Lugar de mulher é nas pickups

Com dois livros na praça, a expert em música eletrônica Claudia Assef indica cinco DJs mulheres que ajudaram a levar a outro nível a cena no Brasil

por Bruna Bittencourt em

Enquanto as meninas da escola colecionavam papel de carta, Claudia Assef juntava vinis. Inclusive, tinha uma caderneta para anotar o nome pra quem emprestava um disco ou outro e não correr o risco de não tê-lo de volta. Aos 13, ela insistiu tanto, que a irmã mais velha cedeu e a levou junto na boate, pela primeira vez. Por trás das pickups do Rose Bom Bom, em São Paulo, DJ Magal recebeu um pedido num guardanapo de papel escrito pela menina: "Você anota aqui as três últimas músicas que tocou?". Ele não só listou as faixas como, de quebra, indicou onde comprar aqueles discos, do acid house ao rock inglês.

De lá pra cá, mais que DJ, Claudia se formou jornalista e mergulhou na pesquisa da música eletrônica até se tornar o nome por trás do respeitado site Music Non Stop. Em 2003, lançou Todo DJ já sambou, livro que traça a genealogia do disc-jóquei no Brasil, uma lista que passa por Marky, KL J e o próprio Magal. "Era preciso ter um livro de consulta sobre os DJ no país, ninguém sabia onde essa história começava." Na época, ela saiu perguntando aos entrevistados: "Quem é o DJ brasileiro mais antigo que você conhece?". E assim chegou a Osvaldo Pereira, que já tocava, pasme, nos anos 50. A primeira mulher, Sonia Abreu, apareceu no fim dos anos 70 [leia nosso papo com ela, no fim desta reportagem].

A jornalista e DJ Claudia Assef - Crédito: Gabriel Quintão/Divulgação

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Com a terceira edição do livro (de 2008) esgotada, Claudia encontrou um exemplar por R$ 900 em um sebo virtual, o que a levou a agitar um crowfunding neste ano e assinar a nova atualização da obra por sua própria editora (Music Non Stop).
O livro ganhou 80 páginas e um capítulo inteiro dedicado às mulheres da cena. "O que vivemos hoje é inédito: muitas DJs e produtoras de qualidade", diz a autora, que também criou o Women's Music Event, com o objetivo de aumentar o protagonismo feminino no mercado musical brasileiro. A seguir, ela lista as DJs da cena nacional que você precisa conhecer:

Andrea Gram: Pioneira na discotecagem de música eletrônica underground no Brasil, estreou na boate Columbia em 1992. "Nunca liguei pra cara feia", conta ela em Todo DJ já sambou. "Várias vezes entrava na cabine e logo juntava um bando de caras de braços cruzados na minha frente. Colocava o som mais pesado que existia, e eles ficavam passados." Claudia conta que Andrea vive na noite até hoje. "Sempre está com alguém de 20 anos na [Carlos] Capslock ou na Mamba Negra [ambas festas de música eletrônica de São Paulo]. Ela vai para a rua, é atuante. É uma DJ na essência."

Anna: Aos 14 anos, DJ Anna tocava música brasileira, axé e rock no club do pai, em Amparo (SP). Mas, antes disso, já visitava com ele a cidade para comprar discos de vinil. Mais conhecida pelo público de techno, mora há três anos em Barcelona. "Hoje ela é 'o' nome brasileiro fora do país, aquele de que os DJs vão atrás", conta Claudia. "Faz remixes de todo mundo que é legal, lança pelos selos mais bacanas, toca nos melhores festivais."

As DJs Cinara, Paula Chalup e Andrea Gram - Crédito: Divulgação

DJ Cinara: "Ela é muito técnica, faz uma mistura de hip hop com vários estilos. Foi a primeira brasileira a ir para uma final de concurso de DJ internacional, o Thre3Style, da Red Bull, no Azerbaijão. Os caras ficavam pirados por ela ser mulher", lembra Claudia, que acompanhou DJ Cinara na viagem.
Paula Chalup: DJ de techno e produtora, estreou no Hell's Club (o lendário afterhours paulistano), influenciada por Mau Mau e Andrea, e foi residente da Lov.e por vários anos nas noites de sábado, o horário nobre do extinto club que marcou a noite de SP. "Nunca senti preconceito. Ao contrário, acho que uma DJ chama mais a atenção", conta Paula em Todo DJ já sambou.
Sonia Abreu: "Acho que a primeira pergunta que fiz para ela foi: 'Você é feminista?'. E ela me respondeu: 'O que é ser feminista?'. Sonia nunca se preocupou com o fato de ser mulher, apenas foi fazendo", conta Claudia. Uma das primeiras programadoras de rádio –  um meio majoritariamente masculino – , no Brasil dos anos 60, Sonia foi, em 1977, a primeira mulher DJ a estrear em uma discoteca, a Papagaio Disco Club, de Ricardo Amaral. Nos anos 80, montou uma espécie de soundsystem dentro de um ônibus que circulava entre diferentes espaços urbanos. E até a década seguinte tocou um programa de world music na 89FM e Brasil 2000, quando o gênero ainda engatinhava. Também nos anos 90, ainda influenciada pela world music, criou um grupo com 22 músicos, a Banda do Quarto Mundo. Aos 65 anos, Sonia Abreu segue na pista: é residente aos sábados da Casa 92, em São Paulo, onde toca do pop ao jungle. Sua trajetória, repleta de pioneirismos, acaba de virar livro, Ondas tropicais - biografia da primeira DJ do Brasil (editora Matrix), escrito por Claudia e Alexandre de Melo. O lançamento, aliás, acontece hoje – embalado pela discotecagem da própria Sonia, no Club Hub, em São Paulo.

Crédito: Divulgação

Algum nome feminino te influenciou?
Não, foi tudo muito intuitivo. Desde os 3 anos, quando meu pai ouvia música, eu ficava domada, literalmente. Nunca pensei em ser DJ, queria me meter na música de alguma forma. Só não consigo realizar mais porque o sistema hoje me coloca pra fora: "O que aquela tiazona tá fazendo ali?". Quando entro na Casa 92, onde o público tem entre 18 e 25 anos, todo mundo fica olhando, apontando, tirando sarro, mas uma hora depois, quando o pau tá comendo, viro o Ursinho Blau Blau: "A senhora é demais, a melhor!". Querem fazer selfie. Toda noite é uma conquista.
Teve algo que te surpreendeu ao rever sua biografia?
Não consigo ler, choro. Fico trêmula. Quando li tudo aquilo que fiz, caiu a ficha, vieram todas as pedras no caminho, as alegrias. Tenho que ler uma página por dia, é muito forte, cara.
O que te interessa na música hoje?
Tudo o que é novo. Misturo o pop, que toca na rádio, com coisas mais modernas, alternativas –  jungle, rock... É a forma de colocar uma música diferente. Me interesso do sertanejo ao house, mas ando muito apaixonada por drum and bass. Gosto de pressão, porrada.

 

Vai lá: Lançamento de Ondas tropicais e bate-papo com Sonia Abreu, a DJ da noite, no Club Hub (av. 9 de julho, 5871, Jardins, São Paulo), a partir das 21h

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