por Karla Monteiro
Trip #216

A professora que mudou a vida de milhares de presos do Rio de Janeiro

Uma simples carta, encontrada dentro de um livro abandonado, levou Vanusa de Melo a mudar a vida de milhares de presos do Rio de Janeiro. Agora, depois de ensinar a ler e a amar os livros, a professora quer ajudar a reintegrar ex-detentos à sociedade

Ela nasceu no sertão da Paraíba, num vilarejo chamado Sossego, em 1973. Aos 5 anos, expulsa pela fome, sua família – pai, mãe e quatro irmãos – migrou para São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Aos 9, começou a trabalhar como costureira numa fábrica, profissão que só deixou aos 20. Passou, então, no vestibular e cursou letras na Uerj. No primeiro ano da faculdade, já começou a dar aulas – ao mesmo tempo em que abraçava a militância e os movimentos de combate à desigualdade social. Em 1997, aos 25 anos, enfim, recebeu uma mensagem do destino, que veio em forma de carta, encontrada dentro de um livro de Dalton Trevisan que achou perdido sobre um banco no centro do Rio de Janeiro. Era uma mensagem de um detento para sua esposa e se assemelhava a tantas outras desse tipo. Contava a vida na prisão, a solidão do dia a dia, a dura convivência na cela lotada... e marcou forte a moça que encontrou a correspondência.

Vanusa de Melo, miúda e rechonchuda, óculos de grau bem marcantes, chegou esbaforida ao Parque Lage, no Jardim Botânico, carregando essa história – ou saga – e um monte de pastas com provas dos alunos. Nós nos acomodamos numa mesinha do café, de frente para a piscina. Era um dia de céu de nuvens inchadas, abafado como uma estufa. O jardim exuberante do Parque Lage suava. No café do palacete de estilo eclético que abriga a Escola de Artes Visuais (EAV), uma turma de jovens saudáveis e bronzeados, com textura de final de tarde na praia de Ipanema, circulava para lá e para cá com as suas telas e pincéis. Vanusa nunca tinha entrado ali. “Parece outro Rio de Janeiro!”, comentou.

Desde 2009, Vanusa trabalha como professora de português no sistema prisional. Primeiro, Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas, destinado à correção de crianças e adolescentes. Há três anos, está no presídio Evaristo de Moraes, conhecido como Galpão da Quinta, onde ficam os chamados presos do “seguro”. Ou seja, aqueles que nem os outros presos querem por perto, os jurados de morte. “São presos que precisam de proteção, ou porque romperam com a facção ou porque estão enquadrados no artigo de estupro e atentado violento ao pudor”, ela explicou, sorvendo água com gelo e limão. “Na verdade, quando fui para lá, não me foi dito que era esse o perfil dos alunos. Se tivessem me dito, talvez eu nem tivesse ido.”

 

“Educação dentro dos presídios não é benefício. É direito constitucional. Se os detentos tiverem seu direito desrespeitado, eles vão tomá-lo. É o ovo da serpente”

 

Vanusa não só foi como abraçou a causa. Ao assumir o cargo no Galpão da Quinta, uma penitenciária com cerca de 2 mil internos, onde 400 estudam, assumiu um lema: “Eu entendi que o trabalho de educação não podia ser restrito à sala de aula. Não pode em nenhuma escola, mas ali especialmente”. Ela começou a realizar projetos fora do currículo, que lhe custavam – ou lhe custam – o tempo de folga. O pouco tempo de folga. Vanusa também faz mestrado em educação na PUC-RJ e dá aulas num colégio particular da zona sul. “A gente vai dando um jeito”, ela garantiu, com seu jeito despachado de nordestina, ostentando roupas brancas e exibindo no pescoço contas de seguidores do candomblé. “Sou filha de Xangô, o orixá da justiça”.

O primeiro projeto foi uma oficina de literatura, em 2010. Em 2011, começou também um cineclube. “Exibimos coisas boas, ligadas ao universo deles, como Olga e Contador de histórias”. Este ano, começou o projeto Cartas para Romeu, em que seus alunos do colégio da zona sul escrevem pedindo conselhos aos alunos do presídio: “A ideia nasceu na exibição de Cartas para Julieta. Quando acabou, os internos estavam emocionadíssimos. Eu precisava aproveitar aquela emoção na escrita. A troca é muito interessante, e ano que vem vamos inverter. Os presos vão se aconselhar com os adolescentes do colégio”.

Voltando à vida
A última ideia que está tirando o sono da Vanusa é o lançamento de um “guia do egresso” no Rio de Janeiro, adaptação do guia que já existe em São Paulo, o Dicas, criado pelo escritor, colunista da Trip e ex-presidiário Luiz Alberto Mendes e encampado pelo governo do estado. “As pessoas que ficam muito tempo presas não sabem mais nem transitar na cidade, que ônibus pegar, como tirar documentação”, comentou, agora se refrescando com um mate. “São caminhos para se situar. Não é paternalista. É a pessoa querendo fazer algo e encontrando informação para isso: como chegar, no sentido físico e também no figurado.”

Para o guia, Vanusa reuniu uma série de parcerias: da OAB à Uerj, passando por diversas entidades ligadas ao sistema penitenciário. O projeto vai abranger uma população de cerca de 50 mil presos do estado do Rio, onde menos de um quarto estuda.

“Existem setores da sociedade e do governo que não compreendem que não estamos defendendo os direitos humanos num sentido moralista”, diz o presidente da Comissão de Direito à Educação da OAB, Mário Miranda Neto. “Não podemos mais tratar a educação nas penitenciárias como benefício. Não é benefício. É direito constitucional. Isso significa respeitar a democracia. O guia não é para ensinar. É para promover igualdade, e por isso decidimos apoiar.”

Vanusa envolveu também no projeto ex-presidiários que passaram pelo Galpão da Quinta. Luiz Henrique Machado da Silva, 31 anos, e Samuel Nascimento da Silva, 29, são dois dos animados colaboradores. O primeiro ficou preso de 1999 a 2009. E o segundo, de 2004 a 2012. Ambos concluíram o ensino médio na cadeia. “Estudar ali é muito difícil, tudo vai contra. Muitas vezes o carcereiro não abre a cela na hora da aula. Diz: ‘Vagabundo não tem que estudar’”, contou Samuel, o mais falante da dupla. “O guia é importante para nós e para todo mundo. Cada ex-presidiário que não reincide significa uma pessoa a menos sofrendo uma agressão. A maioria não quer reincidir”, emenda Luiz Henrique. “Mas precisa de muita ajuda.”

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