Quase cinco anos depois de sair da prisão, descubro que minha vocação é distribuir e compartilhar os benefícios do saber
Por Luiz Alberto Mendes*
“Existem ontens e amanhãs. Não existem hojes.”
Mario Benedetti
Em 4 de março de 2004, permitiram que eu saísse da prisão, depois de 31 anos e 10 meses cumpridos. Havia praticado crimes graves, merecia. Daqui a pouco serão cinco anos. Terei direito à reabilitação social. Meu nome estará limpo, quite com a Justiça e zerado com a sociedade. Nesses quase cinco anos, tenho mesclado o que aprendi na prisão com o que tenho estudado, lido e relido aqui fora. Sem dúvida, estou aprendendo muito mais agora. Minha vida foi acelerada, de repente, de 10 para 1.000 km/h. Ainda bem que os livros e o fato de ser professor mesmo quando ainda preso conservaram minha mente ágil. Agora menos detalhe e mais universo. Menos eu e mais o outro.
O estudo, que na adolescência era sinônimo de tortura chinesa, na maturidade tornou-se bênção. Chances de ainda saber. Fica límpido como cristal que estudo, leitura, livro, conhecimento, tecnologias e tudo mais que o homem constrói não são mais que meio. Tudo que faz o homem é instrumento, mediação, busca de se safar de seu flerte com a insanidade de ser somente em si.
Trata-se, sem dúvida, de necessidade absoluta e desesperada de interação humana. Somente os vínculos de afeto e sentimento para com o outro podem preencher o vazio, a angústia profunda que cada um guarda dentro de si. Não explico como, mas sinto: está na maneira com que nos relacionamos com os outros o prazer, a alegria de viver. No fi m há uma certa idéia de humanidade que é preciso fazer prevalecer. Oferecimento, generosidade, compaixão, respeito, proteção aos mais fracos, apoio aos mais infelizes, distribuir e compartilhar saberes, conhecimentos...
Tudo me leva a crer que essa última parte, a de distribuir e compartilhar os benefícios do saber, é minha área de atuação. É muito importante para mim que os outros saibam. Se me perguntarem por que, não saberei explicar. É mais sentir que saber. Talvez porque saí da prisão absolutamente consciente de que aquele era um mundo governado pela ignorância e pela estupidez. E que vencer a ignorância seria vencer a estupidez. Havia acontecido comigo. Pessoas intermediaram. Aprendi com elas, com o gesto afetuoso delas para comigo e com os livros que trouxeram. Deixei de ser ignorante e aos poucos vou deixando de ser estúpido.
Sempre entendi que ler fosse um exercício que exigia estar sozinho, como escrever. Isolar para concentrar era o princípio. Hoje, depois do segundo ano fazendo oficinas de leitura e escrita para adultos e crianças, a experiência me ensinou que para ler é importante estar acompanhado. Ler sozinho é busca de entender. Ler acompanhado é defender o que se entendeu e obter a contrapartida. Como o outro entende e no que discorda. Quando lemos sozinhos, ficamos abandonados, à mercê da realidade, do conhecimento que nos é dado. Perdi muito do que li e estudei na prisão porque não havia com quem dialogar sobre o que estudava. Ler e conversar com alguém que leu também é cotejar, discordar, ampliar e fi xar o lido. Até para escrever a experiência em ofi cinas demonstrou que o texto individual (salvo o escritor genial) não tem a substancialidade do texto produzido em grupo.
A curiosidade da ignorância é muito mais selvagem na infância. Hoje as pesquisas do INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional) indicam que o gosto pela leitura de 47% dos pesquisados vem por infl uência das mães, 24% dos pais e apenas 36% dos professores. Nos últimos cinco anos as pesquisas vêm indicando que as crianças cujos pais liam para elas desde pequenas são as que aprenderam a ler e a escrever com maior facilidade. Então a lógica me levou a dirigir meus estudos também para essa área supernova (ao mesmo tempo que tão antiga...) da educação. Os pais precisam ser convencidos a ler mais para os fi lhos. Esse conhecimento precisa ser distribuído e compartilhado. E é por onde tenho caminhado ultimamente, com muito prazer.
*LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, passou 31 anos e 10 meses na prisão e está mais preparado para o fi m do mundo que a maioria de nós. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br
“Existem ontens e amanhãs. Não existem hojes.”
Mario Benedetti
Em 4 de março de 2004, permitiram que eu saísse da prisão, depois de 31 anos e 10 meses cumpridos. Havia praticado crimes graves, merecia. Daqui a pouco serão cinco anos. Terei direito à reabilitação social. Meu nome estará limpo, quite com a Justiça e zerado com a sociedade. Nesses quase cinco anos, tenho mesclado o que aprendi na prisão com o que tenho estudado, lido e relido aqui fora. Sem dúvida, estou aprendendo muito mais agora. Minha vida foi acelerada, de repente, de 10 para 1.000 km/h. Ainda bem que os livros e o fato de ser professor mesmo quando ainda preso conservaram minha mente ágil. Agora menos detalhe e mais universo. Menos eu e mais o outro.
O estudo, que na adolescência era sinônimo de tortura chinesa, na maturidade tornou-se bênção. Chances de ainda saber. Fica límpido como cristal que estudo, leitura, livro, conhecimento, tecnologias e tudo mais que o homem constrói não são mais que meio. Tudo que faz o homem é instrumento, mediação, busca de se safar de seu flerte com a insanidade de ser somente em si.
Trata-se, sem dúvida, de necessidade absoluta e desesperada de interação humana. Somente os vínculos de afeto e sentimento para com o outro podem preencher o vazio, a angústia profunda que cada um guarda dentro de si. Não explico como, mas sinto: está na maneira com que nos relacionamos com os outros o prazer, a alegria de viver. No fi m há uma certa idéia de humanidade que é preciso fazer prevalecer. Oferecimento, generosidade, compaixão, respeito, proteção aos mais fracos, apoio aos mais infelizes, distribuir e compartilhar saberes, conhecimentos...
Tudo me leva a crer que essa última parte, a de distribuir e compartilhar os benefícios do saber, é minha área de atuação. É muito importante para mim que os outros saibam. Se me perguntarem por que, não saberei explicar. É mais sentir que saber. Talvez porque saí da prisão absolutamente consciente de que aquele era um mundo governado pela ignorância e pela estupidez. E que vencer a ignorância seria vencer a estupidez. Havia acontecido comigo. Pessoas intermediaram. Aprendi com elas, com o gesto afetuoso delas para comigo e com os livros que trouxeram. Deixei de ser ignorante e aos poucos vou deixando de ser estúpido.
Sempre entendi que ler fosse um exercício que exigia estar sozinho, como escrever. Isolar para concentrar era o princípio. Hoje, depois do segundo ano fazendo oficinas de leitura e escrita para adultos e crianças, a experiência me ensinou que para ler é importante estar acompanhado. Ler sozinho é busca de entender. Ler acompanhado é defender o que se entendeu e obter a contrapartida. Como o outro entende e no que discorda. Quando lemos sozinhos, ficamos abandonados, à mercê da realidade, do conhecimento que nos é dado. Perdi muito do que li e estudei na prisão porque não havia com quem dialogar sobre o que estudava. Ler e conversar com alguém que leu também é cotejar, discordar, ampliar e fi xar o lido. Até para escrever a experiência em ofi cinas demonstrou que o texto individual (salvo o escritor genial) não tem a substancialidade do texto produzido em grupo.
A curiosidade da ignorância é muito mais selvagem na infância. Hoje as pesquisas do INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional) indicam que o gosto pela leitura de 47% dos pesquisados vem por infl uência das mães, 24% dos pais e apenas 36% dos professores. Nos últimos cinco anos as pesquisas vêm indicando que as crianças cujos pais liam para elas desde pequenas são as que aprenderam a ler e a escrever com maior facilidade. Então a lógica me levou a dirigir meus estudos também para essa área supernova (ao mesmo tempo que tão antiga...) da educação. Os pais precisam ser convencidos a ler mais para os fi lhos. Esse conhecimento precisa ser distribuído e compartilhado. E é por onde tenho caminhado ultimamente, com muito prazer.
*LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, passou 31 anos e 10 meses na prisão e está mais preparado para o fi m do mundo que a maioria de nós. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br