por Olivia Nachle
Trip #205

De musa da new wave a ativista, ela defende e encarna um mundo em transição

De musa da banda de new wave Gang 90 a ativista que luta pela transformação das metrópoles, May East não apenas defende, como encarna um mundo em transição: “Nós estamos fazendo um duplo papel, somos enfermeiros de uma civilização obsoleta e parteiros de uma nova forma de viver”

“Eu, na verdade, sou bem camaleônica”, afirma May East. E seu currículo tem vários pontos que provam a veracidade de sua declaração: capacidade de se adaptar e se modificar em diferentes condições e contextos; um amplo campo de visão que a mantém por dentro de tudo; ou o fato de ter literalmente morado em um barril de uísque por 14 anos. De vocalista e musa da seminal banda de new wave Gang 90 & as Absurdettes até ativista premiada pela ONU, May já passou por várias transições ao longo de sua carreira. “Eu nunca me identifiquei só com uma turma ou só com uma forma de ser.”

A voz da paulistana de 55 anos que sai do Skype – direto da Escócia, onde vive hoje – começa a contar sobre o início de sua carreira musical: “Não lembro muito bem da linearidade dos acontecimentos dessa época, não conto muito essa história”. Foi por volta da década de 80 que ela, o jornalista Julio Barroso e o produtor Nelson Motta criaram um novo conceito para a música brasileira: o iê-iê-iê antropofágico, que trazia o new wave estrangeiro ao país e lhe dava um toque tropicalista. “Foi um momento incrível. Nós abrimos juntos um nightclub chamado Pauliceia Desvairada, que era promovido pelo Nelsinho e sua turma. A Gang nasceu para o mundo nesse nightclub. Tinha toda uma nova geração emergindo conosco.”

A banda, que teve ainda entre seus integrantes a holandesa Alice Pink Punk e Lonita Renaux, explodiu depois de ganhar o Festival Shell, em 1981, com a música “Perdidos na selva” (“Eu e minha gata/ rolando na relva/ rolava de tudo/covil de piratas pirados/perdidos na selva”). Dois anos depois, se tornou um “fenômeno brasileiro”, como May gosta de dizer, quando foi escolhida para abrir a novela Louco amor, da Globo, em 1983, com a música de mesmo nome (“Nosso louco amor/ está em seu olhar/ quando o adeus/ vem nos acompanhar”). Para o crítico musical Arthur Dapieve, “a Gang 90 foi a primeira banda do rock dos anos 80 a botar a cabeça para fora na grande mídia. Ela ainda parecia à frente do seu tempo, porque os outros concorrentes eram mais ligados à ‘velha’ MPB”. O DJ Kid Vinil, amigo e ex-parceiro musical, resume a importância de May no grupo: “Ela foi a que mais se destacou das Absurdettes, era a figura central depois do Julio, além de ser uma sex symbol, uma das mulheres mais bonitas da safra dos grupos da época, a vocalista cobiçada”.

Foi Julio Barroso quem incentivou Maria Elisa Capparelli Pinheiro – já rebatizada como May East – a se expressar no palco por meio da voz. “Ele estimulava as pessoas das formas mais inovadoras”, ela conta. E então May percebeu que podia ser mais do que uma “criadora de ideias musicais”; tornou-se uma “artivista”, como ela mesma se descreve, unindo artes plásticas, música e vídeo para se expressar. Não demorou muito para que ela abandonasse a Gang e se arriscasse em carreira solo. Por um motivo trágico, a banda também não durou muito. Um ano depois do lançamento de seu primeiro disco, Essa tal de Gang 90 & as Absurdettes, Julio Barroso morreu ao cair do 11º andar de seu prédio, em 1984; até hoje não se sabe se foi acidente ou suicídio, mas com certeza foi uma das maiores, e mais precoces, perdas do rock brasileiro. A banda ainda lançou dois discos com outra formação, mas nunca teve o mesmo reconhecimento.

E lá foi May, estrada afora do Brasil, em busca da riqueza rítmica e melódica do interior do país. Ela inovou mais uma vez com uma mistura de som eletrônico e acústico, rara até aquele momento, que deu corpo ao seu primeiro disco, Remota batucada. “Quando os DJs recebiam a minha música, eles não sabiam onde pôr, porque não era MPB, não era rock, não existia o termo world music. Eu acabei ficando meio que sem turma, porque eu já não era mais da turma da Blitz, do Leo Jaime, do RPM.”

Foi nessa época que uma gravadora inglesa descobriu sua música eletrônica e a chamou para fazer shows lá fora.

Tabaporã, seu disco seguinte, era dedicado à aliança entre os povos das florestas, índios e seringueiros. Em sincronia, as primeiras imagens de satélite mostrando a floresta amazônica em chamas vieram a público. Tiro e queda: ONGs e governos se voltaram para a questão das florestas tropicais, e foram atrás da artivista brasileira. “Foi aí que eu encontrei minha turma.” May assumiu a direção do Gaia Arts, ramo da instituição internacional Gaia Foundation, responsável por organizar grandes eventos que contavam com a presença de outros artivistas, ecologistas e dos chamados povos tradicionais.

De férias, em 92, decidiu descansar na ecovila de Findhorn, na Escócia. Ela se encantou pelo projeto da comunidade, que incluía geração de energia renovável, produção de alimentos orgânicos e consumo reduzido ao mínimo, entre outros princípios. Lá May conheceu Craig Gibsone, diretor de Findhorn que acabaria se tornando seu companheiro e pai das suas filhas. E o que era pra ser uma turnê de seis meses fora do Brasil acabou se transformando em 18 anos. Hoje May vive em uma casa ecologicamente inteligente, depois de morar 14 anos em um barril reciclado, onde antes eram estocados 600 litros de whisky.

Pouco deposi de chegar à ecovila, May resolveu se dividir entre o experimento de Findhorn e um trabalho com a ONU, que começou quando ela foi convidada a reunir contribuições de artistas para a Rio Eco 92. Como resultado, a ecovila recebeu prêmios da UN Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) e, em 2006, se tornou um espaço oficial de treinamento da ONU.

Ela acredita que “o destino da humanidade e da biosfera vai ser decidido nas grandes cidades”. Com essa convicção, May conheceu o projeto Cidades em Transição (Transition Towns), dois anos atrás, e partiu para sua sede em Totnes, na Inglaterra, para fazer um treinamento que dissemina metodologias sociais que podem ser replicadas em diferentes bairros do mundo. “Hoje 51% da humanidade mora nas cidades, que cobrem apenas 2% da superfície terrestre e consomem 75% dos recursos naturais. As cidades são ‘glutonas’: pegam recursos naturais, comida e nutrientes e soltam poluição, lixo etc. E lixo é coisa certa no lugar errado. O que a gente faz é ensinar os estudantes a arredondar esse processo.” Transition Towns complementa outro projeto dirigido por May chamado Educação Gaia – que ensina a observar aspectos de cidades, sociedades e organizações insustentáveis e dar a elas ferramentas de observação e de redesenho da presença humana.

A linha comum que ligou a carreira no rock até os muitos trabalhos de ativação e sensibilização de governos permite que May tenha uma clara visão sobre o caminho que a sociedade está tomando. “Já está havendo uma transição. Ou seremos os desenhistas ou seremos as vítimas dela.” Para May, todas essas manifestações e mobilizações que têm acontecido pelo mundo são “forças das enchentes da primavera” que você não tem como segurar. “E sinto que muitos de nós estão fazendo um duplo papel: somos enfermeiros de uma civilização obsoleta e parteiros de uma nova forma de viver que emerge. Não adianta mais continuar apenas alimentando um sistema que já está na UTI há alguns anos, temos que voltar a atenção para o novo” – algo que May tem feito há três décadas, camaleonicamente.

 

A MULHER QUE VEIO DO ESPAÇO 
Por Eduardo Logullo*

Volta lá no início dos anos 80. Conheci a figura cyberblonde de May East quando ela já integrava a Gang 90, trupe musical inventada por Julio Barroso em Nova York. Ela era uma das Absurdettes – o trio vocal feminino mais surreal que o rock brasileiro viu (e jamais verá outro assim). Fazia pouco que Maria Elisa saíra do casamento com um herdeiro da família Simonsen. O rosto que brilhava em colunas sociais, filha de piloto veterano de voos internacionais, deu uma guinada no visual e nas apostas de vida. Logo seria outra: seu batismo artístico surgiu por morar no East Side nova-iorquino, enquanto o restante da banda ficava no West Side. Assim, despontava o grupo que citava Tzara, Nietzsche e Xangô.

May East, depois da morte de Julio em 1984, radicalizou de vez ao seguir carreira solo de cantora, compositora e performer. Que mulher era aquela, vestida com saia havaiana de palha, maiô iugoslavo, colar de letras de plástico, escarpins brancos e maquiagem tribal? Quem era aquela aquariana louca que se apresentava entre tumbadoras, maracas, tapetes persas, sintetizadores, teremins e flechas? Parecia uma visitante espacial.

Conclusão, apenas uma. O seu trabalho estava 20 anos à frente de seu tempo. Hoje é corriqueiro misturar causas indígenas, meio ambiente, minorias étnicas, tecnologias, sincretismos e propostas comportamentais utópicas. No fim de uma década em que se descobria o consumismo e o discurso yuppie não. Era arrojado demais. May East foi como um disco voador sobrevoando a musica brasileira. Causou impacto. Seu nome e suas batucadas eletrônicas continuam referência do novo. E viva o futuro.

*Eduardo Logullo, jornalista, foi produtor de May East nos anos 80

 

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