A noite mais difícil da minha vida

por Milly Lacombe
Tpm #160

“Enquanto você disser que não aguenta mais, haverá mais.” Olhei em volta e não vi ninguém

Debaixo de uma araucária enorme o ritualista fez um círculo de pedras para delimitar o espaço sagrado em que a cerimônia da Ayuhasca se daria. Montou um altar e uma fogueira que queimaria a noite inteira. Para entrar no espaço havia quatro “portas” feitas de troncos de madeira dispostos paralelamente e voltadas para norte, sul, leste e oeste. Eram portas simbólicas, mas o ritualista pediu que não saíssemos ou entrássemos sem usá-las.

Eram quase 8 horas da noite quando começamos a entrar pelas portas. Peguei um canto que me parecia aconchegante e estendi o cobertor. Aos poucos todos se acomodaram lado a lado em um círculo; éramos 15. O ritualista começou a cantar e tocar seu tambor; a música era linda. “Agora estamos prontos”, ele disse depois de um tempo.

A rodada inaugural da Ayahuasca começou a ser servida em sentido horário. Excitada, esperei minha vez e virei a dose. O gosto lembrou levemente o de cachaça: aquela seria uma noite memorável, pensei.

O ritualista pediu que déssemos uma descansada e disse que nos avisaria quando a segunda rodada estivesse sendo preparada. Estava me sentindo bem, apenas um pouco tonta. Me ajeitei no cobertor e comecei a rir: minha cabeça girava um giro gostoso. Ao meu lado algumas pessoas começavam a sair do círculo para vomitar e eu sentia pena porque a noite delas se anunciava terrível. Não sei quanto passou até o ritualista chamar para a segunda rodada. Ele pediu que ficássemos de pé e foi apenas ao me levantar que entendi o que estava acontecendo: minhas pernas tremiam como bambus expostos ao vento forte, achei que fosse cair; um mal me invadiu. Olhei em volta e só eu estava assim. Quando o ritualista chegou até mim, levantei os olhos e perguntei se podia sentar. “Não, não pode”, ele disse. “Respire algumas vezes.”

Fiz o que ele pediu, continuei igualmente fraca e indisposta, mas peguei a taça para tomar. Ao dar um pequeno gole uma náusea monumental me invadiu. Devolvi a taça, virei para trás, fiquei de cócoras e comecei a vomitar um vômito profundo. Saía de mim um som que nem eu sabia que era capaz de emitir. Pelo menos não estava vomitando na menina ao meu lado. Imaginei que quando me virasse de volta para a roda o ritualista já teria desistido de mim, então foi com enorme surpresa que, limpando um resto de vômito que estava na boca, o vi ali.

“Pronta agora?”, ele perguntou.

Balancei a cabeça fazendo que sim e a taça cheia me foi devolvida. Minha noite estava começando, e ela não seria nem um pouco parecida com o que imaginei. Em posição fetal, tremia e pensava que estava não apenas enjoada, mas com vontade de ir ao banheiro. Fiquei ali tremendo e me contorcendo até dizer a mim mesma que iria tentar levantar. Cambaleando e caindo, cheguei à porta sul. Engatinhando, tentei ir o mais longe possível imaginando que faria outra vez aquele barulho pavoroso. A náusea era indescritível, e havia o incômodo de achar que eu não seria capaz de segurar meu intestino. Caí em posição fetal e passei a tremer mais. Tentava vomitar, mas não saía nada e era derrubada pela fraqueza. Passei a dizer baixinho: “Não aguento mais”. Repeti algumas vezes antes de escutar uma resposta que me apavorou: “Enquanto você disser que não aguenta mais, haverá mais”. Olhei em volta e não vi ninguém. Depois de me contorcer mais um pouco, fiquei de quatro outra vez e consegui vomitar. Vomitei sete vezes. Caí algumas vezes sobre o que eu esperava que fosse o meu próprio vômito, e percebi que meu rosto estava coberto de grama. Repeti o “eu não aguento mais”, e a voz repetiu “enquanto você disser ‘eu não aguento mais’, você terá mais”. Decidi mudar a atitude, coloquei a testa no chão e agradeci, nem sei a quê. “Aqui esta atitude não cola”, disse a voz, que seguiu falando.

“Olha para você. Coberta em seu vômito, cheia de grama, tremendo de frio e medo. A que está agradecendo? Enquanto você não falar e escrever as coisas que realmente sente, e não as coisas que acha que são bonitas, nada vai mudar. Este é o seu problema: a arrogância. Aqui você é o viciado da cracolândia, a mulher morrendo de aids na Nigéria, o refugiado sírio que já não pode mais respirar, afogado pelas ondas do Mediterrâneo. Você é a dor do mundo. Você é a miséria humana. Você é um nada, um verme. Isso é sofrer. Isso é dor. Isso é humildade. Então pare de agradecer, pare de racionalizar, pare de intelectualizar. Sinta.”

Depois de algum tempo decidi me arrastar outra vez para o círculo. A náusea ainda era enorme, a fraqueza tinha aumentado e eu entendi o que estava acontecendo: eu estava morrendo. Era isso. Eu tinha ido até ali para morrer. A voz voltou a falar: “Você agora vai sair pela porta. Você vai nascer. Para nascer é preciso morrer. Nascer dói. Nascer dá medo. Nascer não é fácil. Levanta e vai”.

Já não estava mais preocupada em manter o fio de dignidade que me restava e me arrastei como um verme até a porta oeste. Engatinhei para longe e outra vez caí tremendo. Não sei quanto tempo se passou até eu escutar uma voz grossa dizer: “Como você está?”. Contorcida, com as mãos encolhidas como quem está em convulsão, olhei para cima e vi o ritualista, vestido todo de branco, lindo e imponente.

“Passando muito mal”, sussurrei. “Acho que tenho que vomitar.”

Ele se abaixou ao meu lado. “Você não tem que fazer nada. Tem que relaxar e aceitar o que vem. Você não tem como saber se daqui a um segundo vai vomitar, defecar, sonhar, dormir… o que vai acontecer está fora do seu alcance.”

Quando voltei para meu lugar já estava um pouco menos enjoada. Deitei, me cobri e comecei a escutar outra vez a voz. “Respira e relaxa nessa respiração, sabendo que talvez não exista outra. Tudo o que existe é essa respiração. A eternidade é uma dimensão do agora. Uma dimensão do espírito.” Fui fazendo isso e o enjoo começou a me deixar.

A voz seguia falando comigo a respeito de humildade e arrogância e sem que eu percebesse o céu começou a ficar mais claro. Pouco antes do sol nascer, o ritualista serviu a terceira dose, que tomei pronta para o que viesse. Mas dessa vez eu apenas deitei sorrindo. Tinha sido a pior e a mais significativa noite da minha vida, uma na qual morri para nascer.

 

 

Créditos

Ilustração Bia Sanchez

fechar