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FHC fala sobre a legalização da maconha

Em doc sobre drogas ex-presidente Fernando Henrique Cardoso decreta: “Maconha pode ser regulada como álcool e cigarro”

O ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso passou os últimos anos levantando uma bandeira improvável para um político influente: a flexibilização da política global do combate às drogas. Seus anos de viagens, conferências e comissões acabam de virar o filme Quebrando o Tabu. Depois de rodar o mundo, conversar com policiais, médicos, usuários, traficantes e estadistas, chegou à conclusão de que a Guerra às Drogas é um fracasso. E que a maconha no Brasil, ele diz, “deveria ser regulada, como o álcool e o cigarro”

Há quem diga que é a tal da maconha. Mas para Fernando Henrique Cardoso a porta de entrada para todas as drogas foi a presidência da República. “Durante meu governo, a visão que se tinha no mundo era a de que seria possível erradicá-las. E foi ficando claro para mim que era um objetivo inalcançável. Foi essa percepção que me fez buscar gente que entende do assunto. Porque eu mesmo nunca tive conhecimento técnico da droga”, ele explica, ao contar à Trip como o tema começou a se tornar uma de suas prioridades como um ativo político sem mandato.

Nos últimos anos, FHC tem aparecido na mídia e em conferências internacionais como um defensor de uma reforma na política de drogas no Brasil e no mundo. Fundou e se tornou o nome mais influente de três comissões (a brasileira, a latino-americana e a global) que analisam os efeitos do proibicionismo na sociedade e, em última instância, na democracia. Para não restringir o debate aos gabinetes e às eventuais reportagens, ele também saiu do papel de ex-mandatário, e de acadêmico, para se tornar o protagonista de um filme que chega este mês às salas de cinema. Quebrando o tabu é um documentário que acompanha dois anos da trajetória de Fernando Henrique, viajando o mundo e o Brasil atrás de especialistas, exemplos de políticas mais flexíveis, usuários, ex-usuários e argumentos claros para defender a principal tese do filme: a de que a guerra às drogas é um fracasso.

Dirigido por Fernando Andrade, e com produção de seu irmão, o apresentador Luciano Huck, a película traz, além de FHC, depoimentos surpreendentes de figuras como os ex-presidentes americanos Bill Clinton e Jimmy Carter, o médico e escritor Drauzio Varella, o ator mexicano Gael García Bernal e uma longa lista de personalidades insuspeitas. A ideia é trazer o debate para camadas, em geral, avessas ao assunto – e começar a criar uma nova mentalidade sobre o tema. “Serve para, como o nome diz, quebrar o tabu mesmo. Não dá mais para fecharmos os olhos para esse problema.”

A IDEIA DO FILME É TRAZER O DEBATE PARA CAMADAS AVESSAS AO ASSUNTO E CRIAR UMA NOVA MENTALIDADE

FHC propõe, com o filme e na entrevista a seguir, que não só a lei, mas também a cultura, precisam sofisticar a visão homogênea e inchada de preconceitos, que coloca as “drogas” sobre o mesmo nefasto guarda-chuva. “Não dá para tratar droga como se tudo fosse a mesma coisa. Então temos que nos informar, informar a população e separar os tipos de drogas.” É com essa óbvia, porém rara, constatação que Fernando Henrique abre uma discussão que nunca chegava aos meios oficiais, e conservadores, da política. Sugere que o foco deva ser de prevenção, e não repressão. Que nenhum usuário seja considerado criminoso. E que as diferentes drogas possam ser vistas de acordo com os riscos e padrões de uso de cada uma. Dentro dessa visão, ele segue: “Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro”.

“Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro”, ele constata, amparado por inúmeras pesquisas médicas que, uma atrás da outra, demonstram que há um enorme abismo entre o entendimento da lei e o que a maconha é de fato. Mas FHC sabe, é claro, que não é tarefa nada simples transformar a opinião pública para tirar a maconha da ilegalidade total. São barreiras enormes, que vão de igrejas a delegacias, de falta de informação a preconceitos arraigados na mídia e nos lares. Mas um dos maiores obstáculos só pode ser desafiado por gente com credenciais como as de FHC: a ONU.

Enquanto esta revista estiver sendo impressa para chegar a suas mãos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso vai embarcar para Nova York. E, enquanto você lê a entrevista a seguir, ele provavelmente já terá trocado umas palavrinhas com o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, sobre o assunto. Em sua bagagem vai o filme, e ao seu lado estarão o primeiro-ministro da Grécia, um ex-diretor do FED, o escritor laureado com o Nobel Mario Vargas Llosa e Paulo Coelho. Membros da tal comissão global que FHC integra, eles irão entregar um documento que pede o fim de um pouco conhecido, mas importantíssimo, acordo internacional de 50 anos de idade. A chamada Convenção Única de Drogas impede que qualquer um de seus signatários flexibilize demais suas leis sobre substâncias consideradas ilícitas no tal documento. O objetivo, concordaram os delegados em 1961, era erradicar tais substâncias, e certas plantas, da face da terra.

Mas, ao mesmo tempo em que um novo consenso internacional se forma, a situação no Brasil pode ser mais complicada. “Eu acho que os políticos são mais conservadores do que a própria população”, conclui, ciente do difícil trabalho legislativo que se anuncia quando um projeto de regulamentação da maconha for votado no Congresso Nacional. A esperança vem do fato de que uma reforma futura vem sendo costurada de forma não partidária. O mais importante texto que propõe uma reforma sobre o assunto é de autoria do deputado Paulo Teixeira, líder da bancada do PT na Câmara, e aliado de FHC nessa questão.

No mês em que completa 80 anos de idade, FHC está com uma agenda só não tão cheia quanto a dos oito anos como presidente. Conseguiu tempo antes de um voo para Amsterdã para nos receber em seu escritório no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Falou das dificuldades de tratar desse assunto como presidente – e como ex-presidente. Falou das lições que aprendeu ao encampar essa nova bandeira, de como o uso de drogas faz parte da experiência humana (mas não da sua...) e de como regulamentar a maconha não é uma atitude, para usar um termo seu, “avançadinha”. É nada mais do que realismo. Algo que, em política, pode ser usado sem moderação.

Nem como acadêmico, nem como presidente, o senhor havia manifestado muito interesse em política de drogas. Quando esse assunto se tornou importante na sua trajetória?
Sempre foi importante pra mim, mas no sentido de ler nos jornais e saber que, como presidente, era óbvio que eu tinha que fazer alguma coisa. Naquela época prevalecia, nos meios oficiais, a ideia de que era preciso reprimir. A visão era de que seria possível acabar com as drogas e com o uso delas. Era, e ainda é, uma política propagada pela ONU e, principalmente, pelos EUA com a intensificação cada vez maior da chamada guerra às drogas. Mas era óbvio que as drogas não estavam diminuindo. Só mais tarde eu fui entender o que estava acontecendo pelo mundo. E vi que essa visão era falida.

Quais foram os sinais que o fizeram chegar a essa conclusão?
Mesmo durante os meus mandatos, houve tentativas de erradicar, por exemplo, o polígono da maconha, em Pernambuco. O efeito foi nulo. Em seguida alguém replantava em algum lugar. E havia também, naquela época, uma tentativa do governo americano de criar uma força unificada nas Américas para fazer o combate às drogas. Nós nunca concordamos com isso. O Brasil nunca aceitou entrar nesse jogo hemisférico. Isso deixou claro pra mim que a droga começou a ser, de fato, um fator de desequilíbrio social e político. Na Colômbia, por exemplo, chefes da droga foram eleitos para o Congresso e passaram a ter controle político. E, com todo o esforço feito na guerra às drogas, embora aparentemente eles consigam reduzir a região plantada localmente, houve dois fenômenos: o número de regiões que plantam na Colômbia mudou de oito para 24; e não houve diminuição na produção porque ficaram mais eficientes. Então a oferta de pasta de coca colombiana segue estável, apesar de toda essa matança que houve lá.

E, nesse caso, tem a ver com a demanda dos EUA, que comandam a guerra às drogas.
Tem tudo a ver. Hoje a coisa está um pouco melhor. A Hillary [Clinton, secretária de Estado dos EUA] disse, no México, que a responsabilidade era comum entre os dois países. Mas, na minha época como presidente, os EUA tendiam a culpar simplesmente o produtor. Diziam que o presidente da época da Colômbia havia sido financiado por produtor de coca. Ora, na Colômbia produtor de coca é que nem empreiteira no Brasil: financia todo mundo. Foi assim que comecei a me aprofundar e a entrar em contato com os ex-presidentes do México e da Colômbia, para criar uma comissão independente para tratar do assunto. Nesse meio-tempo eu havia tido um encontro nos EUA com representantes do governo Bush, na época, e percebi que lá já havia dúvidas quanto à eficácia de um combate radical às drogas. E que esse problema, no fundo, ameaçava a própria democracia.

"O CONCEITO DE QUE UMA DROGA
LEVA A OUTRA É UM MITO. É O TRAFICANTE QUE INDUZ"

Qual a relação que o senhor vê entre o problema das drogas e a democracia?
Primeiro, essa instabilidade política que é gerada, como no caso da Colômbia. No Brasil, a questão das drogas é muito mais vista como uma questão dos pobres. É a favela, a cracolândia, a violência. E quase todo mundo fecha os olhos para o consumo da classe média, que usa abundantemente e é o verdadeiro mercado. Isso já mostra que a própria percepção da droga no Brasil não é democrática. Então, se quisermos ser coerentemente democratas, temos que dizer que essa história é de todos. E o Estado, a sociedade organizada, tem a obrigação de te dar essa informação. Não adianta nada fingir que o problema não existe ou é algo que nasce dos pobres e de gente violenta. Que é onde a repressão acaba agindo. Essa experiência carioca da UPP até consegue reduzir a violência e liberar um pouco a população do comando dos chefes da droga. Mas não acaba com a droga. Há um deslocamento, simplesmente. Nos EUA, por exemplo, tem 500 mil pessoas na cadeia por uso de drogas, 80% são por conta de maconha. E quase todos são negros... E aí é claro que há preconceito em determinar qual usuário de drogas vai para a cadeia. Foram essas percepções que me fizeram buscar gente que realmente entende do assunto. Porque eu nunca tive conhecimento técnico da droga.

E o que o senhor descobriu quando começou a estudar o assunto?

Quanto mais eu e os outros líamos, mais chegávamos à conclusão de que a guerra às drogas era falida e que o objetivo de zero droga é inalcançável. E, por isso, era preciso buscar outra abordagem, outra estratégia para tratar do assunto. Nossa comissão latino-americana há uns três anos lançou um documento que teve muita repercussão no mundo. O que dizia era mais ou menos o seguinte: os recursos estão todos concentrados em destruir a produção e combater o tráfico. Mas nada é feito para lidar com os efeitos na sociedade e em quem usa. Nada era feito de fato para reduzir o consumo. Com o cigarro, por exemplo, houve um esforço grande e caiu o consumo. E depois descobri que é preciso reconhecer que as drogas são múltiplas, e os efeitos não são homogêneos. Desde cigarro, álcool, maconha, heroína, cocaína. Vários mitos desabavam diante das pesquisas.

Que mitos, por exemplo?
O de que o uso de uma droga leva, necessariamente, a outra. Não é verdade. Vocês podem ver no filme que a ex-presidente da Suíça dá um depoimento mostrando que o que leva de uma droga a outra não é o consumo, mas o mercado. É o traficante que induz. Outro mito que pude verificar pessoalmente em viagens é o de que existem drogas leves e pesadas. Sim, umas são mais pesadas do que outras, mas depende muito mais do tipo de uso que se faz. Se você acorda já fumando maconha é complicado. Se você acorda bebendo cachaça é ainda mais grave. Mas se você toma uma cachaça de vez em quando é bem mais tranquilo. O mesmo se aplica a maconha, heroína, cocaína... Então precisamos ter uma visão mais sofisticada sobre isso se quisermos, de fato, reduzir as consequências negativas.

Qual medida imediata se pode tomar para reduzir esses tais danos?
Por esse ponto de vista, em primeiro lugar não se pode tratar o usuário de drogas como um criminoso. Ele não precisa ir para a cadeia. A partir de certo ponto, dependendo do seu padrão de uso, ele precisa ir para o médico. Mas não é simples. Algumas drogas são extremamente complicadas. Causam grandes danos. O caso da cocaína tem vários problemas. Um deles é que ela excita, leva à violência e tem derivados ainda mais destrutivos, como o crack e esse novo aí, como chama?

Oxi?
Esse aí. Você não pode tolerar esses tipos de drogas. Tem que combater mesmo. Mas é um assunto realmente complexo para ser tratado como tabu. Nem todos têm a mesma opinião. Por esses motivos resolvemos fazer um documentário e criar uma comissão global de drogas que vai se reunir em Nova York agora em junho. Com pessoas absolutamente insuspeitas. Paul Volcker, que já foi presidente do FED americano e assessor econômico do Obama, o primeiro-ministro da Grécia, George Papandreou. Escritores como Mario Vargas Llosa, Paulo Coelho e pessoas que têm algum tipo de responsabilidade pública e que sabem que precisamos mudar o enfoque.

E qual o objetivo da comissão, exatamente?
Nossa próxima reunião será nos EUA. Porque é lá que a guerra às drogas é promovida com mais força. E também porque primeiro é preciso mudar a posição que a ONU tem. Hoje governos estão proibidos de rever certas leis por conta da convenção única de drogas que os países assinaram há décadas. Ela, na realidade, proíbe os países de adotar políticas mais liberais. Nessa reunião em Nova York nós vamos visitar o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon. Estaremos cercados de um monte de gente altamente respeitável, alguns bem conservadores politicamente, para mostrar que não é uma posição “avançadinha”. É bem mais do que isso. É realismo. E estamos tentando através da internet conseguir 1 milhão de assinaturas para levar a eles. Queremos demonstrar por muitos lados que a ONU está errada. E, na verdade, está sendo um pouco hipócrita. Porque aos poucos os países vão mudando de posição, mesmo com a tal convenção assinada.

"DEFENDER UMA REFORMA NA POLÍTICA DE DROGAS NÃO É UMA POSIÇÃO ‘AVANÇADINHA’. É REALISMO"

Mas qual a posição do senhor sobre o que deve ser colocado no lugar da guerra às drogas?
Houve um tempo a lei seca, que proibiu o álcool. E a experiência mostrou que não levou ao fim das bebidas. Com as drogas estamos passando pela mesma coisa. Não adianta ter uma posição radical porque não funciona. O que eu quero dizer aqui é que não dá para tratar droga como se tudo fosse a mesma coisa. Então temos que nos informar, informar a população e separar em tipos de drogas.

Mas sofisticar a informação não basta sem uma mudança legal na hora de diferenciar uma droga da outra. Como o senhor encara a questão da maconha, especificamente?
Isso não é simples. Primeiro temos que descriminalizar o usuário. Mas mesmo na hora de diagnosticar o que é usuário e traficante é complicado. Porque todo usuário, uma hora ou outra, acaba sendo um pequeno traficante. Como o acesso à boca de fumo é ilegal, alguém que se arrisca aproveita e também pega para os amigos. Então isso cria uma teia de ilegalidade que é melhor acabar. Pelo menos no caso da maconha. Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro.

Isso vai bem além de descriminalizar o uso. Regular significa criar formas de produção e venda permitidas por lei, certo?
Uma coisa leva a outra. A opinião pública não aceita as ideias de uma vez. A gente precisa criar efeitos em cadeia. Quando você discute drogas, é fácil convencer uma pessoa de que o usuário não deve ir para a cadeia e que ele precisa de tratamento médico. Com isso quase todos concordam. Mas, no caso da maconha, a pessoa não requer tratamento. Em seguida, você tem que perguntar: e o que fazer agora? Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro. Agora, vamos supor que ela seja colocada na mesma categoria desses dois. Ora, você não vai liberar álcool e tabaco para menores de idade. Em certos países existem restrições mais drásticas em relação às bebidas. Hoje, em São Paulo, se você fuma precisa ir para a rua acender um cigarro. Há 15 anos todo mundo respirava o mesmo ar infecto do cigarro. Antes fumar era sinônimo de glamour, agora não é mais. Isso vem de uma regulação maior. Mas alguém produz o álcool, o cigarro, alguém os vende.

Como poderíamos criar um mercado regulado de maconha?
Tem mil caminhos. Não há uma receita. Isso tem que ficar bem claro. Nada resolve. Nada acaba com o uso nem com os malefícios que ela possa causar. Mas precisamos criar maneiras de reduzir os problemas. E tem muitas experiências nas quais podemos nos espelhar. Em Portugal, a descriminalização e, na prática, a não perseguição ao usuário deram certo.

Mas Portugal não tem um modelo de produção e venda de maconha. O tráfico continua.
E isso é o que precisa ser discutido aqui. Uma coisa é o uso da droga e o que isso causa no usuário. Outro é o tráfico que gera violência. Em Portugal o tráfico não está atrelado à violência. Na Holanda eles podem vender, cobrar impostos nos coffee shops, mas a maconha entra no país ilegalmente. O Estado fecha os olhos à ilegalidade. Eles dão uma justificativa: “É melhor resolver metade do problema do que nem a metade”. É verdade. Mas vai para o México ou para uma favela carioca. A violência é o problema mais grave e vai continuar sendo. E não podemos realmente deixar o tráfico prosperar. Então não dá para aplicar a mesma receita igualzinha de um país para outro. No Brasil eu iria com cuidado. Faria alguns experimentos. Precisamos discutir e, na hora que descriminalizar o uso, poder perguntar: e quem produz?

"A MACONHA PODERIA SER PLANTADA POR COOPERATIVAS OU EM JARDINS PARTICULARES"

E, na sua opinião, quem produziria?
Cooperativas, autorizações para produção em pequena escala, jardins particulares para uso pessoal. Alguma coisa assim deveria ser experimentada para ver se a coisa anda. As estatísticas mostram que 80% dos que usam droga usam maconha. E, como ela é a menos daninha, menos que o cigarro, é razoável que a gente a separe das demais, para tirar essa receita do tráfico e concentrar o combate nas outras drogas que são mais perigosas. Essa é a discussão. E há no Brasil certo cinismo quando se discute isso... Porque o acesso à maconha aqui é amplo. E isso é errado. Não tem critério nenhum. Qualquer um consegue.

É como se fosse liberado.

Exatamente. Ontem mesmo estava ouvindo no rádio que estavam vendendo livremente maconha em uma escola. E pior, o cara que vende não vende só maconha... Isso é um problema social grave para o qual não podemos mais fechar os olhos.

O senhor acha que poderia ter esse discurso sendo presidente?
Veja, o atual primeiro-ministro da Grécia faz parte da nossa comissão e tem esse discurso. Depende muito de como você diz as coisas. No caso do Brasil as pessoas têm muito receio na vida política de ser manipuladas, ter suas palavras distorcidas. Por exemplo, há muitos anos, quando fui candidato a prefeito, quando eu nem falava dessas coisas, o Jânio Quadros, que foi meu adversário, espalhou que eu queria colocar maconha na merenda das crianças. Eu achei tão absurda a declaração que nem respondi. Logo eu que nem cigarro fumo, bebo pouquíssimo. Como as pessoas vão achar que tenho alguma coisa a ver com droga pra criança? Ingenuidade minha... Foi um desastre. Porque, quando colocam uma coisa dessas no ar, muita gente dá ouvidos.

Mas o senhor não respondeu se acha viável um presidente do Brasil, na ativa, defender essa posição.
Primeiro eu acho que é difícil para um presidente falar sobre isso porque ele tem a responsabilidade de dar a solução. E estou falando aqui que a solução não é óbvia e definitiva. Então é complicado para ele se posicionar. A pessoa fica inibida e se esquiva da questão. Acho que tudo isso deve ser antes discutido pela sociedade, que é o que estamos tentando fazer.

Uma discussão suprapartidária, inclusive?
O líder do PT na Câmara, o deputado Paulo Teixeira, tem um dos projetos mais ousados para regulamentar a maconha. E sou o primeiro a defendê-lo quando o citam fora de contexto. É muito sério para se tornar motivo de rixa de um lado contra outro. É um problema enorme da sociedade para discutir partidariamente. De tal maneira que, quando chegar em um momento de decisão, não seja meramente uma questão política, mas parte de uma conclusão mais ampla.

E de que maneira o senhor imagina costurar isso politicamente. Há uma receptividade dos parlamentares?

Não... Eu acho que no começo será muito difícil, mas filmes como esse ajudam um pouco. Porque têm a virtude, eu acho mesmo, de quebrar o tabu. Gente que não é usuário falando claramente sobre o assunto. Demonstram que não dá para ter uma posição sem saber que consequências ela vai ter na sociedade.

O senhor acha que a sociedade é tão conservadora quanto os políticos acham que ela é?
Não. Eu acho que os políticos estão atrasados. Veja a decisão que o Supremo Tribunal Federal teve sobre a união homoafetiva. Aquilo não passa no Congresso. O STF aprovou, e a sociedade aplaudiu. Simbolicamente isso é muito importante, porque foi uma decisão em nome da igualdade. Eu acho que os políticos são muito mais conservadores do que a sociedade. Se eu fosse dizer ao meu partido que eu vou fazer tal filme sobre drogas, eles iam me dizer que é melhor não fazer. Ou: “Pelo menos não faça agora, espera a eleição...”.

E qual foi a reação do PSDB?
Não houve nenhuma porque é difícil reagir a mim... [risos]. Mas é preciso que algumas pessoas tenham coragem de enfrentar. Você acha que eu não vou ser criticado por dizer essas coisas que estou dizendo a você? Vou, claro. Mas quem tem medo da crítica não faz nada na vida. E eu estou convencido de uma coisa. Eu não sou usuário, nunca fui, não estou pregando o uso. Mas estou dizendo: tem gente que usa, e o uso é diferenciado. O efeito também. E não adianta reagir sempre igual. Eu sei que vão interpretar errado, tirar do contexto. Mas nessa altura da vida também não me preocupa.

O senhor foi professor em universidades em uma época em que a maconha começou a ser utilizada como forma de rebeldia, contestação e de uma nova identidade cultural. O senhor conviveu com esse ambiente?

Eu sou mais velho do que pareço, tenho 80 anos. Então, quando eu dei aula na USP, fui aposentado pela ditadura em 1969, eu tinha 37, 38 anos. Nessa época a maconha ainda não era tão difundida por aqui. Mas, em seguida, fui dar aula em Stanford, na Califórnia, e aí sim era o auge do movimento hippie nos EUA. Cheguei a conhecer a Joan Baez em reuniões dos movimentos estudantis... Então havia, claro. E aparecia como forma de protesto, de liberação, e não havia ainda uma repressão mais dura do governo. Quando voltei ao Brasil, nos anos 70, aí sim a maconha já havia chegado mais forte. Mas eu mesmo não convivi com maconha ao meu redor. Pode ser que eu era tão careta que nem percebia.

Eu pergunto isso porque politicamente a maconha é sempre tratada como uma questão de saúde pública, ou como caso de polícia. Mas nunca vista como parte da cultura, como algo que não necessariamente é um problema.
Você tem razão. Ela é sempre vista como um problema. Mas quando esse problema se generaliza... Deixa de ser problema se nos dermos conta do real mal que faz. Tem tanta gente usando, e não dá para coibir, então vamos regular. Tem que enfrentar a coisa.

"ALGUMAS PESSOAS RECORREM ÀS DROGAS SEM DESESPERO, CONSCIENTEMENTE.
TEMOS QUE ENCARAR COMO PARTE DA VIDA"

E o senhor não se preocupa com a questão de liberdade individual nesse caso, com o direito que uma pessoa deveria ter de escolher o que quer para si?
Na Holanda eu conversei com os meninos que vivem em uma cidade que tem coffee shops. Eles não têm muita curiosidade pela maconha porque ela não é proibida. Eles ficam indignados porque têm dificuldade para conseguir álcool. O argumento deles é “somos contra qualquer proibição”. E, como é uma cultura protestante, burguesa, individualista, eles levam muito para o lado do “eu escolho”. Nossa cultura não é tão individualista nem as pessoas valorizam tanto a sua própria decisão. Mas estão valorizando cada vez mais. A internet mesmo é um grande instrumento para isso. Cada pessoa opina, tem voz. Eu acho que, quanto mais livre uma sociedade, quanto mais mobilidade social ela tiver, mais o “eu escolho” vai contar. Mas para ter escolhas reais você precisa ter informação. Senão é uma escolha às cegas. E esse argumento de liberdade individual passa por termos capacidade para educar. Sobre drogas, inclusive. Senão a pessoa fica manipulável na mão da propaganda, dos traficantes ou dos interesses capitalistas... de quem quer que seja. Democracia existe pra que você tenha informação.

O senhor já fumou maconha?
Não. E vivem dizendo que eu já experimentei. Uma vez eu disse em uma entrevista que, nos anos 70, eu estava com uns primos meus, jovens, em um restaurante em Nova York. Passaram um cigarro de maconha, e eu achei o cheiro horrível. E aí disseram que eu fumei, mas não traguei, essas coisas. Mas eu nunca traguei nem cigarro. Eu não teria problema nenhum em dizer que eu experimentei. Mas a realidade é essa: a vez em que eu estive mais próximo de maconha foi em um bar elegante de Nova York. Foi a partir daí que o Jânio inventou que eu ia distribuir maconha pra criança. Outra coisa... Eu nunca vi cocaína na minha frente. O problema aqui que me interessa é outro. É uma questão social e política que afeta muita gente.

E, mesmo sem ter tido curiosidade na sua vida toda, o senhor vê algo positivo no uso de drogas entre os seres humanos desde os tempos remotos? Uma função antropológica para a alteração da consciência?
Eu não sei se positivo, mas vejo da seguinte forma: o ser humano gosta de experimentar seus limites. Em tudo. Não tem gente que gosta de praticar esportes radicais? No fundo é um esporte radical. Pega o Sartre e seus escritos sobre drogas. O que ele estava fazendo? Experimentando os limites dele. Nos anos 60, todo o movimento em torno do LSD, tudo isso tem a ver com uma busca. O ser humano tem uma angústia existencial. Você não sabe quando vai morrer, você não sabe qual o sentido de tudo isso aqui. E a gente precisa conviver com essa angústia. Em certos momentos a droga pode ser uma maneira de lidar com isso. Você pode me perguntar por que eu não tentei esse caminho. Eu fui por outro. Sempre fui extremamente intelectualizado, desde muito cedo. Ficava discutindo abstratamente as questões do ser humano. Outra forma de buscar a condição humana. O que é tudo isso? Qual é nosso limite?

Então o senhor vê um aspecto de busca espiritual em nossa relação com as drogas?
Eu desconheço qualquer sociedade que não tenha experiências com suas drogas de preferência. Isso tem alguma relação com o transcendental. Não é uma experiência religiosa, mas tem algum parentesco. É sair do objetivismo, escapar do que você não consegue escapar, que é a sua carne, da mera matéria. Então, claro que não espero que um policial vá encarar nesses termos, mas eu não sou um policial. Sou um sociólogo e tenho que pensar nisso. Tem gente que tem experiências místicas, uma viagem, um barato espiritual. As pessoas buscam essas coisas. Eu estudei umbanda. O que é aquilo? Também é uma experiência mística, transcendente. E tem ali tabaco, álcool, no meio de uma tentativa de se comunicar com outro mundo. Isso é natural, próprio da experiência humana, eu acho que a gente tem que entender isso com uma visão mais ampla. Não estou justificando, mas as pessoas precisam ir em busca de si mesmas. Às vezes recorrem à droga como desespero. Às vezes recorrem sem desespero, conscientemente. Eu acho que temos que encarar como parte da vida. Não como algo que temos que eliminar. Porque isso não se vai conseguir.

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