no mundo é o ato de maior coragem de uma mulher, mas não é uma obrigação. Criar um ser humano é missão da comunidade e não de uma pessoa apenas. Você como marxista devia ser o primeiro a gritar essas coisas. Criar um ser humano não é um trabalho que deveria ser do pai e da mãe apenas, mesmo que houvesse no mundo um casal capaz de compartilhar igualmente esse trabalho. É um trabalho para a comunidade. É pra ter creche espalhada por todos os cantos. E creche gratuita, paga pela comunidade. Essa romantização do amor de mãe só fode a mulher. Fode profundamente nossas cabeças. Fode nosso direito de sentir, de ser, de pertencer. Poder dizer que muitas vezes sentimos ao mesmo tempo raiva e ternura por aquelas pequenas criaturas devia ser encorajado. Como a gente pode começar a construir uma relação real de afeto e amor com os filhos quando eles vêm com um selo de “era apenas sua obrigação” colado neles? Sabe qual é o maior medo dos homens, Otávio? Maior do que ser ridicularizado por uma mulher, ou do que ser ofuscado por uma mulher? É que a mulher tenha a palavra final sobre como seu próprio corpo vai ser usado. Pânico vocês têm.
– Eu não tenho, Marina
– Para de pessoalizar esse debate sempre! Você não tá à parte disso, caralho. Dizer “eu não tenho” é como dizer “nem todo homem é machista”. É esse eterno chororô por atenção. Quando vocês dizem isso vocês estão apenas querendo jogar a luz do debate sobre vocês outra vez. É um pranto ridículo de “olha pra mim, olha pra mim!” Não é de vocês que estamos falando. Não é sobre vocês esse papo. Para de tentar trazer sempre pra você. Pode trabalhar essa desconstrução quanto quiser, você sempre vai ser aquele que se beneficia dessa estrutura: homem, branco, hétero, cisgênero. Você pode sair na rua vestido em cartazes de “sou um homem feminista”, pode se desconstruir até o ultimo pelo do seu saco, pode entender e respirar o feminismo até sua última célula, pode até tentar de fato não ser machista, e ainda assim você vai estar tirando proveito dessa estrutura machista. Vai se beneficiar dela mesmo se não quiser. A estrutura tá aí, a gente vive nela, e ela te beneficia apenas porque você é quem você é, por mais legal que você seja. Você consegue entender isso? Então não se exclui dela, pelo amor de Deus. Do mesmo jeito que a mulher pode ser antifeminista quanto quiser que ela sempre será uma vítima da estrutura machista, ou uma pessoa branca ser sinceramente antirracista e fazer tudo direito que ainda assim ela vai se beneficiar da estrutura racista. Nenhum dos meus fracassos se deve à cor da minha pele, mas quase todos os meus sucessos, se não todos, estão ligados sim à cor da minha pele. Será que você entende essas coisas? Eu não sei dizer, não sei mesmo
– Eu não sei por que você precisa sempre ficar tão brava quando esse assunto surge, juro
– Não sabe, né? Não sabe porque não quer saber. Porque nem teu marxismo de merda te faz entender isso. Ninguém quer falar da responsabilidade de jogar uma criança no meio dessa sociedade colapsada que diz que para se manter vivo é preciso ter um trabalho assalariado, mas que é incapaz de oferecer trabalho assalariado para todo mundo. Uma sociedade que não consegue oferecer educação, saúde, condições decentes de vida a todas as mães, que obriga a mulher a trabalhar e foda-se a criança que ela colocou no mundo. Abortar era matar uma vida, mas agora que nasceu e tá aí andando e falando, que se foda. Dizem pra gente: tenham filhos porque só a maternidade vai fazer de você uma verdadeira mulher. E em seguida não são capazes de dar pra essa mulher, que de um jeito ou de outro aceitou parir mais uma alma nesse mundo insano, nenhuma condição de ela criar essa criança em paz, sem se sentir culpada, ou endividada, ou fracassada, ou esgotada. Ela tem que trabalhar e tem que cuidar da criança. Tudo isso ao mesmo tempo. E brilhantemente. Afinal, é uma jornada de sacrifícios e anulações a maternidade. Ah, vão a merda. E não me venha com “eu ia ser um bom pai” porque nem o melhor e mais interessado pai do mundo compartilha com a mulher o cuidado da criança de forma igualitária. Tem sempre o ransinho do “estou fazendo um monte de coisa pra te ajudar com essa criança e você nem reconhece”. Reconhecer uma obrigação que é também do pai, e em proporções iguais? Mas nããão! Basta o paizão trocar uma fralda e postar no Instagram que vira imediatamente o melhor e mais fofo pai do mundo. Basta brincar de ciranda com a criança, jogar a imagem no Face e sair pra galera. Depois devolve a criança pro colo da mãe, vai dar uma corrida na praia e tá tudo certo. Já a mãe, coitada, se chegar cinco minutos atrasada na festa de aniversário de três anos da filha é uma péssima mãe. Onde estava essa mulher que não estava com a filha no dia do aniversário? O pai que teve que trazer a criança pra festa? Que horror. Onde estava a mãe? Trabalhando, talvez. Bebendo com as amigas, por que não? Ah, não pode. O pai pode. Mas uma mãe não pode. Posso até imaginar como os casais separados estão nessa quarentena e o que tem de pai se fazendo de gripadinho pra não ficar com filho. “Não traz o Murilinho pra mim hoje não porque acordei tossindo e você sabe como minha saúde é frágil. Melhor o Murilinho que tem o nome do papai ficar com você direto nessa fase. Me devolve ele quando tudo passar”. Que marxista de merda é você, Otávio, pra querer colocar um filho nesse mundo? Era o que que você queria? Que a gente fizesse um ser humano metade eu, metade você? Por ego? Agora você imagina se esse ser humano hipotético pegasse justamente nossas piores metades. Quem ia saber lidar com ele?
– E se ele pegasse nossas melhores?
– E qual seria a minha melhor metade, Otávio? Será que você ainda enxerga alguma metade boa em mim?
– A sua melhor metade bebe a vida em goles largos, Marina. A sua melhor metade me mastiga com um tipo de paixão que deveria me amedrontar, mas só me excita. Sua melhor metade é capaz de passar duas horas cuidando das plantas enquanto canta baixinho alguma música que cruza com as suas ideias naquele momento e que a letra você não sabe muito bem, e nessa hora você faz um ruído que parece o de um gato ronronando e com ele segue cantando. Sua melhor metade é capaz de acordar antes do sol nascer para me fazer um café porque sabe que eu tenho que sair muito cedo de casa e que ia sair sem café porque sou preguiçoso. Sua melhor metade prova com enorme paciência uma dúzia de roupas antes de escolher aquela com a qual você vai sair, que normalmente é a primeira. Sua melhor metade faz um biquinho quando tá concentrada tentando escrever alguma coisa no computador, como se uma ideia estivesse prestes a passar pelo bico. Ela dá um gole em qualquer bebida e não engole de cara, deixa a bebida na boca como quem bulina aquele líquido antes de dar passagem a ele goela abaixo. Ela fala da Raquel com uma sutileza de detalhes tão coloridos que eu sou capaz de de sentir sua irmã rindo do meu lado. Sua melhor metade, depois de passar mil cremes à noite, chega mais perto do espelho como se você fosse beijar sua própria imagem e faz um gesto com o dedo indicador enquanto estala a língua como quem se congratula pela paciência, como quem diz: "mandou bem, amiga".
– Eu faço isso?
– Todas as noites
– E como você sabe?
– Porque, de um ponto muito específico da cama, eu consigo ver sua imagem refletida no espelho quando a porta do banheiro tá entreaberta
– Vou prestar atenção nisso aí
– Quer falar da minha melhor metade?
– Não hoje. Hoje eu tô agarrada na sua pior
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz