Angélica Freitas escreve sobre mulher, inquietações e angústias usando ironia e poesia
Há seis anos a gaúcha Angélica Freitas, 39, deixou a redação de um jornal paulistano pra escrever poemas e viver só deles. De 2006 pra cá também trocou de casa algumas vezes. Morou por dois anos na Argentina, ficou um tempo mais curto na Cidade do México, fez viagens pelo Uruguai e voltou à Pelotas, sua terra natal no Rio Grande do Sul. Lá, durante pouco mais de um ano, escreveu Um útero é do tamanho de punho, seu segundo livro. Nele, a escritora trata de mulher, inquietações e do feminino como convenção, como padrão a ser seguido. Escreve sobre esses assuntos usando poemas. De forma certeira, são versos de entrega, que expõem fragilidades, mas que ao mesmo tempo, fazem a gente se sentir nocauteado.
A Tpm conversou com a autora sobre seu novo trabalho.
Tpm. Teu livro reflete inquietações, angústias e diversas questões femininas. Não somente a condição da mulher de hoje, mas estigmas entranhados no papel feminino. Por quê? Comecei a pensar nesses temas por volta de 2007. Eu tinha lançado meu primeiro livro, fui morar na Argentina [Bahía Blanca, sul da província de Buenos Aires] por quase dois anos. Lá convivi com um grupo de feministas ativistas. Estar com elas me levou a questionar muitas questões femininas. O tema começou a surgir aí. Então, em 2008, aconteceu algo forte pra mim, acompanhei um processo de aborto de uma amiga próxima. Foi na Cidade do México. Lá, o procedimento é legalizado e oferecido pelo governo. E por ter ido acompanhá-la, assistir tudo de perto, fiquei mais instigada com o tema.
Como foi a experiência de passar por isso com ela? Algo te marcou? Senhoras religiosas, católicas, chegaram em uma van e ficaram lá, tentando dissuadir quem faria o aborto. Rezaram, falaram com uma voz super mansa, mas o discurso era forte. Quase que uma intervenção traumática. Era super agressivo. E mesmo depois que as mulheres decidiam entrar pra realizar o aborto, esse grupo ainda continua lá para pressionar os parentes, rezando com megafone, insistindo. É trash mesmo. Essa foi uma parte super importante da experiência pra amadurecer a ideia do livro. Depois dela, comecei a pesquisar na internet sobre o corpo da mulher. Cheguei em tudo quanto é tipo de texto. Queria saber quais palavras eram usadas, até material de medicina consultei. Daí cheguei na frase “um útero é do tamanho de um punho fechado”. Fiquei com ela na cabeça e acabei escrevendo o poema que dá título ao livro em uma sentada só. É o poema mais longo do livro, talvez o maior que já escrevi.
Então foi a partir de uma vivência sua, questionamentos seus, que os poemas foram surgindo? Sim. Na verdade, eu nunca quis protestar, levantar bandeiras, eu estava em um processo, vivendo as questões, as inquietações. Então fui descobrindo ao mesmo tempo que escrevia. Daí passei um ano e pouco escrevendo o livro. E estar em Pelotas pra isso foi importante também.
O que escrever em Pelotas trouxe pro livro? Pelotas é cidade provinciana, de hábitos mais engessados, mantidos. Lá, eu acho, que as convenções femininas são mais fortes. O papel da mulher lá é ainda mais doméstico. O machismo e o patriarcal é mais aparente. E isso tudo foi também inspiração.
Tem um poema preferido no livro? Não, mas tenho uma séria preferida, talvez. A série que abre: uma mulher limpa. Na verdade, pra essa primeira série, eu penso muito no que as pessoas podem entender dela. É irônica, como nas estrofes:
“uma mulher gorda
incomoda muita gente
uma mulher gorda e bêbada
incomoda muito mais
uma mulher gorda é uma mulher suja
uma mulher suja
incomoda incomoda
muito mais
uma mulher limpa
rápido
uma mulher limpa”.
E fico imaginando se as pessoas pensariam que é uma ironia (o que é de fato), ou se achariam que eu acredito que uma mulher gorda era ruim. Então eu me propus a fazer essa série de poemas pra saber o que saíria disso. Vê, é uma inquietação. Não é um livro ativista, panfletário. É muito mais reflexão que quero dividir. Acho até que os poemas ficam nonsense no final. E eu me pergunto na verdade, se esse não é o único caminho que consegui chegar, sabe? Acho que quanto ao feminino, muita coisa é nonsense mesmo, não faz sentido. Acho que o que a gente considera do feminino, ou de comportamentos de mulher, muita coisa é inventada, criada, convenção. Penso que a gente aprende desde pequenininha como devemos nos comportar, como ser mulher. Então eu acho que coloquei as mulheres dos poemas em situações que não concordo, que não têm sentido pra mim. Outra forma de ironizar.
E você, se encaixa nessas situações? Nunca quis. Pra mim, essa história do feminino sempre foi fonte de questionamento. Procuro viver a minha vida o menos de acordo possível com essas imposições.
"No brasil você precisa ser uma super fêmea. Fêmea e fofa"
Então você é livre? Não tanto quanto eu gostaria de ser, mas mais do que muita gente que conheço. Mas acho impossível se sentir livre diante de tantas limitações. A questão de vestuário, por exemplo. Acho super difícil comprar roupa. Nas lojas de departamento, por exemplo, você tem uma bela ideia de como a mulher deve ser. Você encontra um desenho de como você deveria se vestir. É muito difícil comprar uma calça que não mostre a bunda. Porque fazem calças que não te dá liberdade de movimento. No brasil você precisa ser uma super fêmea, ou se vira. Fêmea e fofa.
Em alguns poemas você usa palavras que parecem uma brincadeira de estilo, um código. Por exemplo: piri qui. O que significam elas? [risos] É a língua do i, que é como a língua do p. Consistie em trocar as vogais por i. É uma brincadeira da minha infância.
E por que as usou nos textos? Não foi racional. Acho que porque, de uma forma intuitiva, quis infantilizar partes dos poemas. Mas não pensei “vou utilizar isso como recurso”. Aconteceu. Depois de pronto, fez sentido. Porque realmente acho que a sociedade trata a mulher assim, de forma infantilizada, inferiorizada. O tratamento com a mulher permite essas gracinhas, miudezas; com o homem não.
Você acha que pode ser um desejo da própria mulher em ser tratada assim? Eu não me arriscaria a falar por todas. Mas como observadora eu sinto isso. Somos sempre tratadas com um jeitinho, com uma gracinha, às vezes de forma infantilizada, paparicadas. Talvez gostem sim. Mas acredito que existem as que detestam, e querem ser tratadas sem os mimos, de igual pra igual. Acho que o Brasil ainda é um pais muito machista. Então existe muito disso ainda.
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