A etiqueta dos piores momentos
Para quem sofre, a única etiqueta é a do abraço mais apertado e da escuta generosa
Tenho 32 anos e em 2010, pela primeira vez em minha vida adulta, deparei sucessivamente com a experiência da morte. Ainda criança perdi meu avô. Minha avó se foi quando eu estava na casa dos 20 anos. Acostumada a um pai lépido, não consegui dar o afeto de que meu pai frágil e triste precisava.
Assim também foi quando meu padrinho me contou que estava gravemente doente. Estávamos os dois à mesa de um restaurante, eu o escutei e continuei falando, como se o que tivesse sido dito por ele fosse banal, e não um caso de vida ou morte. No meu egoísmo, era demais lidar com a vulnerabilidade de quem, até então, havia sido, para mim, uma imagem de força.
No fim de 2009, quase réveillon, acordei com a notícia acachapante de que o ex-marido de minha tia, portanto um tio querido, sofrera um grave acidente de carro. As informações eram confusas e, a princípio, não se sabia a gravidade. Eu não era família, embora fosse. Não me senti confortável para ir ao hospital. O diagnóstico vegetativo tornou a situação ainda pior. Quis demonstrar minha solidariedade, mas não soube como. Me arrependo até hoje.
Pouco tempo depois, uma grande figura que fez parte decisiva da minha infância se foi. Fui ao enterro, chorei a perda com seus parentes, ofereci meu afeto, minha solidariedade. Pensava diariamente na dor deles, embora eu me encontrasse distante.
Então a morte levou a mãe de um grande amigo, figura de raríssimo brilho e integridade. No velório, abracei profundamente meu amigo, segurei sua mão e chorei ao lado dele aquela dor. A dor dele e a minha dor. Ritualizei não somente aquela perda, mas as inevitáveis perdas e dores futuras.
Do cemitério, levei-o para casa, onde, entre amigos, lemos trechos de livros em homenagem a ela, até tarde da noite. Nas semanas seguintes, telefonei todos os dias para saber como ele estava. Dia algum ele me atendeu, mas diariamente eu lhe deixei um recadinho afetuoso.
Simplesmente humano
O ano seguiu me convidando ao cemitério. A perda seguinte foi a de uma professora extraordinária que ensinou, a mim e a muitos, a paixão pela filosofia de Walter Benjamin. Na PUC-Rio, seus
ex-alunos homenagearam aquela grande mulher. Soltamos balões brancos ao céu, pois, nas palavras dela: “Uma aula é como um balão. Se é boa, nos leva ao céu, para além de nós mesmos, até o reino mais perfeito da liberdade”.
Aí a morte levou minha bisavó aos 106 anos – idade em que morrer transcende a tristeza, torna-se
graça. Como se não bastasse, um ataque cardíaco fulminou minha tia-avó e, finalmente, o Alzheimer matou a última avó que me restava. A essa altura, eu já era capaz de acolher a dor da minha mãe.
Dois mil e dez foi um ano estranho, que retirou de sobre a realidade seu manto de força, revelando profundamente nossa fragilidade. Um ano humano. Talvez uma preparação para a experiência íntima de morte que eu viveria em 2011, quando me separei depois de cinco lindos anos de casamento.
Na situação de quem sofre, a única etiqueta é a do abraço mais apertado, se possível, da escuta generosa, da mão estendida para a amizade.
Nesse aspecto tive muita sorte. A começar pelo amor dos meus pais. A presença vigilante de amigos como Luisa, Karla e Bel. O apartamento do Mauro. Os banhos quentes na casa da Augusta. O consultório do Benilton. O carinho de antigas pessoas que reencontrei e o afeto de novos amigos que fiz e aos quais serei eternamente grata.
Eu dedico esta coluna a uma amiga que atravessa um delicado momento de saúde, mas, tenho certeza, encontrará um bom desfecho para sua história e continuará sendo a pessoa linda e inteligente que sempre queremos por perto.
Antonia Pellegrino, 32 anos, é roteirista e escritora. Seu e-mail: a.pellegrino@terra.com.br