Liberdade máxima

Mendes: ”Fugi de casa e minha bicicleta ficou enferrujando. Sem ela, nunca mais me senti livre”

Fugi com 12 anos. Ela ficou jogada num canto, e nunca mais senti a sensação de leveza e liberdade que me proporcionou aquela bicicleta. Nunca mais me senti tão feliz

Bicicleta era liberdade porque produzia mobilidade. Ganhei a minha primeira aos 10 anos de idade, da tia Lavínia. Havia concluído o primário sem repetir nenhum ano (antigamente era assim: repetia-se de ano) e aquele era meu prêmio. Era enorme. Uma Phillips, aro 28 e de corrida (das usadas era a mais barata no ciclista). O quadro era alto e eu tinha que entrar no meio para poder pedalar. Fui crescendo e logo consegui sentar no selim. O guidão era em forma de chifre, para correr inclinado como um ás de corridas. E era assim que eu me sentia em cima dela.

Amava a bicicleta. Vivi a parte mais lúdica e poética de minha vida em cima dela. A impressão é que às vezes ela voava para distâncias longínquas, principalmente nas descidas. E eu colocava toda pressão para ir mais rápido ainda. Era delicioso sentir o vento quebrando na cara. Com ela fui às lagoas e às matas nadar, pescar e caçar de estilingue ou de ronqueira (arma de fogo improvisada). Depois foi minha condução para atravessar da zona norte para a zona leste de São Paulo, onde estava a escola de Admissão ao Ginásio. Cuidava como fosse meu bichinho de estimação. Com o maior carinho desmontava suas peças para limpar e azeitar.

Fugi de casa com quase 12 anos. Ela ficou jogada num canto, enferrujando até ser vendida como ferro-velho. Nunca mais voltei a sentir a sensação de leveza e liberdade que me proporcionou aquela bicicleta. Nunca mais consegui me sentir tão feliz. Mesmo por isso, ao sair da prisão, não me animei a aprender a dirigir outros veículos. Comprei uma bike, dessas de largos pneus de passeio. Explorei quase todos os bairros aqui ao redor. Até poderia comprar um carro. Mas achei o sacrifício grande e caro demais para tão pouco proveito. Na bike eu me exercito, suo bastante e mantenho a forma.

Tenho certeza de que não sentiria nem um pouco de liberdade nesse trânsito pesado de São Paulo. Ao contrário. Já como passageiro dá agonia. Vai crescendo uma ansiedade no peito e, caso não seja demasiado distante, desço e vou a pé. Adoro andar. Andar sem afobamento traz reminiscências da leveza daquela liberdade ciclística da infância.

 

Nem nas estradas, com o carro quase
voando de verdade, senti aquela doce sensação de estar me movendo no ar... Cansa pilotar, são caros os pedágios, estradas lotadas de carros e caminhões. E dá receio das estradas, as pessoas fazem de seus carros armas explosivas. Quase todos os motoristas profissionais estão fazendo curso de direção defensiva. Provavelmente porque o curso ensina a se defender dos outros “motoristas”.

Bike é individual

Outro dia estava em uma rodovia seguindo para a praia, conduzido por um amigo extremamente hábil no volante. De repente, saída da neblina, lá vem uma roda enorme, rolando/caindo em nossa direção. Só deu tempo de desviar, mas pegou o carro de trás e rolou ribanceira abaixo. Paramos pensando em prestar socorro. Amassou o capô e quebrou o para-brisa do carro. Ninguém se feriu, apenas escoriações. Melhor. Era preciso seguir em frente. Não encontramos o carro que soltou a roda pela frente. Ficamos tentando imaginar o que acontecera.

O que mais me trava é a responsabilidade de conduzir veículos com outras pessoas dentro. A bike é individual. No caso de qualquer acidente, só a gente se dá mal. O que não chega a ser um alívio. Mas, quando a gente não se tem como o centro do mundo, é algo a ser considerado.

Na praia consegui uma bicicleta emprestada. Dessas modernas, de alumínio, com câmbio de 21 marchas. Voei pelas praias de Caraguatatuba e Ubatuba. Mas precisei beber para descontrair e me soltar em cima dela. Havia resquícios daquela sensação de mobilidade no ar, da liberdade vivida na infância, mas nunca mais tão leve, tão suave e tão querida...


*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente.

Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com
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