Guimarães: ”Adoramos tanto o carro que acabamos no inferno do congestionamento”

Na Europa, cresce o uso do espaço compartilhado - onde são retiradas todas as sinalizações, inclusive do que é calçada ou rua. Agora, são as pessoas que negociam quem é a prioridade no trânsito

Caro Paulo,

Sabe qual é a relação entre a adoração do bezerro de ouro da Bíblia e o apreço que nossa civilização dedica ao carro? Eles representam o mesmo equívoco de olhar para a coisa e não para o seu significado e, com isso, os adoradores vão para o inferno. Em outras palavras, adoramos tanto o carro que acabamos no inferno do congestionamento, o oposto do que um carro significa: solução para o transporte!

Mais claramente: ao adorar o carro, destruímos seu valor porque, num trânsito congestionado por excesso de veículos, a última coisa que você quer é estar num “autoimóvel”, que não pode ser abandonado no meio da rua, como um táxi! Por isso que, em São Paulo, todos nós na Thymus só usamos esse sistema de transporte público. Porque táxi não é um carro, é um sistema, uma rede em que reside uma inteligência profissional muito superior a qualquer motorista proprietário amador, por mais que seja experiente e seu carro seja conectado a outras redes de conhecimento.

Mas hoje o tema não é táxi. É essa adoração ao carro que vai muito mais longe do que o veículo em si, porque afeta a política de gestão do espaço urbano. Rua para quem? Carro ou gente? Temos tradição de dar privilégio ao carro. É da nossa cultura achar que quem tem carro pode mais. Pode estacionar na calçada, pode andar na areia das praias, tem preferência sobre o pedestre. Não importa de onde vem esse provincianismo. O fato é que o design do espaço urbano tem favorecido as máquinas e sua velocidade e não as pessoas e suas relações entre si e com o espaço. Mas isso passa.

Espaço compartilhado
Na Europa cresce o movimento de tirar o privilégio dos carros. É o Espaço Compartilhado, do qual nos dá notícia Julian Frenk, antropólogo que morou na Suécia e hoje trabalha na Thymus: “O princípio norteador do projeto europeu de espaço compartilhado, de Hans Monderman, é que regras de trânsito abstêm motoristas de uma atitude de consideração ao próximo. Eles dizem que nós estamos perdendo nossa responsabilidade social e que quanto maior o número de regras e restrições menor é o nosso senso de responsabilidade”.

É genial. Eles tiram todas as sinalizações, inclusive os códigos implícitos do que é calçada ou rua, e obrigam as pessoas a negociarem permanentemente de quem é a prioridade. O sentimento de ambiguidade gera nas pessoas a necessidade de questionamento e, consequentemente, de iniciativa; forçando o uso dos seus cérebros. A conclusão do projeto é revolucionária: construir ruas que pareçam perigosas pode ser a solução para a insegurança no trânsito!

Na contramão disso, estão fabricando carros tão automatizados e conectados a sistemas de informação que você não precisará (ou não poderá?) mais usar o cérebro. Como você vê, nossa época está nos colocando diante de algumas encruzilhadas. Estas são duas delas: máquinas ou gente? Regras ou negociação? Para mim, escolher gente e negociação nos faz mais humanos.

Meu abraço,

Ricardo

*Ricardo Guimarães, 62, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é @ricardo_thymus

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