Enquanto parte da população mundial consome 1,6 planeta por ano, 800 milhões de
pessoas sofrem com a fome e a pobreza.
A Terra acaba de entrar no cheque especial. Esse é o aviso do Global Footprint Network (GFN), think tank independente com bases nos EUA, na Bélgica e na Suíça que trabalha para promover a sustentabilidade. Em oito meses, no dia 13 de agosto de 2015, ultrapassamos o limite de uso dos recursos naturais renováveis para um ano inteiro. O dia da sobrecarga do planeta chega cada vez mais cedo: em 2000, foi no início de outubro.
Atualmente, a população mundial consome o equivalente a 1,6 planeta por ano. Secas, erosão do solo, perda de biodiversidade e acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera são apenas algumas das consequências desse consumo. É preciso um plano para salvar o mundo. Que tenha não só metas concretas, mas novas utopias. “As utopias são para a comunidade o que os sonhos são para os indivíduos”, afirma Adauto Novaes, filósofo e curador do evento Mutações, citando o filósofo francês Francis Wolff.
O Mutações é um ciclo de debates e palestras tradicional entre intelectuais do mundo todo. O evento já levantou temas como violência, silêncio e preguiça e discutiu na sua 30ª edição, no mês passado, em São Paulo, as utopias da humanidade. Não é por acaso. Isso se faz cada vez mais urgente.
Quando se fala em utopia abarca-se tudo: as primeiras, as superadas, as anunciadas pela ficção científica (como a trans-humanista, um futuro em que homem e máquina se fundem), as políticas (como o comunismo de Karl Marx) e a falta da produção intelectual em torno de problemas e soluções contemporâneas, que aponte para as utopias de nossos tempos.
O primeiro registro da palavra é de 1516, do livro Utopia, do inglês Thomas Morus. Em sua etimologia, ela quer dizer “não lugar”, mas também pode ser traduzida por eutopia – lugar da felicidade. Ou, como escreveu Marx, a “expressão imaginativa de um mundo novo”. Embora as utopias geralmente projetem o futuro, seu objeto de estudo é o presente. Ao propô-las, refletimos o amanhã e questionamos nosso caminho até então. “Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável”, diz Adauto.
Pois, bem-vindos ao insuportável.
Qual é o destino da humanidade? Quanto tempo resta ao homem na Terra? É sensato o modo como vivemos? As respostas, em primeiro lugar, trazem retratos do hoje e, ainda, previsões desesperadoras para o amanhã. Guerras, desigualdades, fome, pobreza, intolerâncias, o fim dos recursos naturais, mudanças climáticas bruscas e suas consequências. A realidade mais parece uma distopia – um pesadelo em forma de utopia. “Precisamos acordar no sonho e não do sonho”, complementa Adauto.
Um acordo global para acabar com o uso de combustíveis fósseis deve ser assinado na Conferência do Clima das Nações Unidas em Paris (a COP 21), em dezembro. Em relação às temperaturas anteriores à Revolução Industrial, o objetivo é limitar seaumento a no maximo 2 graus celsius.
A COP 21 é só uma das ações da ONU para este ano. A organização também propõe um projeto ambicioso para tornar o planeta um lugar melhor (e possível) para todos nós: a primeira agenda universal para o desenvolvimento sustentável. Nela, estão 17 objetivos, subdivididos em 169 metas, chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Paz e inclusão
A proposta nasceu em 2012, no Rio de janeiro, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, mais conhecida como Rio+20. Os ODS têm foco na erradicação da pobreza; na melhora da saúde e da educação; na igualdade de gêneros; na promoção da sustentabilidade econômica (crescimento inclusivo, empregos e infraestrutura) e na sustentabilidade ambiental (mudança do clima, oceanos e ecossistemas e consumo e produção sustentável). Tudo isso a ser construído em sociedades pacíficas e inclusivas. O objetivo 17 – Parcerias pelas metas –, se refere aos meios de implementação e financiamento de todos os outros. “As fontes são múltiplas: governos de todos os níveis – locais e internacionais –, o setor privado, a sociedade civil e a academia”, diz Haroldo Machado Filho, assessor sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil.
Haroldo explica que os ODS estão baseados em três pilares fundamentais: o social, o ambiental e o econômico. “Desenvolvimento sustentável é a ideia de transformar as vidas das gerações presentes e futuras sem causar danos ao planeta”, diz. “Significa investir na economia global, mas principalmente garantir que esse crescimento econômico e individual ocorra de forma sustentável.” Para Haroldo, enfrentar a mudança do clima e promover o desenvolvimento sustentável são “dois lados da mesma moeda”. “O desenvolvimento sustentável não pode ser alcançado sem uma ação em relação à mudança climática e à forma como o homem consome”, afirma.
Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável. Precisamos acordar no sonho e não do sonho.
Os 17 ODS são o passo seguinte de um outro projeto: os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), instituídos em 2000 pelas Nações Unidas, e que tiveram na erradicação da fome e da pobreza as suas maiores bandeiras. “Os ODM produziram o movimento antipobreza de maior sucesso da história”, é o que diz o relatório oficial de resultados. Segundo a ONU, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza (menos de US$ 1,25 por dia) diminuiu em mais da metade, passando de 1,9 bilhão em 1990 para 836 milhões em 2015. Os ODM trouxeram também outros resultados: a taxa de crianças que morrem antes do quinto aniversário diminuiu em mais da metade, de 90 para 43 mortes por mil nascidos vivos. Os números relativos à mortalidade materna tiveram declínio de 45%. Mais de 6,2 milhões de mortes por malária foram evitadas. O número de pessoas que ganharam saneamento básico foi de 2,1 bilhões.
A nova agenda de desenvolvimento sustentável será oficialmente adotada pelos 193 países-membros da ONU no fim de setembro, durante uma Assembleia Geral em Nova York. Assim como os Objetivos do Milênio, os novos Objetivos não têm obrigação jurídica. “Devem ser compromissos morais e aspiracionais, cabendo aos governos e à sociedade civil torná-los possíveis”, diz Haroldo.
“Com a ajuda do meus amigos do Porta dos Fundos, queremos fazer um enorme barulho sobre essas metas, quase como se fosse o fim de semana de lançamento de um grande filme”, resume o cineasta britânico Richard Curtis, que dirigiu longas como Simplesmente amor, foi roteirista de Um lugar chamado Notting Hill e lidera o Project Everyone – iniciativa para divulgar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A ideia é espalhar, em 7 dias, as novas metas para as 7 bilhões de pessoas do planeta. “O que eu espero é que, do jeito que puderem, vocês brasileiros divulguem os ODS da maneira mais divertida que puderem”, pede Richard.
As ações têm data entre 26 de setembro e 3 de outubro e incluem um show no Central Park, em Nova York, que vai virar programa de TV, e a “maior aula do mundo”, ministrada em escolas de cem países. No Brasil, os sócios do canal Porta do Fundos, Antônio Tabet, Gregorio Duvivier, Fábio Porchat, João Vicente de Castro e Ian SBF, são a maior aposta para divulgação da agenda. Em quase três anos, o canal atingiu 1,8 bilhão de visualizações e conquistou mais de 10 milhões de assinantes. O grupo vai produzir três vídeos, que serão lançados no início de outubro, sobre os objetivos 5 – Igualdade de gênero –, 10 – Redução de desigualdades –, e 16 – Paz e justiça. “Escolhemos essas três metas porque nos pareceram as mais inspiradoras e também por estarem muito longe de serem alcançadas. Mas é exatamente isso que nos interessou”, conta Gregorio. “O Porta também começou de forma ambiciosa. Éramos todos contratados da televisão e resolvemos chutar o balde para começar nosso canal. Foi um risco louco, e todo o mundo dizia que íamos fracassar. Temos especial simpatia pelos objetivos longínquos e pelos projetos que parecem impossíveis.” Ainda afirma: “Tudo parece impossível quando nunca foi feito. Utopia, muitas vezes, é só um lugar onde ninguém chegou ainda”.
Apocalipse
O objetivo número 12 – Assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis – talvez seja o maior desafio. Somente com sua realização é possível seguir com os outros sem que a Terra entre em um colapso. O modelo econômico vigente, no qual consumimos de maneira predatória, tende ao caos. E não são poucos os que apostam em uma barbárie generalizada para o futuro.
É de um tipo de apocalipse que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski falam no livro Há mundo por vir? – Ensaio sobre os medos e os fins (ed. Cultura e Barbárie). “As espécies estão se extinguindo, e a humanidade parece que continua andando para um abismo. O mundo vai, de fato, piorar para muita gente, para todo mundo”, afirmou o antropólogo em entrevista à jornalista Eliane Brum, na ocasião do lançamento da obra, ano passado. “Primeiro é preciso crescer para depois distribuir. Está crescendo, está dando renda para os pobres, mas esse dinheiro não está saindo do bolso dos ricos. Está saindo da natureza, da floresta destruída”, enfatizou.
Haroldo concorda: precisamos rever o modelo que abastece a vida no planeta. Mas diferente de Viveiros, é bastante otimista. “As indústrias têm um posicionamento muito progressista hoje. Sabem que precisam se modernizar e estão deixando de ser as vilãs e partindo para alternativas sustentáveis.” Ele diz também que é importante os governos aumentarem a resiliência das populações, com medidas de proteção e ajuda. “Podemos ser a última geração que verá a pobreza extrema no mundo se a agenda da ONU for cumprida.”
No entanto, é perceptível a falta de alguns tópicos no documento. Entre os 17 objetivos e as 169 metas propostas, nenhum toca em direitos LGBT. Fala-se em igualdade de gêneros, em diminuição das violências, injustiças de forma geral, e da redução das desigualdades, mas essa população não está representada em palavras nos textos. Isso se justifica pela limitação do órgão, que vive entre a ideologia e a diplomacia de suas funções. “Estamos falando de um documento que é global e precisa do consenso de todos os 193 países-membros”, responde Haroldo. “E essas questões são sensíveis para muitos países. Em alguns lugares da África, homossexualidade é crime.”
Plano de fuga
Para Pedro Duarte, doutor e mestre em filosofia pela PUC do Rio, há uma incompatibilidade entre as três ambições que pautam os novos objetivos das Nações Unidas: manter o desenvolvimento produtivista industrial, fazer que seja inclusivo e estimular que seja sustentável. “Essas não são metas possíveis juntas. O projeto ocidental moderno, de um produtivismo desenfreado, não me parece compatível com o desejo da ONU.” O objetivo 15 diz que é preciso “deter e reverter a degradação da Terra, e estancar a perda de biodiversidade”. Além do mais, ele diz, “a organização não pode determinar as mudanças. É preciso que os países as queiram”.
O modelo econômico que praticamos é também um modo de entender quem somos. “Não dá pra mudá-lo sem mudarmos a nós mesmos”, afirma Pedro. “O que me parece ser completamente utópico, mas ideal, seria a transformação do nosso processo civilizatório.” Ele reconhece que, ao propor os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a ONU escancara as nossas doenças enquanto humanidade, e que esse já seria um primeiro passo para um plano de fuga. Contudo, lembra: “O planeta é finito, sobretudo para nós. É preciso sonhar mais e idealizar uma transformação profunda. Nossa salvação talvez dependa de idealizar o desconhecido, ou seja, desconstruir nosso modelo civilizatório”, afirma Pedro, num exercício genuíno de utopia.
Tudo parece impossível quando nunca foi feito
Por Gregorio Duvivier, do Porta dos Fundos
Devoto das causas impossíveis, o Porta dos Fundos puxou pra si a missão de divulgar os novos objetivos da ONU.
Escolhemos essas três metas (Igualdade de gênero, Paz e justiça e Redução das desigualdades) porque nos pareceram as mais inspiradoras – talvez por serem as que mais nos tocam no dia a dia. E também por estarem muito longe de serem alcançadas. A igualdade de gênero é um sonho especialmente distante pra nós brasileiros, que vivemos numa sociedade tão machista.
A redução de desigualdades sociais, nem se fala. E o objetivo da paz parece, pra nós cariocas, uma utopia tão distante quanto a vida eterna. Os objetivos da ONU são muito ambiciosos e parecem inatingíveis. Mas foi exatamente isso que nos interessou. O Porta também começou de forma ambiciosa. Éramos todos contratados da televisão e resolvemos chutar o balde e começar nosso canal. Foi um risco louco, e todo mundo dizia que iríamos fracassar. Temos especial simpatia pelos objetivos longínquos e pelos projetos que parecem impossíveis. Tudo parece impossível quando nunca foi feito. Utopia, muitas vezes, é só um lugar que ninguém chegou ainda.
Chamaram a gente para divulgar essas metas, então podem ficar tranquilos que não vão ser vídeos institucionais. Nem saberíamos fazer isso. Vamos lançar vídeos que a gente lançaria mesmo que a causa não fosse boa. E a ONU chamou a gente exatamente por isso, porque sabe que não vai ser institucional, chapa-branca. Já fizemos vídeos sobre a questão indígena, a Aids, o vegetarianismo, fugindo sempre ao máximo do didatismo, que é o pior inimigo do humor. A ONU sabe disso. Quem está capitaneando essa campanha é o Richard Curtis, um dos maiores roteiristas de comédia do mundo. Eles sabem que humor precisa ser livre. E gostam disso. Senão, não tinham chamado a gente.