A única grande vergonha
Ou sobre como ser resgatada pelo sobrinho de 18 anos de uma situação ''o inferno do consumidor''
Viajar sozinha tem lá suas vantagens, e a primeira delas é poder ir para o aeroporto na hora que eu bem entender, que é normalmente 5 horas antes de o voo sair. Já quando vou acompanhada de minha mulher, uma dessas almas cheias de autoestima que acredita que avião só decola depois que ela chega, é sempre um stress para que consigamos coordenar a segurança dela à minha paranoia. Mas sozinha a liberdade me invade, e foi assim que, numa segunda-feira quente de maio, saí para o aeroporto em Nova York 5 horas antes do horário marcado para que o avião decolasse rumo a São Paulo.
"Nunca vi um trânsito assim", disse o taxista, olhando pelo retrovisor e notando o meu nervoso no banco traseiro. "A que horas é seu voo?", perguntou. Se eu dissesse o horário correto não haveria motivo para stress, então menti em 2 horas. "Meu Deus", ele reagiu. "Você talvez perca o voo." Imediatamente me arrependi de mentir e deixar o taxista aflito, mas algumas mentiras são difíceis de serem desmentidas – normalmente as mais simples – e eu apenas me fiz passar por uma pessoa espiritualmente desenvolvida dizendo: "Tudo na vida tem um motivo".
Quando finalmente estacionamos no aeroporto faltava pouco mais de 3 horas para a decolagem. Entrei na fila do check-in, a qual eu tento evitar chegando muito cedo e sendo sempre a primeira, e com o cartão de embarque passei pela segurança ainda com tempo de sobra. Fui então tomar uma taça de vinho e ler meu livro; apesar do contratempo inicial tudo parecia estar sob controle. Mais ainda quando notei, já dentro do avião, que ao meu lado não havia ninguém. São sempre momentos tensos esses que ficam entre não ter ninguém ao seu lado e as portas ainda estarem abertas porque a regra diz que aquele passageiro atrasado – sempre tem um – vai chegar correndo e, esbaforido, sentar no lugar onde você sonhou em colocar os pés. Então, quando o comissário avisou que as portas tinham sido fechadas, espalhei os livros e a mochila no assento vazio e me esparramei. "Decolagem autorizada", disse a voz do sistema de som. Sorri internamente e voltei a ler. E foi nesta hora que o destino quis mudar seu curso.
A jornada
Entendi que alguma coisa estava errada quando as luzes do avião apagaram e acenderam algumas vezes. O avião ficou parado na cabeceira da pista por muitos minutos até que o comandante avisou que se tratava de uma pane elétrica e que voltaríamos ao portão para que os mecânicos pudessem resolver o problema. Nunca é animador saber que mecânicos trabalharão na aeronave minutos antes de ela decolar, mas tentei pensar no melhor. Uma hora e meia depois, e um filme quase todo visto, o comandante anunciou que o problema estava resolvido, que uma caixa de alguma coisa tinha sido trocada na turbina direita – e eu chamaria isso de "muita informação", porque de verdade preferiria não ter sabido – e estávamos prontos para seguir. Voltamos a taxiar e as luzes se apagaram novamente. Entendi que teria sido mesmo muita sorte fazer um voo de 9 horas sem ninguém ao meu lado. "Vamos voltar ao portão", avisou o comandante.
Outra vez, os mecânicos foram chamados e agora a ideia de seguir viagem não era assim tão animadora. Já estávamos dentro do avião havia mais de 3 horas quando uma voz avisou que aquela aeronave não iria a lugar nenhum. Fomos convidados a desembarcar e entrar numa fila bastante grande para pegar um papel que nos daria direito a hotel. O voo, disseram, sairia no dia seguinte às 10 da manhã. Já era uma da manhã e a situação toda ganhava tons de "o inferno do consumidor", como definiu David Foster Wallace.
Tentando ser a pessoa que o taxista achou que eu era, resolvi não reclamar e voltar para casa, mesmo sabendo que dormiria apenas 2 horas. Cheguei às 3 da madrugada, me joguei na cama e, às 6, voltei para o aeroporto para descobrir que o voo sairia ao meio-dia. Pelo chão, vi os passageiros e saquei que ninguém tinha ido para hotel nenhum: não havia hotel disponível, disse a companhia. Havia pessoas de mais de 70 anos deitadas no chão com a aparência muito cansada e a imagem me entristeceu e irritou.
Finalmente às 11h30 fomos autorizados a embarcar naquela que, nos garantiam, era uma outra aeronave. Claro que ao meu lado agora havia uma pessoa, mas esse era o menor dos problemas. Com todos a bordo pensei que finalmente íamos, mas não fomos: estávamos sentados, comportados e as portas ainda abertas. Imaginei que esperávamos algum folgado da primeira classe e comecei a hiperventilar de raiva. Era uma da tarde quando resolvi mandar minha versão budista para as nuvens e deixei que a siciliana que me habita viesse à tona. Furiosa, levantei, fui até a porta, onde havia dois comissários, e disse que aquilo tinha virado uma palhaçada, que não aguentávamos mais e que exigíamos explicação. "Quem falta embarcar?", perguntei quase gritando. "O piloto", respondeu o comissário envergonhado. De fato era uma pessoa fundamental e era melhor que não decolássemos sem ele. "Ele já está chegando", emendou. Expliquei que "já" era uma palavra que não cabia mais e voltei para o meu assento pedindo que eles então avisassem pelo sistema de som o que estava acontecendo porque era o mínimo que merecíamos. Fazia quase 20 horas que estávamos naquele aeroporto e pensei que talvez devesse desistir de passar nove dias no Brasil. Quando o piloto finalmente entrou foi recebido com uma salva de palmas; senti um certo orgulho de ser brasileira porque só mesmo um povo como o nosso conseguiria tirar bom humor de uma situação como aquela.
Era 1 hora da manhã quando cheguei à casa de minha irmã em São Paulo, depois de mais de 34 horas de viagem. Entrei e estavam todos dormindo, mas havia um recado para que eu fosse até o quarto de Antonio a qualquer hora. Hesitei porque sabia que ele tinha que acordar às 6 para ir à faculdade, e a verdade é que eu só queria tomar um banho e deitar, mas obedeci. Coloquei a mão em sua cabeça e ele não se mexeu. Fiz um cafuné e ele continuou na mesma posição. Quando me levantei para sair ele abriu os olhos e me viu. Me puxou pelo braço, sentou na cama e me deu o abraço mais gostoso que um ser humano já recebeu na história dos seres humanos. Ainda me agasalhando em seu peito com aqueles braços enormes, me apertou mais forte e disse: "Eu te amo". Nessa hora tudo fez sentido, o cansaço desapareceu e eu fiquei feliz por não ter desistido. "O amor não é uma coisa que nós inventamos. Ele é a única coisa capaz de transcender as dimensões de tempo e espaço", disse o personagem de Anne Hathaway no filme Interestelar para argumentar que, assim como a gravidade, o amor talvez seja uma lei da natureza. Ideia que me agrada porque é o amor, e nada além dele, que nos faz suportar a dureza da vida e insistir; e a única grande vergonha, a única irreparável vergonha, é não ser capaz de dizer "eu te amo".
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com