por Jr. Bellé
Trip #253

Nos anos 70 e 80, a casa de Paulo Leminski na Cruz do Pilarzinho, periferia de Curitiba, era um espaço aberto para amigos, artistas famosos e jovens escritores, batizado como ”Guruato da Marginália”

Há quem diga que o frio e a frieza, e que a lombeira nebulosa de tantas tardes cinzentas, não são paisagem certa pra ser terra de guru. Foi em Curitiba, quem diria, que Paulo Leminski (1944-1989) nasceu, cresceu e estabeleceu seu território de liberdades: o Guruato da Marginália. Um lugar simbólico, utópico por dizer, e que mesmo não tendo um endereço certo — ia aonde ia Leminski — estava localizado na rua Jorge Khoury, 874, na Cruz do Pilarzinho, um bairro alto da periferia da capital paranaense, com grandes áreas descampadas e araucárias imponentes onde colônias de imigrantes poloneses fincaram raízes num passado recente.

Era lá que o polaco Leminski morava com Alice Ruiz e seus três filhos. A casa era modesta, contava com um fogão a lenha e era feita de madeira. Tinha, por outro lado, tamanha densidade poética que foi capaz de fazer gravitar em torno de si astros como Caetano Veloso e Gilberto Gil, Luiz Antônio Solda e Rettamozo, Ademir Assunção e Itamar Assumpção, Jorge Mautner e Moraes Moreira, Fortuna e Gal, Augusto de Campos e Décio Pignatari, Ivo Rodrigues e Orlando Azevedo.

“Foi na primeira casa do Pilarzinho que Gal e Caetano apareceram um dia de repente, saltaram de um táxi e bateram na porta perguntando se por acaso naquele endereço morava um tal Paulo Leminski”
Áurea Leminski

Áurea Leminski, filha mais velha de Paulo e Alice, lembra-se bem do lugar. Era uma típica construção feita por descendentes de poloneses, cheia de lambrequins, cada cômodo de uma cor e com um quintal vasto onde plantavam legumes e hortaliças. “Estava sempre lotada de amigos dos meus pais. Nos fins de semana, as festas chegavam a durar 24 horas. As pessoas iam chegando e cada um trazia comes e bebes, ficavam em torno das rodas de violão”, ela conta. “Foi na primeira casa do Pilarzinho que Gal e Caetano apareceram um dia de repente, saltaram de um táxi e bateram na porta perguntando se por acaso naquele endereço morava um tal Paulo Leminski.”

Entre os meados das décadas de 70 e 80, a casa da Cruz do Pilarzinho se tornou point seguro da rebeldia bem no centro da República de Curitiba, “a mais típica cidade de classe média do Brasil”, como escreveu Leminski no artigo “Sem sexo, neca de criação”, incluído no livro Ensaio e anseios crípticos. Posteriormente a família se mudou para uma casa próxima, no mesmo bairro, mais espaçosa e confortável, que mantinha, contudo, a característica essencial: amigos passavam para tocar violão, beber cerveja e fumar maconha; jovens escritores apareciam para trocar ideias e ouvir a pregação; artistas de fora aproveitavam as visitas pra contar as novidades e emendar parcerias. “Meus pais eram meio hippies e adeptos da contracultura”, recorda Áurea. “A quebra de regras e tradições era uma ordem, e não os bons costumes. As pessoas se sentiam à vontade para chegar sem avisar, ou mesmo sem serem convidadas, e sabiam que seriam bem recebidas.”

Na biografia Paulo Leminski – O bandido que sabia latim (Record), o jornalista Toninho Vaz, um dos escritores que frequentavam o lugar, relata: “A casa da Cruz do Pilarzinho se encaminhava para ser reconhecida como um dos elementos mais autênticos do underground curitibano. Festas e tertúlias, encontros profissionais e churrascos se sucediam em ritmo de cavalaria rusticana”. Leminski dizia que este fenômeno era uma especialidade local, uma exclusividade da Curitiba do final dos anos 70, quando a cidade se dividia em zonas culturais geridas por gurus, que ele chamava de “guruatos”: “O guruato do Oraci Gemba, no teatro; o guruato do Karam, também no teatro. O guruato do Sylvio Back, com a turma do cinema. Temos ainda o guruato da Boca Maldita, uma região cheia de profetas. Eu fico com os marginais. Fui empossado Ministro-Sem-Pasta da Marginália”.

ZONAS DE REBELDIA
“Curitiba sempre foi essa cidade extremamente opressora, muito feudal, ainda mais nos tempos de ditadura, era tudo censurado”, lembra Orlando Azevedo, fotógrafo português radicado na capital paranaense. “Era uma cidade radical em seus aspectos mais intrínsecos, especialmente em relação à arte.” Orlando vivia em outra das zonas artísticas da cidade, a lendária Casa Branca, bunker do pessoal de sua banda, A Chave: “Era um espaço grande, com estúdios de várias artes — pintura, fotografia, música —, como um laboratório de criação”. Ele lembra de estar dormindo numa certa madrugada, quando ouviu pancadas na janela de seu quarto, que dava de frente para a rua. “Eram 4 horas da manhã, quem batia era o Paulo Leminski, de quem eu já tinha ouvido falar bastante mas ainda não conhecia pessoalmente”, diz. “Ele estava acompanhado de um fotógrafo e um psiquiatra: eu acordei, abri a porta e foi amor ao primeiro baseado.”

Mais do que um guru, Orlando lembra do polaco como um Rasputin paranaense, a quem nem sequer uma garrafa de uísque era capaz de derrubar, um amigo apaixonante e um provocador de marca maior. “Ele tinha um magnetismo e toda uma verve que comprovava um domínio impressionante do idioma, você ficava completamente fascinado”, diz. “Ele te envolvia de uma maneira brutal, especialmente na casa do Pilarzinho, que tinha uma energia incrível — eu saía de lá elétrico, sempre melhor do que entrava.”

Outro frequentador dos mais contumazes do Guruato da Marginália era o artista plástico Rettamozo, visto com frequência ao lado de Leminski. Além de comparsas de arte e compadres de birita, eram colegas de trabalho numa agência de publicidade. “No fim da tarde, e às vezes no meio da tarde também, a gente ia pros bares”, conta. “Ele era pulsante, todo dia tinha que fazer um haikai assim que chegasse na agência. Ele chegava já perguntando: ‘Como é o haikai de hoje?’. Nessas saíam muitos poemas e slogans bons.”

Os dias mais calmos eram os de maré baixa nos trampos, quando os amigos costumavam ir pra Morretes, litoral paranaense, para nadar no rio e pegar uma praia. Os dias mais agitados, sem dúvida, eram aqueles em que celebridades como Moraes Moreira visitavam a cidade e resolviam dar as caras na Cruz do Pilarzinho. “Eu estava lá com o Paulo quando ele apareceu, acho que tinha mais gente. Ficamos fumando umas coisas estranhas — a gente era bom nisso, mas o Moraes era melhor — e de repente o Paulo e o Moraes começaram a fazer uma música, ou melhor, mais uma música.” Moraes abriu o show que fez naquela noite com a versão original, em voz e violão, da nova, esfumaçada e fresquíssima parceria com o polaco.

Apesar de ter vivido o auge das vanguardas artísticas brasileiras, é impossível enquadrar Leminski como um concretista, tropicalista ou mesmo um marginal. Ele estava sempre em movimento, farejando a contracultura, voraz por novidade. Quando Áurea tinha 16 anos e começou a namorar um sujeito meio punk, Leminski imediatamente sacou que havia muito frescor naquilo. Durante um mês ele assistiu seguidamente ao filme Sid & Nancy (1986) e não tirava o disco do Sex Pistols da vitrola por nada. Começou a se vestir como punk, pegou emprestada uma jaqueta do namorado de Áurea, toda feita de couro e forrada de rebites, e aderiu a uma pulseira de tachinha. Chegou a dar uma entrevista ao Jornal Hoje, da Globo, todo punkamente paramentado.

AULA NO BAR
Talvez tenha sido essa generosidade para com o novo a mais importante característica que fez de Leminski um guru, afinal foi com a nova geração de músicos e escritores que ele estabeleceu uma verdadeira relação de tutelagem. Quando o cancionista Oswaldo Rios tinha 21 ou 22 anos e começou a sair mais, reparou que frequentemente via o poeta nos bares, sempre cercado de gente. “Ele era um mito pra mim, tinha esse negócio de ser guru e ao mesmo tempo ser muito acessível, o que era maravilhoso, porque eu sabia que uma das minhas grandes inspirações estava ali nos mesmos bares que eu, tomando a mesma cerveja”, lembra.

Como o polaco estava sempre disposto a ler coisas novas e pitaquear, ainda que nem sempre com elogios, jovens artistas como Oswaldo se aproximavam aos bandos e emendavam parcerias. Uma das mais íntimas foi com os irmãos Marcos e Roberto Prado, poetas que ainda adolescentes deram pra editar livretos. Não demorou muito e Leminski cruzou seu caminho. “Era sensacional ter alguém que te desafiava e te incentivava como ele. Eu ficava instigado a escrever porque sabia que ele iria entender a graça, ou a complexidade, ou a novidade, e iria dar um feedback interessante, uma leitura comprometida, mesmo que fosse uma crítica”, diz Roberto. “Ele era contra a caretice e ao mesmo tempo contra a interferência de um partido ou ideologia na arte, isso inspirou muita gente a produzir uma arte mais autônoma, gente que como eu tinha o Leminski realmente como um guru.”

É certo que sua sagacidade imperdoável rendeu a Leminski tantos admiradores quanto detratores. Era um sujeito marcante: semeou amigos com a mesma facilidade com que colheu polêmicas, e assim deixou seu recado por onde passou, fosse um bar, fosse uma sala de estar, um palco ou um tatame. Roberto treinava caratê na mesma academia em que Leminski (adepto das práticas orientais do zen e do haikai) treinara judô anos antes. “A primeira coisa que vi quando entrei na academia foi um poema dele escrito na parede, o título era ‘Tai-otoshi para a kodokan’, não esqueço dos versos: ‘Passos lentos/ escrevem/ VONTADE DE CHEGAR/ precisa andar/ como quem já chegou/ chega de chegar/ de pressa/ é muito devagar’.”

Créditos

Paulo Ricardo Botafogo

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