Você sabe como morre uma estrela, meu amor?

por Milly Lacombe
Tpm #155

Um espetáculo arrebatador, assim como você, essa explosão de intensidade capaz de gerar mais energia que o sol

Uma estrela começa a morrer quando já não tem combustível para queimar. Nessa hora o núcleo entra em colapso e durante algumas horas, já morrendo, ela emite uma luz azulada que poderia ser vista em toda a galáxia – se houvesse ali um observador – até finalmente explodir num espetá-culo de cores e intensidade que chega a ofuscar o brilho da galáxia que a abriga e que é capaz de gerar mais energia do que o Sol.

Depois da explosão, pedaços do que por bilhões de anos foi uma estrela são espalhados pela imensidão do espaço, deixando um rastro de brilho e beleza para deleite desse nosso hipotético observador. Será que existe no universo espetáculo mais arrebatador do que a morte de uma estrela, meu amor?

 

Era uma noite fria de maio quando você entrou na minha vida e foi numa noite quente de primavera, dez anos depois, que você se preparou para sair. Enxergar a vida sem você era para mim tão provável quanto presenciar a morte de uma estrela, mas uma improbabilidade deixa de existir quando a realidade tira nossos pés do chão e, segurando meu rosto com as duas mãos, me obriga a enxergar.

No começo, varrida por medo, me recusei a abrir os olhos, mas, como as mãos nunca deixavam meu rosto, fui obrigada a ver; e que aflição perceber que diante de mim, onde antes só existia você, havia apenas um abismo em direção ao qual agora eu andava completamente sozinha.

Dando passos lentos, tentei deixar meus olhos abertos e, fazendo isso, ainda caminhando para o precipício, vi você e eu na rede do apartamento na Apinagés, vi você colocando aquela mesa de café da manhã que daria para alimentar o time do Corinthians inteiro, mas que era apenas para nós duas, vi a gente se mudando para a casa da Sampaio Vidal, vi duas cachorras entrando pelo portão, vi você e eu, vestidas para atuar em Breaking Bad, limpando durante horas todo o cocô da vira-lata depois que o vermífugo fez efeito, vi a gente se mudando para a nova casa na mesma rua, vi aquele atrapalhado transporte dos meus livros de um lugar para o outro, vi você reformando a casa inteira e brigando com o eletricista que não entendia para que instalar todas as tomadas que você exigia, vi a gente indo comprar o sofá novo que pagamos em muitas vezes e sobre o qual fizemos amor, vi a gente fazendo amor pelo chão da casa da minha irmã, na rede, no quarto, na sala, na piscina, em Gonçalves.

Vi a gente indo de mãos dadas ao Quitanda, vi você me beijando no meio da rua em Londres, vi a gente bêbada voltando a pé para casa, vi a gente trancada naquele apartamento por dias e dias mergulhadas uma na outra.

Vi a gente comprando o terreno em Gonçalves e passando a escritura com o escrivão, que era também astrólogo, vi ele gastar horas lendo latitudes e longitudes, vi você interessadíssima naquilo e corrigindo dados quando ele falava alguma latitude errada, vi você tocando a obra que ergueria nossa cabana. Vi o primeiro fim de semana na nossa casinha no meio do mato, vi você chorando quando chegamos, vi a gente descarregando o carro, acendendo a lareira e abrindo o vinho.

Vi a gente na estrada cantando “Electrolite”, porque a música lembrava nossas muitas férias em Los Angeles e em Santa Barbara, vi a gente voltando para São Paulo e você dormindo no assento ao lado, me vi pedindo para você ir mais devagar e você pedindo para eu ir mais rápido. Vi a gente comprando um apartamento, o aparador subindo pela janela, as paredes sendo descascadas, você desenhando minha mesa de trabalho. Me vi fazendo o seu café da manhã e você, meu imposto de renda. Vi outra vez a gente dançando na sala antes do jantar, vi a gente fazendo “nheco” todas as manhãs, quando durante dez anos nos recusamos a sair da cama para poder continuar com nossas peles grudadas. Quem decidiu que não usaríamos pijamas, aliás; você ou eu? Seja quem for, trata-se de um gênio, o que provavelmente indica que foi você… sua pele foi a melhor casa que já tive.

Vou sentir falta dela, e do seu cheiro, especialmente o cheiro que você tem pelas manhãs, que é doce, macio, suave e cheio de libido. Vou sentir falta de tanta intensidade, de tanta luz e de tanta energia. Vou sentir falta de suas unhas nas minhas costas, de sua língua em meus lábios, de suas mãos em meu colo e das minhas em seu rosto, de suas bochechas descansando nelas e de ver você inclinar a cabeça e fechar os olhos, se deixando ficar. Vou sentir falta dos espasmos de seus pés quando você está quase pegando no sono, e daquela respiração que indica que você finalmente foi para Aruanda.

Vou sentir uma saudade enorme de ver você entrar em casa, ainda mais linda do que saiu, e me tirar para dançar. Vou sentir saudade de fazer você rir, e talvez seja esse meu maior medo: o de perder seu sorriso de vista.

Pensando bem, era apenas natural que um relacionamento que contém você terminasse como uma supernova, deixando pelo espaço um espetáculo de luz e energia e beleza. Que morte linda a nossa, meu amor. Que história mais sublime essa que escrevemos juntas. Quantas coisas e casas e pessoas e dores e amores dividimos. Como fomos felizes e como existimos. 

E eu, que aprendi a me perder em você, agora precisarei me encontrar sem você. O que eu fiquei pensando é que ter a chance de morrer junto é um privilégio porque ao nos vermos pela última vez nos olhos uma da outra podemos entender que talvez não estejamos morrendo, apenas renascendo. Ou, como aquela cerejeira cuja semente você enterrou no solo da nossa terrinha, talvez estejamos apenas sendo plantadas. Quem sabe?

Tudo o que sei é que foram os melhores anos da minha vida e pelos quais vou agradecer a você até que alguém feche meus olhos e, pela derradeira vez, me deixe ir.

Obrigada por ter me permitido morar em você e por ter me amado tanto e tão profundamente. Eu já vou, mas antes de ir queria te contar uma última história. Você sabe como nasce uma estrela, meu amor? 

A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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