O homem que não sentia dor

por Fellipe Awi
Trip #222

Trip tenta entender os conflitos de Marcelo Behring, um dos maiores lutadores brasileiros de todos os tempos

Dezoito anos depois da misteriosa morte de Marcelo Behring, Trip tenta entender os conflitos de um dos maiores lutadores brasileiros de todos os tempos. Entre eles, a luta travada dentro de sua cabeça: a do poeta, boêmio e amoroso contra o pitbull que parecia estar sempre pronto para matar ou morrer

Aquele bebê gordinho, de pernas roliças, logo virou a grande atração nas reuniões de família. Como era possível ele cair no chão, bater com a cabeça ou dar uma topada e continuar correndo como se nada tivesse acontecido? Choro, então, nem pensar. O que, no início, era engraçado depois virou preocupação. O pai começou a achar que ele sofria daquela doença em que as pessoas não sentem dor, a síndrome de Riley-Day. Só quando entrou na aula de jiu-jítsu, aos 4 anos, o pequeno Marcelo deu sinais de que poderia, sim, sentir dor. Mas para isso o adversário precisava se esforçar bastante. “Levei o meu filho para gastar energia no tatame, mas, sem querer, ele machucava as outras crianças. O professor chegou a me pedir pra deixá-lo em casa por um tempo”, conta o pai, Flávio Behring, hoje um dos mestres de jiu-jítsu mais graduados do mundo.

Só que Marcelo continuou frequentando as aulas, sagrou-se campeão carioca várias vezes e até morrer, aos 30 anos, foi um dos lutadores mais temidos do Brasil. Durante anos, foi uma espécie de “controle de qualidade” de seu grande mestre Rickson Gracie. Se alguém ousava desafiar o número um da família Gracie, tinha que passar por Marcelo primeiro. Só assim o desafiante seria considerado digno de uma chance contra Rickson. “Além de lutador fantástico, o Marcelo tinha o nosso espírito guerreiro, não levava desaforo pra casa. Era como se fosse do nosso sangue”, afirma Róbson Gracie, 77 anos, hoje o primogênito da lendária família que abrasileirou o jiu-jítsu japonês e o difundiu pelo planeta. Talvez por isso Marcelo seja um personagem cultuado não só nos tatames, mas por todo mundo que gosta de histórias de valentia. Foi protagonista num tempo em que as diferenças eram resolvidas no braço.

Apesar dos 26 anos dedicados ao jiu-jítsu, a luta mais famosa da vida de Marcelo Behring foi no vale-tudo, essa modalidade que hoje atende pelo pomposo nome de MMA (artes marciais mistas, na sigla em inglês). No dia 30 de abril de 1984, o Maracanãzinho estava lotado para o primeiro desafio entre representantes do jiu-jítsu e do muay thai (boxe tailandês). Antes da história, porém, um prólogo: um ano antes, um grupo liderado por Gracies invadiu a academia Naja, no bairro do Largo do Machado, zona sul do Rio. Eles estavam em busca do lutador de muay thai Mário Dumar, que dias antes havia dado um soco em Charles Gracie, filho de Róbson, não muito longe da academia. O pau comeu dentro da Naja e o resultado da rixa foi um desafio de vale-tudo para decidir que arte marcial era a melhor. Um dos donos da Naja, Flávio Molina, queria lutar contra um Gracie, mas a família achou que ele só merecia enfrentar um discípulo – um que parecia ter o sangue deles. Marcelo bateu no adversário sem piedade. Em certo momento, o técnico de Molina jogou a toalha, num sinal de desistência, mas o árbitro da luta pegou-a no chão, enxugou o próprio suor e a arremessou para fora do ringue. Tratava-se de Hélio Vígio, ex-delegado de polícia e também um discípulo ortodoxo dos Gracies.

“Cupim de ferro”

Com a reputação de casca-grossa garantida no Rio de Janeiro, Marcelo foi dar vazão ao seu espírito inquieto fora do Brasil. Como o surf era sua segunda paixão, foi atrás das melhores ondas do planeta. Na Indonésia, impressionou os nativos quando se machucou gravemente numa barreira de corais. Suas costas ficaram em carne viva, mas ele não se queixava de dor. Foi tratado apenas com plantas da região. No Havaí, encarou os black trunks, os temidos surfistas locais, e virou amigo do bicampeão mundial de surf Tom Carroll. Na Austrália, tentou difundir o jiu-jítsu através de desafios contra adeptos de outras lutas, assim como Hélio Gracie fez no Brasil e Rorion Gracie, o criador do UFC, fez nos EUA. “Ele ficava procurando os caras mais fortões da cidade para desafiá-los. Algumas dessas lutas saíram até nos jornais de lá”, conta o pai.

Era um cara carismático, que agradava sem se esforçar. Sempre fez sucesso entre as mulheres. Namorou com beldades como Paula Burlamaqui

Quando voltou ao Brasil, no fim dos anos 80, Marcelo abriu uma academia em São Paulo e ajudou a popularizar o jiu-jítsu na capital paulista. Mas ele não se afastou dos amigos no Rio de Janeiro, onde a rivalidade entre o jiu-jítsu e outras lutas em pé estava cada vez mais acirrada. Era uma época de invasão de academias e de duelos a portas fechadas agendados pelos líderes dos dois grupos. “Para o Marcelo, a amizade era a coisa mais importante do mundo. Ele não pensava duas vezes antes de comprar a briga de um amigo”, relembra um deles, Amaury Bittetti.

Em 1991, a turma da luta livre invadiu um torneio de jiu-jítsu na Urca. O episódio poderia ter terminado em pancadaria, mas eles chegaram à conclusão de que valia mais a pena decidir tudo, de novo, num desafio de valetudo. Ali mesmo ficou decidido que Marcelo faria a luta principal da noite contra Hugo Duarte, um ex-segurança de boate conhecido como o “General da Luta Livre”. Hugo é o tal grandalhão que briga com Rickson na Praia do Pepê, num dos vídeos de luta de maior sucesso do YouTube no Brasil (http://bit.ly/14hY6LW).

Dias antes do vale-tudo no Grajaú Country Clube, que teria transmissão da TV Globo, Marcelo machucou o cotovelo. “Ele ficou arrasado”, lembra o amigo e campeão mundial de jiu-jítsu Fábio Gurgel, que naquela noite derrotou Denilson Maia. Hugo venceu por W.O. e, em cima do ringue, desafiou Marcelo mais uma vez. Durante anos, os dois se provocaram, trocaram insultos pela imprensa, mas o esperado duelo nunca aconteceu. “Chegamos a marcar uma briga em frente ao Bar Clipper, no Leblon, mas ele não apareceu. Não era nada pessoal. A gente estava apenas defendendo a nossa honra e a nossa arte marcial”, diz Hugo, hoje dono de uma academia no Flamengo.

Marcelo foi encontrado no porta-malas de um carro estacionado na Ladeira dos Tabajaras, na entrada de uma das favelas mais perigosas de Copacabana. Tinha uma bala alojada no crânio

Hugo parece mesmo falar sem raiva ou ressentimento. Marcelo era um cara carismático, que agradava sem se esforçar. Sempre fez sucesso entre as mulheres. Namorou com beldades como a atriz Paula Burlamaqui, na época conhecida como a Garota do Fantástico. Entrou de vez na família Gracie ao se casar com uma filha de Carlos, Kirla, com quem teve os filhos Kywan e Kyron. Seu desapego a bens materiais se tornou folclórico. Não ligava pra dinheiro – nem pro dele nem pro dos outros. E gostava de distribuir roupas – a dele e a dos outros. “Quando a gente morava junto, cheguei em casa um dia e os nossos armários estavam vazios. Fui reclamar com o Marcelo, mas ele disse que a gente não precisava daquilo tudo. Nem deu pra ficar chateado por muito tempo”, lembra Gurgel. Ganhou o apelido de Cupim de Ferro porque seus carros nunca duravam muito tempo. Às vezes desaparecia por dois, três dias e voltava com o carro semidestruído.

Hiperativo?

Os sumiços começaram a perder a graça quando a família e os amigos descobriram que Marcelo estava usando drogas. “Meu filho confiava cegamente nos amigos, mas não se deu conta de que alguns não queriam o bem dele”, diz Flávio. Um dos maiores lutadores de vale-tudo nas décadas de 50 e 60, o psicólogo João Alberto Barreto acredita que Marcelo sofria de hiperatividade numa época em que pouco se falava do transtorno. “O Marcelo tinha um grande coração mas, como qualquer hiperativo, precisava muito de controle e de medicamentos. Ele não tinha medo de nada”, afirma João Alberto, o tal professor de jiu-jítsu que pediu a Flávio para tirar o filho das aulas por um tempo. Em 1994, Marcelo chegou a ser internado numa clínica de desintoxicação, mas não deu muito certo. A cada crise, afastava-se mais dos tatames. “O jiu-jítsu dá uma sensação de invencibilidade que fez o Marcelo acreditar que estava no controle da situação. Mas não estava”, diz Gurgel.

No início de 1995, Marcelo desapareceu – e não foi por dois ou três dias, como de hábito. Quando completou dois meses sem dar notícias, Trip publicou aquela que seria sua última entrevista, concedida no ano anterior (http://bit.ly/14hZtdB). Nela, falava do sonho de lutar vale-tudo profissional (o UFC era um bebê recém-nascido nos EUA) e de outros planos para o futuro. “Atualmente, estou querendo cantar e compor, por incrível que pareça. Talvez ser piloto e correr de carro. Espero que eu tenha tempo pra tudo isso”, disse.

O corpo de Marcelo foi encontrado no porta-malas de um carro estacionado na Ladeira dos Tabajaras, na entrada de uma das favelas mais perigosas de Copacabana. Tinha uma bala alojada no crânio. Acreditase que tenha sido vítima de traficantes. Até hoje, os amigos gostam de imaginar como Marcelo se encaixaria neste mundo em que se luta para ganhar dinheiro e não para defender a própria honra.

*Fellipe Awi é jornalista da TV Globo e autor do livro Filho teu não foge à luta (Ed. Intrínseca)

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