Ministério da Cultura

Enquanto o governo vive uma crise no MinC, a rede Fora do Eixo cria uma nova e independente política cultural

Em 2006 uma turma de Cuiabá fundou uma rede de coletivos para organizar artistas independentes longe dos grandes centros. Eles criaram o Circuito Fora do Eixo. Cinco anos depois se tornaram uma poderosa organização capaz de realizar mais de 5 mil shows ao ano, em mais de cem cidades. Recém-sediados em São Paulo, em meio a uma crise que envolve a nova ministra da Cultura, eles descobrem que talvez a possam controlar mais do que carreiras. Podem ter poder político

Pablo Capilé foi avisado por um de seus muitos companheiros de casa que havia alguém esperando do lado de fora. Quando saiu, viu a presidenta, Dilma Rousseff, ao portão. Ela queria conversar com o rapaz, articulador que era, sobre o Ministério da Cultura. Preferiu não entrar, mas o convidou para um refrigerante no botequim ali do lado. Em uma estreita rua do bairro da Liberdade, quase no Cambuci, tomando um guaraná de canudinho, a mandatária trouxe as boas-novas. “Pode ficar tranquilo, meu filho”, Dilma disse, “a Ana de Hollanda não vai durar nada no governo.” Pablo mal teve tempo de comemorar... Acordou no meio do sonho e, antes de rir de si mesmo, apanhou o iPhone do lado da cama. Checou o e-mail, o Twitter e foi à luta no andar de baixo, onde fica seu escritório e a sede do Fora do Eixo, a rede que coordena.

A agenda do dia era, como sempre, cheia. E envolvia, entre muitos compromissos, participar da redação de uma carta à própria Dilma Rousseff. Escrita por muitas mãos, em trocas de e-mails pelo Brasil, o documento manifestava a decepção de muita gente com o novo Ministério da Cultura. Nas entrelinhas da carta estaria uma reivindicação fundamental. E que se tornou, em termos literais, o mais recente sonho de Capilé: a demissão da ministra Ana de Hollanda.

Os argumentos espelham uma polêmica de muitos braços que vem ganhando volume em artigos de jornais, no Twitter, em debates e dividindo artistas em discussões que raramente ganhavam repercussão pública: a retirada da licença de Creative Commons do site do ministério, a verba para os Pontos de Cultura, o papel do Ecad, a complexa reforma na lei de direitos autorais no Brasil... Mas, muito mais importante do que cada uma das questões, o que mais inflama os ânimos desse exército cada vez menos disperso de agentes culturais é “a falta de visão da ministra”, resume Capilé. “Ela mal assumiu e já anunciou um grande retrocesso, é o retorno de uma política ultrapassada. E veio em uma hora muito errada. Agora era a hora de acelerar... Não de termos uma ministra analógica”, conclui, enquanto checa compulsivamente seu laptop e o celular, antes de levar a Trip para uma tour pela casa Fora do Eixo de São Paulo.

Proclamação da república

É um enorme sobrado, antigo, alugado de um chinês do Cambuci por R$ 4 mil ao mês. Uma pechincha dado o tamanho. São duas salas, oito quartos, uma enorme cozinha, quintal, churrasqueira e outra construção ao fundo, de dois andares, onde fica um estúdio de ensaio para bandas, uma sala para edição de vídeos, um terraço e mais um quarto para alojamento. No andar de baixo da casa, uma jovem equipe se espalha em mesas e sofás, cada um atrás de um laptop. Gente de Recife, Uberlândia, Buenos Aires... a lista corre em muitas cidades. No andar de cima, os quartos entregam o clima de república. Bem mais bagunçados, são apenas dormitórios para as 18 pessoas que moram na casa. Contraste com a organização espartana das áreas de trabalho.

É fácil descrever a casa fisicamente. Mais complicado é explicar o que de fato acontece por ali, e que faz do endereço ocupado há três meses por esse jovem grupo um dos maiores quartéis de uma luta política e artística. Para isso, precisamos antes voltar ao já distante ano 2000, em Cuiabá.

Naquele tempo, Pablo Capilé era um estudante de comunicação, parte de um grupo interessado em dar um gás na cena musical de sua cidade. Como quase toda capital no Brasil, a do Mato Grosso não era exatamente o melhor terreno para uma banda independente, ainda colocada apenas como consumidora do som que vinha embalado por gravadoras, quase sempre de São Paulo e Rio de Janeiro – o tal eixo. Mas, inspirado pelo maguebeat que havia aflorado em Recife anos antes e pela libertação digital que a internet trouxe, o grupo montou um coletivo na tentativa de ajudar bandas e criar um público local. Alugaram uma casa e fundaram o Cubo Mágico, a fim de produzir shows, festivais e discos em Cuiabá. O problema, evidente, foram as finanças.

“A gente nunca foi caloteiro”, jura Capilé, “a gente era administrador de dívidas.” O prejuízo de um festival era pago com a receita do seguinte, que seria pago com ingresso de outros shows, que seriam pagos com vendas de CDs... e a rolagem seguia. Foi quando uma sacada econômica deu fôlego ao frágil esquema de manutenção da cena cuiabana. Por melhores que fossem as intenções, todos os envolvidos, de músicos a donos de bares, precisavam ser pagos de alguma forma. E, como não havia dinheiro disponível, eles tiveram que inventar um. Entrou em circulação o Cubo Card.

Existia em cédulas mesmo, emitidas pelo próprio coletivo. E era com elas que pagavam a maior parte de seus cachês. O Cubo Card, por sua vez, poderia ser usado para comprar ensaios, releases, camisetas da banda e serviços prestados por gente ligada ao coletivo. Pagava também as cervejas dos envolvidos. Logo, começou a valer como moeda em um restaurante parceiro ou em uma locadora de filmes que os patrocinava. Foi às custas de seus cachês em Cubo Cards que bandas como Vanguart e Macaco Bong gravaram seus primeiros discos e se tornaram os filhos pródigos do rock do Mato Grosso.

Enquanto coletivos como o Cubo Mágico pipocavam no país todo, o mainstream sofria no bolso como nunca. A venda de CDs despencou e rádios perderam relevância em um mercado rapidamente dominado por iPods e seus primos. Foi também a época em que Gilberto Gil assumiu a pasta da cultura no governo Lula e anunciou políticas que reconheciam as novas tecnologias digitais não só como inevitáveis, mas também como libertadoras. A ordem era descentralizar, sair do eixo e digitalizar comunidade. Surgiram os Pontos de Cultura. E o ministério se tornou, ao abraçar softwares livres e a licença de Creative Commons, uma trincheira segura para os partidários de uma revisão urgente das leis de direitos autorais, e da própria indústria cultural, em um mundo conectado pela internet. Em uma convergência inédita, governo e guerrilheiros culturais tinham planos parecidos.

Foram anos decisivos na cultura independente brasileira, e que deram a Capilé e seus comparsas do Cubo uma perspectiva mais ampla do que estavam de fato construindo. “A nossa geração não tinha uma bandeira muito clara como a dos anos 60, que lutava contra alguma coisa. Nem a crise existencial da turma dos anos 80, que estava tentando se entender. Mas a gente decidiu lutar por alguma coisa. E com a internet apareceu uma possibilidade real de se comunicar, de inventar uma carreira sem precisar passar pelos caminhos corporativos”, diz Capilé em seu escritório, ou como prefere chamar “a Casa Civil” da rede.

Com essa filosofia mais clara, e depois de anos se tornando figura fácil em festivais e congressos dos independentes, Capilé articulou com Talles Lopes (de Uberlândia) e Daniel Zen (de Rio Branco e atual secretário de cultura do Acre) o circuito Fora do Eixo. A ideia era se tornar uma rede nacional de coletivos para potencializar as ações de milhares de pessoas que tentavam, em seus quintais, produzir e viver de arte. Fundado em 2006, ainda residia em Cuiabá e mantinha seu caixa funcionando com muito pouco dinheiro.

O que é nosso é seu

De lá para cá, e passando muito abaixo do radar da mídia, o Fora do Eixo se tornou uma central que conecta cerca de 73 coletivos do Brasil de parte da América Latina. No circuito que montaram, através de casas noturnas, selos e festivais parceiros, apenas em 2010 passaram mais de 5 mil (!) bandas. Sob o guarda-chuva do Fora do Eixo, a rede dispõe de 57 CNPJs de todo tipo: editora, produtora, bar, ONG, Oscip, fundação... Grande também é o número de cartões que eles podem utilizar para financiar projetos e despesas pessoais. E é justamente com a maneira como o dinheiro circula na organização que a mentalidade capitalista do repórter, e a do leitor, há de se confundir.

Nem Pablo Capilé nem nenhum de seus colegas que trabalham diretamente no Fora do Eixo tem um salário. Vinte e oito pessoas têm a senha do cartão do banco e podem utilizá-lo livremente para suas despesas pessoais. Tudo que precisam fazer é discriminar e justificar o gasto. Em resumo: se você entra e trabalha para o Fora do Eixo, você tem todas suas despesas pagas. E esse tipo de remuneração é seguido por até 2 mil pessoas pelo país nos coletivos ligados ao circuito. A medida são o bom-senso e a dedicação de cada um. “Se eu quiser eu posso ir à loja e comprar um Nike”, Capilé elabora, “mas depois eu vou ter que contar por que eu preciso de um Nike se meu colega está usando um Conga...” Isso explica por que a maioria por ali se veste de maneira bem modesta, vive em quartos quase sem adornos, mas carrega iPhones 4 e Macbooks de última linha.

É com esse orçamento ultrassocialista que alugaram, no começo de 2011, a casa em São Paulo, e estabeleceram ali a nova sede para uma nova fase. O Fora do Eixo montou seu quartel-general no coração do eixo. Agora, com a trama bem costurada em 112 cidades, a estratégia é ganhar o mainstream, atrair artistas com carreiras mais consolidadas e criar um polo para atrair gente, dinheiro e oportunidades. Em parceria com o Studio SP, principal palco da cidade para novos músicos, já ganharam as noites de terça-feira para agendar bandas do Brasil e da América Latina. A casa se tornou também uma estalagem para artistas que vêm mostrar seu trabalho na metrópole e uma espécie de escola para moleques que saem de suas cidades para aprender, dentro do Fora do Eixo, a gerenciar um coletivo. E também se tornou um ponto para estratégicos churrascos de domingo. O primeiro deles, uma prévia dos que serão realizados todo domingo a partir de maio, foi organizado para receber a Trip e apresentar alguns parceiros. Umas cem pessoas apareceram para a tarde de cerveja, carne e conspirações.

Um garoto mineiro, que fundou o Catarse, o primeiro site no Brasil de crowd funding, apareceu para oferecer ajuda. Quer usar seu esquema de financiamento de projetos culturais através de pequenas doações na internet para bancar a reforma da casa Fora do Eixo. Outro grupo de Belo Horizonte, do coletivo Pegada, veio para articular uma série de festivais, um por semana, até o fim do ano em Minas Gerais. Gabi Amarantos, a autointitulada “Rainha da Aparelhagem” de Belém do Pará, apareceu e ficou de papo com Bianca Jhordão, a bela vocalista carioca da banda Leela. Macaco Bong, a banda abre-alas do Fora do Eixo, ensaia com a Burro Morto para um show no Studio SP.

Mesmo em um domingo, a maior parte da equipe segue trabalhando em laptops no meio do churrasco. Postam fotos da festa, divulgam os shows que vão acontecer nos próximos dias pelo país, atualizam blogs, respondem e-mails... É digitalmente, na rede, que o Fora do Eixo cria seu público, seu mercado, sua realidade. Não é à toa que por ali também petisca um veterano da contracultura, Cláudio Prado.

Premiado em 2009 no Trip Transformadores por seu trabalho de inclusão digital junto ao Ministério da Cultura de Gilberto Gil, Cláudio está, desde os anos 60, na luta pela criação de um ambiente cultural mais permeável e democrático no Brasil. Homem difícil de definir através de cargos, é uma mistura de pensador e agente, articulando nos bastidores de festivais e encontros da cultura digital. Cláudio enxerga naquela casa uma utopia sonhada por sua geração. Ele explica: “O movimento Fora do Eixo é uma molecada que propõe que reinventemos tudo, e começa por reinventar o dinheiro. E não é ouro que eles fabricam... é tesão, felicidade em estado bruto, que contamina como energia radioativa do bem. Passe um dia na casa para realmente entender o que é a felicidade da geração pós-rancor, pós-grana, pós-tudo!”.

Cláudio era uma das pessoas na mesa da Casa Civil do Fora do Eixo quando a carta à Dilma Rousseff estava sendo alterada. Articulador crucial do antigo ministério de Gilberto Gil, ele é um dos principais braços na hora de abrir o acesso da molecada representada pelo Fora do Eixo em Brasília. É um dos representantes que vai à capital entregar a carta à presidenta. E tentar abrir os olhos do poder para um fato tão real quanto invisível aos olhos da velha corte cultural brasileira: a digitalização exige uma reforma ampla e inclusiva das políticas públicas. E um diálogo aberto com novos e pulverizados participantes.

“O MinC hoje desconstruiu esse diálogo. Deixou órfãos milhares de esperanças. A perda desse diálogo do governo com a sociedade civil é que estamos chamando de retrocesso. Mas isso é um acidente de percurso – os movimentos desencadeados nos oito anos de Lula são inexoráveis. O sonho não acabou não... Ele renasce tropicalista, na vocação plena do Brasil Fora do Eixo. O governo voltará a nos entender...”, garante Cláudio Prado.

Saiba mais: http://foradoeixo.org.br

Leia também as colunas de Alê Youssef (O Partido Pós Rancor) e de Ronaldo Lemos (O elefante na sala do ministério) que integram esta reportagem da Trip 199 

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