Bandidagem literária

por Diogo Rodriguez

Cláudio Tognolli lança livro multimídia na internet e fala sobre jornalismo investigativo

No seu primeiro romance Balenciaga e os corações pelludos, Claudio Julio Tognolli, 46, trata do assunto que é sua especialidade: crime. Repórter investigativo desde que começou sua carreira, criou uma personagem jornalista que trabalha no mesmo mundo que o seu, Lita Guna, e que quer aprender a matar.

Reconhecido por fazer investigações profundas para suas matérias, Tognolli já se infiltrou em torcidas organizadas e fumou crack com usuários da droga; sua capacidade de escavar os fatos rendeu um convite do governo brasileiro para viajar ao Iraque para tentar resolver uma saia-justa (o caso do engenheiro da construtura Odebrecht que foi assassinado no país).

Lançado em partes pela Editora do Bispo, o livro é multimídia e não terá versão impressa. Está totalmente disponível para download no formato pdf e tem complementos: canções e fotografias. Cada parte (são quatro) vem junto de arquivos em mp3. Tognolli convocou seus amigos a colaborar: narração de Milton Neves, canções de Apollo 9, Paulo Ricardo e Lobão, fotos de João Wainer e Rui Mendes.

Não se trata de verdades sobre o submundo, conta Tognolli. Há uma certa realidade nas histórias, já que ele se inspirou em coisas que viu e ouviu durante sua carreira como jornalista investigativo, mas Balenciaga e os corações pelludos serve como "tentativa de libertação total" do texto jornalístico e fazer uso de uma coleção de palavras (com mais de 180 mil catalogadas e anotadas em cadernos ao longo de 17 anos). A sisudez do romance é posta em questão já no prefácio: Marcelo Rubens Paiva o escreveu antes de ler o livro.

"O livro é uma tentativa de eu me libertar do jugo de que eu poderia ser processado por causa de um adjetivo"


O livro tem traços autobiográficos?
Fiquei sempre muito associado à figura de crime, de investigar máfia, coisa que eu faço, sempre crime organizado. Quando eu me dei conta, eu estava cercado de advogado de bandido, agente da Abin [Agência Brasileira de Informação], ex-torturador. Essas pessoas começaram, ao longo da minha vida, a contar um monte de história que às vezes eu tornava públicas em alguma revista. Outras vezes eu tornava pública uma parte e outra parte eu guardava. Tem muito de autobiográfico. Não necessariamente da minha vida, mas da vida de pessoas que me cercaram. Por exemplo, eu lembro que meu avô teve uma arma que ele usou para atirar no irmão dele, que tinha acorrentado ele, impedindo que viesse de Amparo para São Paulo para trabalhar, queriam que ele ficasse na roça o tempo todo. Um dia ele saiu da corrente, pegou a arma e atirou na perna do irmão para poder fugir. Tem um personagem lá que atira no próprio irmão, foi calcado no meu avô. [Pensei] Tem tanta histórias que eu vivi cobrindo o crime durante 30 anos, por que eu não coloco elas romantizadas?

Por que esse formato de livro multimídia?
Essa história tem três facetas. Eu tinha escrito cinco livros: O primeiro século do crime, que fiz com o José Arbex Jr. - o Mauro Lima, que fez Meu nome não é Johnny, está filmando agora - minha tese de mestrado, Sociedade de chavões, que foi orientada pelo [Timothy] Leary, guru do Lennon,  A falácia genética e a ideologia do DNA, meu doutorado, O mundo pós-moderno e o Mídias, Máfia e rock'n'roll. Pensei: "Meu, tenho livro papo-cabeça, baseado em fatos reais". E eu coleciono palavras há muitos anos, tenho tudo fichado, palavras que eu gosto, algo como 180 mil palavras. Eu me deparei com a minha biblioteca, com os escritores que eu mais gosto, o Gabriel Garcia Marquez, o Jorge Luis Borges, o Nelson Rodrigues e por aí vai - algo como 20 escritores - a obra completa, toda fichada.

Você categoriza as palavras?
Sim, tudo por taxonomia [classificação], categorizado. Eu invento loucamente o que chamo de campos semânticos. Cada hora eu invento uma taxonomia diferente. O meu mestrado foi em chavões, um dicionário de chavões. Sempre tive problema com palavra e som. Tenho pedal de guitarra pra cacete, coleciono sons, timbres. Aí eu falei: "Quero fazer um romance em que eu junte as histórias que me circulam há trinta anos fazendo polícia e as palavras que eu gosto". Como um psicopata - te juro - durante três anos eu sentava e falava: "Só vou sair desse computador quando eu tiver escrito 10 mil toques". Por um ano seguido, fosse sábado, domingo ou feriado, eu escrevi 10 mil toques todo dia, independente da qualidade. Me obrigava a ter uma desova.

Por que 10 mil?
Podiam ser 2 mil, eu inventava, coisa de louco, coisa de Sheldon do Big Bang Theory. Esse processo se prolongou. Durante um ano fiz todo dia 10 mil toques e em dois já ia maneirando: comecei a jogar fora, cortar, pentear, sem nenhuma preocupação com o leitor. Eu não quero posar de romancista, não tenho nenhuma pretensão. Não fui atrás de editora pedir para aprovar. Como sou muito amigo da Pinky Wainer, do João Wainer - eles já tinham lançado o meu livro Mídia, máfias e rock'n'roll - ela falou que punha o livro no ar. Mas eu não queria só fazer isso. Eu queria exercer o multimídia.

Desde sempre a idéia foi publicar o livro on-line?
Sempre, sempre querendo o multimídia. Eu queria convidar as pessoas para lerem o romance na internet, mas que ele tivesse uma companhia além: encher de foto, de música e pedir para o Milton Neves narrar. Vídeo não deu tempo de fazer.

Por que escolheu o Milton Neves?
Porque a gente é muito amigo. Sou o maior fã dele. A gente conversa todo dia. Trabalhei com ele durante oito anos na [rádio] Jovem Pan. Nunca falei para ele que era um livro. Ele pegou e gravou.

 

E a escolha das músicas? Tem Paulo Ricardo, Thunderbird...
Tenho uma relação de mais de 30 anos com o Paulo Ricardo, a gente se conhece da ECA [estudaram jornalismo juntos na USP]. Ele me cedeu uma música que eu toquei num disco dele. Cheguei no Apollo 9 - que é o maior produtor do Brasil, toquei no disco dele - e ele contratou o Royce Calla que foi produtor dos Beatles, do Lennon, do Frank Sinatra. Cheguei neles e pedi duas músicas especiais para o livro. Pedi outras músicas para o Guilherme Isnar, da banda Zero, pro Thunderbird, Clarah Averbuck, para o Oswaldo Amiletto.

E as fotos?
Pô, eu sou o maior fã do João Wainer, maior fã.

Vocês fazem matérias juntos
É, na Joyce [Pascowitch] e na Rolling Stone a gente fez muita coisa junto. O fotógrafo que acho muito parecido comigo é o João Wainer. Eu não queria que ele produzisse nada para o livro porque o que ele faz é a cara do que eu faço. Ele me deu um Flickr de 200 fotos. O Rui Mendes é meu amigo, estudamos juntos na ECA, maior fotógrafo de rock do Brasil, fez mais de 350 capas de disco. Cheguei para ele e disse que já que ele faz capa de disco, que ia fazer a capa do livro.

Até agora que tipo de resposta os leitores têm dado?
É engraçado, eu estou recebendo o seguinte tipo de retorno: "Não sabia que era legal ler na telinha". "É legal também eu levar para a cama o laptop e não o livro". As pessoas ainda não têm experiência de ler um romance de fio a pavio na telinha. Eu pensei que ia ter mais retorno pela linguagem do livro porque eu não tenho nenhuma intenção de ser palatável ou aceito.

Você pensa em lançar uma versão para o Kindle?
O problema é que o Kindle é afiliado à Amazon. Só se vierem me procurar, porque eu não vou bater de porta em porta pedindo para publicarem um livro que eu sei que é nefasto, difícil, quase um delírio estético, estilístico. Não parei para pensar como um jornalista faz, se precisava ter uma linguagem coerente, às vezes engraçadinha, para que o leitor possa se comprazer com o estilo. Adoraria, mas não vou bater na porta de ninguém.

Você foi se especializou em jornalismo de polícia por vontade própria?
Não. A primeira redação em que eu trabalhei, que foi na Veja, sempre, não sei por quê, acharam que eu o cara para crime. Crime, crime, crime. Quando eu fui para a Folha de S. Paulo, os caras achavam que tinha o jeito, que eu gostava de conversar com bandido, delegado. Eu não aguentava mais. Tentei me "suicidar": dei uma entrevista para a Caros Amigos [em março de 1998] contando tudo o que eu sabia. Quando saiu isso, pensei que ia fechar as portas e poder ser o que sempre quis, que é professor em tempo integral. Não consegui. Continuou a maldição, crime, crime, crime. Tem coisa que a gente não escolhe.

"Tentei me 'suicidar': dei uma entrevista para a Caros Amigos [em março de 1998] contando tudo o que eu sabia. Não consegui. Continuou a maldição, crime, crime, crime. Tem coisa que a gente não escolhe"

Você gosta, se diverte?
Sempre foi uma droga poderosa. O jornal mandava me infiltrar em gangue, torcida organizada.

Dá sensação de poder?
Pelo contrário, a sensação de investigar é o contrário disso, é de impermanência, você fala "eu não sou ninguém aqui com uma caneta e um bloco, não posso reagir". É uma sensação de solidão.

É ela que vicia?
Acho que o que vicia é o mito de que você pode tornar o mundo melhor. É um pouco de iconoclastia também. Isso chegou a um ponto em que eu falava: "Que merda subir num palco e dizer 'olhem para mim'". Que coisa triste. O legal é estar infiltrado, sozinho", sabe? Adoro a sensação de começar do zero: "Puta, e agora, o que eu faço?". Mesmo depois daquela matéria [na Caros amigos] continuei a ser chamado. Até hoje. Para você ter uma ideia, isso está no Mídia, máfias e rock'n'roll, o apelo daquele livro era quando o Mauro Marcelo, ex-diretor da Abin nomeado pelo Lula, me chamou para buscar o corpo do engenheiro [João José de Vasconcellos Jr.] da Odebrecht em Bagdá [morto em um atentado em 2005] um ano e meio antes de divulgarem que ele estava morto. Contei para o Marcelo Rubens Paiva e ele disse: "Caralho, eu demorei trinta anos para saber que o meu pai estava morto e você não vai contar para a família?". Ele deu o furaço na coluna dele, "o engenheiro está morto". A família do engenheiro ficou chamando a gente de mentirosos por um ano e meio, até que chegasse o corpo. Quando o delegado me deu uma missão impossível dessa, que obviamente eu não topei, eu falava: "Do cacete, puta situação para eu resolver, eu vou pra lá!". Esse tipo de desafio me foi feito a vida toda. Não sei te responder por quê, se era porque eu solucionava bem ou se porque era o único que topava.

O livro é um escape da solidão?
Na verdade é querer compatilhar com o leitor a minha capacida de reinar [imaginar]... Como jornalista a gente passa a vida toda fazendo pauta, obedecendo a ordens e, no caso do jornalista investigativo, muita exigência com o real. Aquela frase do Nelson Rodrigues, "se os fatos me contestam, azar dos fatos", para a gente não tem dessa. Eu cheguei a ter 120 processos. É duro. O livro é uma tentativa de eu me libertar do jugo de que eu poderia ser processado por causa de um adjetivo. Que retaliação eu poderia sofrer em me comprazer com o imaginário?

É o contrário do texto jornalístico.
É uma tentativa de libertação total.

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Saiba mais: veja texto de Tognolli e a coluna de Marcelo Rubens Paiva sobre o caso Vasconcellos

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